O Sol ali para os lados do aeroporto espreitava já na sua fase descendente, fazendo brilhar um céu com tons de rosa e laranja devidos à poluição atmosférica emanada de todos os artefactos que os humanos usam para se mover. Inadvertidamente dei comigo a lembrar-me dos tempos em que ia ter com a Cristina a Alenquer, apanhando comboio, autocarro e perdendo horas até chegar a ela. Como o mundo parecia mais promissor, mesmo que eu não percebesse a mão do Titereiro enfiada pelos meus entrefolhos acima. O tempo mudou, já está mais fresco, levantei-me devagarinho de cima do capot, para não o amachucar, e passa nesse momento um airbus qualquer sobre mim, para gáudio de toda uma comunidade que se reúne religiosamente no enfiamento de uma das pistas do aeroporto, para ver os aviões passar. Assim que entro no carro, um alerta de mensagem no telemóvel. Notificação do Tinder, olá João como estás. Olá, o nome dela, sou simpático. Antigamente perguntava se os dentes tinham sido caros, ou se o cabelo é verdadeiro. Era mais fácil arrancar um diálogo mesmo que a recuperar de uma reacção negativa, do que é hoje, sobressair no meio de milhares de homens descartáveis. O smartphone é na realidade, um saco de pilas, onde a cada vez maior solidão dos homens, alimenta a cada vez maior sobranceria das mulheres. Há sempre um a seguir, há sempre o plano c, d, e, f. A sede de sexo e companheirismo é tão infinita, como a exigência lunática de cada princesa. São todas princesas ou rainhas, o que é uma contradição nos termos, pois, rainha só pode haver uma. Nobres muitas, mas se cada uma pode ser rainha, tipo que dá cabo da estrutura da monarquia… Convencem-nas que têm direito ao melhor da vida, só porque não são homens, ou melhor, só pela sua feminilidade. A gorda acha que merece um homem musculado, que se levanta todos os dias às 7 da manhã para ir para o ginásio levantar ferro. A dondoca que repete literalmente o que o professor da uni lhe disse há anos atrás, sem que, entretanto, tenha construído as suas próprias definições, porque foi para a uni aprender um discurso, e não para se ilustrar a si mesma. Procura alguém que lhe reforce as próprias crenças. Justificam a si e às outras dizendo que é uma questão de compatibilidade. Nada tem que ver com compatibilidade, apenas com contas de merceeiro, onde cada um calcula o que o outro pode fazer num plano e desenho da vida que desenhou antes de se conhecerem. Chama-se Sónia, coloco-a na lista telefónica como Sónia do Tinder. Descobrimos que moramos perto, um dos motivos pelos quais me escolheu dentre todos os outros amontoados na sua caixa de likes. Uma solução rápida e acessível para a monotonia da sua existência. Pelo meio da conversa lá vai deixando escapar que acha ter perdido tempo nos seus 40 anos, que devia ter feito outras escolhas, sem que contudo consiga a introspecção que lhe permita não cometer o mesmo erro de que se queixa. Morava em Lisboa, mas as rendas subiram e o ex namorado arranjou outra mais nova, ele que sempre a encornou, porque era vocalista numa banda. Depois arranjou outro, namorado de felicidade adequada, o prémio de consolação que não era assim tão estúpido e também a trocou por uma melhor quando a altura certa se proporcionou. Perguntei-lhe como era na cama. Disse-me que não era púdica, e percebi que era uma mulher baunilha. Se a única coisa que são capazes de analisar é a sua própria sexualidade, fazem-no com alguma sobrestima sem excepção. Expliquei-lhe que ninguém abandona uma namorada, se não houver monotonia na cama, mas logo percebi que podia estar a projectar a minha baixa exigência, noutros. Convidou-me para ir ter com ela a um parque, para bebermos moscatel. Fui ver as fotos, para ver se me suscitaria motivação para tal. Fotos com a perna flectida e calcanhar levantado, imitando os anime dos anos 80, e os hentai dos 90. Dá uma aura de ingenuidade, que de intencional se revela contraditória. Uma outra foto sentada numa mesa num qualquer destino exótico, expondo o bruto pernão que parecia coincidir com uns anos antes, onde chegara ao seu topo físico. Pergunta-me se tenho saído muito pelo Tinder. Digo-lhe que não, que nem ligo a essa treta, guardo para mim que o Tinder está cheio de traumatizadas de guerra. Está a chover e saio de casa, chego primeiro ao parque. Ela chega mais atrasada apesar de a sua casa ficar perto. Lembro-me bem da cara dela, era uma pita quando toda a gente na minha zona jogava basquete no ringue da freguesia entretanto extinto. Fomos ambos à procura do mesmo, de um assassinato de monotonia pela reificação do outro e consumo de próprias fantasias. Quando a vi, ajuizei sobre o seu físico, e não me ficou assim tão longe das fotos escolhidas para o perfil, com a agravante de que era notório que o moscatel era um hábito. A segurança com que aborda toda a situação é sempre algo que me deixa perplexo. Não só a naturalidade com que passam de pila em pila, como a profunda confiança de que o encontro com um estranho às 2 da manhã num parque deserto, não constitui ameaça. E no entanto confidencia que nunca viajaria para um país inseguro. Tem o fétiche das viagens, das fotos para mostrar no escritório para fingir que se sabe viver. Perguntei-lhe, o que me impediria de a violar ali mesmo, e se a insegurança não é só geográfica, mas também circunstancial. Bebemos moscatel, desenrolei todo o meu repertório de historietas e tácticas de engate, mais preso a uma necessidade de desempenho para seduzir alguém que não desejo, que num desejo lúbrico pelo âmago de outrem. A partir de certa altura, já nem é pela imagem, mas por desenferrujar a verve. A soberba, a arrogância. Estava mais incomodado pela pessoa em mim que surge em situações de engate, na pessoa em que me transformo por já não acreditar em paradas nupciais, que pela chuva que caía. Com moscatel suficiente, tenho de ir mijar. Ao levantar-me, o cinto das calças logo abaixo dos meus rins, fica preso no banco de jardim, com costas em ripas aparafusadas demasiado baixas, de madeira ensopada. A força de me levantar, solta o cinto não sem antes largar um som oco, parecido com som de peido por debaixo da roupa, do casaco. Ela olha subitamente para a zona de onde saiu o som. Encostado a uma árvore, contando os carros que passam na A1, fico irritado por pensar no assunto, e pior, de me ralar que ela pense que me peidei. Ao voltar explico-lhe que não me peidei, que foi o cinto preso no banco. Respondeu-me que não me devia ralar com isso, mas num tom que me assegurava que pensava que me tinha peidado, afinal todos nos peidamos. Que me interessa a opinião dela, se nem ela me interessa a não ser como placebo de completude? Como distracção da minha vida, da minha gélida percepção sobre as coisas? Quem me pode salvar de mim mesmo que procuro como sedento, a água que me faça suportar existir, ou pelo menos calar o diálogo interior? Com quanta 'verdade' podemos nós lidar? Trocamos umas impressões sobre o Tinder, ela confidencia que é uma forma de conhecer pessoas. Retraio-me de dizer que é uma desculpa que dá a si mesma, para poder rejeitar outros que não lhe interessem mas que estejam interessados nela. A sede não é atraente, estamos sempre à procura do prémio por via de uma parceira ou parceiro. Alguém que nos consiga distrair da monotonia de termos nascido como somos numa existência que é como é. Acompanhei-a a meio caminho de casa, e deixei-a seguir sozinha com a sua garrafa vazia de moscatel de Setúbal, na mala de ombro. Entrou em casa convencida da sua maturidade por rejeitar alguém incompatível com ela. Não sem antes tentar fazer-me sentir mal com uma recriminação por não a ter acompanhado até à porta de casa. Que devo ser uma pessoa horrível por não me ralar com o bem estar e segurança dos outros. Eu entrei em casa seco, pois calculei bem o tempo em que as nuvens pretas voltariam a mijar sobre a Terra.
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