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O retrato de Esporrian Gray

6/7/2022

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Ela descobrira que albergava sob a sua própria consciência, um eu.


Sob as decisões diárias de alguém que se trata a si mesmo como res extensa e res cogitans das quais se tem suprema posse, ela não concebia a possibilidade de um elemento neutro, abstracto, operante e canalha, a operar sob o seu sistema operativo. O eu.

Ela viu que o tinha, quando, a chorar de solidão para a almofada, enquanto o gato cagava no areão na marquise, mais que se arrepender das decisões tomadas, contemplou, finalmente, o impacto das mesmas não em relação ao seu umbigo, mas em relação ao umbigo dos outros.

Thread lightly because you are threading on my dreams, ou algo apaneleirado assim.

Conseguiu, acto raro, sair do egocentrismo básico e primário, para uma análise fria do lugar do outro como se fosse o próprio.
Limpou as lágrimas, sentou-se na borda da cama fria e vazia, e deteve-se a calcular como se sentiria ela mesma na situação do outro, se o que fizera, a ela mesma tivesse sido feito.

Sem as paneleirices ilusórias do ego, que tudo faz para nos lavar a alma... mesmo que mates 500 crianças, a função do ego é convencer-te que foi o melhor que podias ter feito, e que lhes podia ter acontecido.

Por força das circunstâncias, tens o ego a justificar porque foste uma cabra sem coração, a pensar exclusivamente no teu cu, quando foste além de descartar um gajo, tiveste de o humilhar e reduzir a pó. Ressabiada por a escolha prévia ficar entre o idealizado e o percebido como concreto, havia que castigar, sim, é esse o termo, o tipo que oscilara nas tuas equações solipcistas.

Foi como que uma catarse de ódio por tão longo período de desprezo. E como a necessidade é  estulta madrasta, a mula do Papa solta coices muito violentos.

 
Mas ela não desejava quem a amava e lhe queria bem. Isso é fácil arranjar. Basta mostrar os dentes, dar umas fodas, e esperar que o chumbo dentário não seja demasiado visível. E mesmo que o seja. Os homens são uns tolos adoráveis que querem tudo o que mexe. Não, arranjar homem não é problema. A qualidade do homem é que põe desafios, e se põe desafios, coloca também dúvidas sobre o mérito próprio, sobre a auto-estima. Não ter um prémio, reduz a capacidade de  conseguir viver consigo mesma.

Que a celulite nas pernas e as papadas sob o queixo, não tirem tesão.

Tenta escondê-las, seja nos ângulos das selfies, seja por via de maquilhagem experimental, seja pelo poder negacionista do ego. Poder, que a faz olhar ao espelho, e o ego, essa voz demoníaca por detrás dos olhos, visa facilmente, negar a realidade, não tens papadas sob o queixo, isso é normal, a tua carne não está velha, apenas madura, não estás caduca, apenas madura, alguém te vai amar como és, preferindo-te à tua versão 20 anos mais nova. E se não o fizerem, são todos uns grandessíssimos cabrões. Ó raça.
 

Sem que ela dê conta, na sua azáfama semanal de e para o trabalho, na habitação moderada que conseguiu, longe dos pais e dos irmãos, das primas e dos tios, o ego labuta em surdina, tomando mão de tudo o que a mente consciente lhe tráz, os melhores silogismos, as frases feitas, não que não tenha ele mesmo, como ancião coscuvilheiro e manipulador, influência nas avaliações e cogitações diárias. Como caçador de borboletas, procura na realidade frases, sinais, ideias, que ajudem a compor a narrativa salvífica.

 
No final da composição, o indivíduo sai protegido, limpo, isento de qualquer culpa, e pasme-se, de qualquer responsabilidade.
Ah, foram os homens, esses malandros que não sabem o que querem, mas só querem sexo.

Ah, foram os homens, que me trataram como depósito de esporra, mas que eu afastei todos os que não me tratavam enquanto tal.
Fodê-los para esconder o facto de que como indivíduo, pouco mais ofereço que um corpo bom para se ressonar em cima. E esporrar dentro.

Ah, foi o alinhamento dos astros, e não qualquer incapacidade de cogitação retrospectiva dos meus actos. 

Mas sine qua non, a culpa tem de ser deles. Ai de mim, perceber que sempre tive um eu.


Opá tinha sido tão bom, mostrar o novo troféu, sofisticado e rejuvenescido, à minha rede de aprovação. Mostrar que estou em controlo da minha vida e que tenho, também eu, um homem de qualidade superior aos anteriores, para mostrar como medalha no 10 de Junho. E para provar a mim mesma que sou passível de ser amada por outros, já que eu não consigo amar-me a mim mesma...e por arrasto, alguém que não tenha mais que valor de utilidade para mim.
 
Se a verdade se viesse para a minha cara, como se vêm todos estes novos prospectos de redenção, eu não gostaria da imagem de Dorian Gray.


Tal como fantasmas, bruxas, espíritos e pais natais, o eu está aí, para ser visto.
Invisível apenas para aquelas que acham que fazem a mínima ideia do que estão cá a fazer.
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