Num qualquer corredor de grande superfície comercial, viro à esquerda e entro na FNAC, subo ao lugar onde moram os livros, e vou bisbilhotar as novidades que surgem nas minguantes prateleiras dedicadas à Filosofia. Ano após ano, cada vez mais exíguas, até que se perdeu por completo o lugar que lhe era próprio, coroado por uma etiqueta com a magna palavra ‘FILOSOFIA’.
Ainda sou do tempo em que havia estantes só dedicadas à Imperatriz das ciências, e era até relativamente fácil encontrar trabalho temporário nesta cadeia de lojas para quem percebia de Letras, em particular Filosofia. Nada como um cabrão sôfrego de livros, para os reverenciar e arrumar nos devidos sítios. Agora, encaixada nas ‘Ciências sociais’, parece um eco de religião antiga, dedicada a nerds entusiastas de cultos Jedi. O grosso das estantes e prateleiras é propriedade da ‘Autoajuda’, o que se compreende pois as pessoas procuram o evangelho e a receita e não a dúvida e o espanto. Defendo que devia haver uma prateleira para ‘Processos revolucionários em curso’ e lá estariam Platão, Kant, Hegel, Nietzsche e Kierkegaard. Mas, a propaganda optimista do ‘The secret’ e ‘power positive thinking’ infectou esta merda como vírus polígamo. Vejo os novos títulos, quem fez as traduções, se têm rigos científico ou se é mais algum macaco a traduzir para os trocos da bucha. «-João?!» A voz por detrás de mim arrancou-me do torpor pseudo-intelectual no qual avaliava uma tradução de merda, de uma grande obra. Nem os brasileiros respeitam o acordo ortográfico. Só mesmo os tugas para vender a mãe à prostituição e ainda pagar para a ver num peep show, pelo preço de tabaco e bagaço. Que merda fizeram à língua. Virei-me para trás, era a Raquel. Ora real foda-se. «-Raquel!» - exclamei eu, lançando-me com vigor a ela, mais para usar a desculpa de um abraço para receber o seu ainda perfeito 36 no meu peito, que por um reviver de uma real ligação com uma antiga colega de liceu, que nunca próximos alguma vez havíamos sido. À vontade com o meu exagero emocional, congruente com a sua fácil capacidade de pantomina, abraçou-me também com força, gritando-me no ouvido «-Oh então, como estás?», lançando a quente expiração nos meus lóbulos e procurando com as mãos a minha pele além das mangas da camisa arregaçada, massajando a minha pele nua com as suas mãos frias, numa velha e batida táctica. Pela estratégia adoptada percebi o grau de sofisticação da donzela. Qual o arsenal presente nas mãos do inimigo. Mantinha algum do seu encanto juvenil, mais por esforço de ginásio e dietas de esforço, que por alguma bênção genética. Pouca celulite e dietas maradas que haviam deixado marca em estrias e numa cara cuja pele se agarrava demasiado ao crânio. A conversa levou facilmente a um café, e o café a um jantar, e o jantar a um almoço no dia seguinte. A atenção dela e a conversa da treta não parava de fluir, tanto que o santo, eu, desconfia. Fazia perguntas para ela falar de si, e quando a via abandonada ao assunto, introduzia pequenas questões que de outra forma ela não revelaria por detrás do acto representado. Consegui então perceber que estava numa fase de ressalto que é aquela que no basquetebol, mete todos a olhar para a bola a ver onde ela vai cair, e que os mais aptos saltam para abreviar a espera. O marido havia feito um upgrade, trocara a doce Raquel por uma mais nova, de melhor feitio, mais bonita. Ela sentia isso como uma traição da vida, não propriamente falta do gajo, mas despeito por a ter trocado apesar da exagerada imagem que tinha de si mesma. Como se atrevia a vida, essa puta, a abanar o shaker ou os dados e a dar-lhe outro naipe para jogar? Ela achava que tinha colocado o visto nesta parte do checklist do plano de vida, e o gajo larga-a por uma bailarina de ballet. Mas olhava o espelho e via que ainda tinha umas palavras a dizer na língua do mercado da carne. Infelizmente só falava préacordês e ainda tinha algumas coisas a aprender e reajustar. Uma delas era continuar a achar que os homens são uns tolinhos que deixam para trás Esparta por duas pregas de carne. A outra era que ao ser demasiado solícita e dar demasiada atenção inicialmente, seria interpretado como arrebatamento amoroso e não como tentativa de convencer, a metodologia da Célia, de novo. Depois do almoço, insinuou que eu devia levá-la para casa. Certo. Tenho uma cama de beliche, podes gritar mais perto do céu. Riu-se. Ao subir as escadas mandei-lhe uma palmada no rabo e ela disse «-Ainda não.» Não percebi e fiquei em curto circuito a pensar no que significava. Chamando-me com o encolher de indicador, beijámo-nos sofregamente e quando me sentiu entregue disse-me «-Bate-me!» Dei-lhe uma palmada no rabo. «-Não! Na cara!» Ri-me. Encostei a palma da mão e empurrei-lhe o rosto. Ficou com uma cara sombria e claramente irritada. «-Bate-me com força cabrão, deixa de ser um conas.» O apertar-me entre as pernas acompanhou-me a perplexidade com a frase e acelerou o ritmo simulando ao mesmo tempo mais desejo com a cara que se tornou mendicante. «-És parva, para depois ires fazer queixas à polícia de que te violei e bati e merdas?» «-És um palhaço, sempre foste e serás, ou me bates, ou me vou embora, não te preocupes, eu gosto assim. Não faço queixa nenhuma.» O ultimato enjoou-me imediatamente. Saí de cima dela, mandei-a vestir-se, e ir para casa. Perplexa, agora ela, avaliava se eu estava a sério. Vendo que sim, puxou umas lágrimas e agarrou-se a mim, pedido que a desculpasse, há muito que não estava com ninguém e talvez possa ter exagerado na aspereza. Eu disse que não havia problema, mas que se fizesse ao caminho. Apertou-me nos braços, e desta vez chorava copiosamente. Outra arma do inimigo que me comoveu, como é normal nestas situações. Abracei o ser humano no outro lado da condição, e como não ficara flácido, ela sentou-se em cima de mim com um prolongado beijo sôfrego. Quando ficou por baixo, nem sei bem porquê, dei-lhe o que me pedira, um estalo bem aplicado na bochecha e maxilar, de Este para Oeste, mas no regresso, a mão foi de novo ao mesmo porto e as costas da mão repetiram a dose, convidando um espirro de sangue a sair em direcção à parede branca do meu quarto. Ainda nem a mão tinha parado o movimento e já eu tinha o sombrio pensamento de que estava tramado. Se ela faz queixa de mim, faço o Doutoramento em Filosofia, no cárcere. Acaba-se a vida ‘normal’ passo a ter cadastro. Pensamentos de merda que me ocorreram em vez de olhar para o 36 que continuava perfeitinho. Ao olhar para ela, contorcia-se como alguém que estava a surfar nas ondas corpóreas do orgasmo. Afinal estava a ter um orgasmo. E eu mal cansado ficara, deve ser de correr todos os dias. Deitei-me ao seu lado, e fiquei a olhar para ela, não com o amor com que outrora fitava outros cadáveres, mas enfeitiçado pela paz que exprimia o seu rosto. Mesmo o sangue escorrendo do lábio aberto, o comprazimento expresso na sua expressão esporrava calma. Quando se lembrou que estava acompanhada, olhou-me com os olhos mais ternos que alguma vez vira nela, e fazendo-me uma festa no rosto disse: «-Tão bom.»
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