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Ontem II

28/1/2020

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Miguel chegara no Alfa Pendular das três da tarde.

«-Tão pá, como estás?» foi o que disse sob o seu sorriso largo mas controlado.

Meia hora depois estávamos a jantar no Cais do Sodré. Às 4 da tarde. Sempre o Cais, do, Sodré, donde Lisboa toda irradia a partir da nesga de rio.
Os melhores vinhos e antes de acabarem as azeitonas, já Baco se sentara connosco à mesa trazendo os templos de putas e vinho verde.

«-Continuas a acumular troféus?» perguntei eu, rompendo a neutralidade da ocasião e a naturalidade com, que eu sei, ele não fala neste tipo de assuntos.

Miguel é um dos estudiosos do tema, um dos melhores, ou pelo menos, com uma compreensão mais profunda do que está em jogo, e de como se encaixam os processos. Meia hora a falar com ele, deixa-me com um mês de adequação das minhas crenças anteriores, boa parte delas.

É tão observador quanto não gosta de trazer à luz da articulação o tema. Diz que a melhor maneira de olhar o Sol é não olhar directamente para ele.

Tem razão, podemos ver o disco solar, anónimo e abstracto, pagando com a nossa visão momentaneamente, ou para sempre.

Ninguém quer passar o jogo a tratado geométrico. Só os que não sabem ou conseguem jogar.

«-Nada de significativo. Quem vê o que está por detrás da cortina, passa de um momento para o outro a ver sempre a mesma peça representada ou filme exibido, repetidos ad nauseam. Perante isso resta, para não se morrer de tédio, procurar pormenores não vistos antes, ou padrões ainda não pressentidos.
Assim que se tenta articular algo sob uma lei geral, vem o mundo furar ao lado da nossa teoria.»


«-Pois, também prefiro a análise à entrega. Será leite amargado?» ironizei eu, mais perdido no que ele dissera que no desabafo que automaticamente saiu de mim.


«-Não vejo como uma questão de amargura mas de logística. Um coração só pode desfazer-se um certo número de vezes. Sem adesão emocional a única forma de continuar a jogar é olhar para as estruturas da casa em ruína. Sem adesão emocional o jogo perde o que nos faz jogar, o relativismo grassa, tornamo-nos mais atraentes pelo desapego, mas a alma está ferida de morte pela descrença. Só quando o corpo consegue o que quer, perde a alma o que procurava. E que sempre esteve em si. Quando percebemos a ingenuidade das nossas crenças anteriores, sucumbimos sob a falta de confiança em nós na nossa capacidade de análise, o ser mirra e entramos no mosteiro do asilo em terra incógnita até que a mãe Morte nos venha buscar.»


«-Estás muito poético.»


«-A poesia tem uma forma de resumir muito interessante. Dispensa tratados de explicação. Apanhas ou não apanhas, se não apanhas, apanhasses.»

«-Como te está a correr o trabalho?» desviei eu de assunto incomodado com a fuga dele à minha intenção de obter o tratado do engate, de forma a melhorar a minha própria técnica. Ele percebendo, vira-se para aforismos, nunca dando uma resposta escorreita. Ou porque me topa, ou porque não sabe articular de outra forma. Saber de duas formas, sabemos como decoramos uma fórmula, ou sabemos a partir da memória muscular, em que sabemos a partir de algo muitas vezes repetido que se torna instintivo. Algo que não deixa a parte emocional tocar com as suas patas gordurosas.


«-Bem, barcos vendem-se bem, quem tem dinheiro não se inibe de o gastar neste tipo de bens.»
Como quem não está à espera, lembrei-me da situação de Custódio e do nome da empresa onde a mulher em breve, ex, trabalha.
Uma associação livre que não sei porque me ocorreu. Talvez instinto, intuição.

«-Como se chama a empresa onde trabalhas?»

«-Ramos e Irmãos Leisure Lda.»

Raios.

Era a empresa onde trabalha a futura ex esposa de um outro meu amigo, Custódio.
Perguntei se conhecia alguém com as características, que ela tinha, descrevendo-a.


«-Sim, andei a comer essa tipa.»

Ponderei demoradamente sobre se o colocaria ao corrente do que se passava. Eram ambos meus amigos.

«-Essa mulher é esposa de um amigo meu.»


Ele parou e olhou seriamente para mim.


«-É? Não sabia. De quem?»


«-De outro amigo do Porto que conheço desde a tropa. Não conheces.»


Pareceu superar a afecção, despejando mais um copo de vinho e acendendo mais uma cigarrilha.


Olhando o horizonte, parecia distrair os olhos, enquanto a cara exprimia mais uma confirmação da velha piada sobre uma existência agónica onde os seres e as equações se entrecruzam.


«-Ele está destroçado. Foste-te meter com a mulher dele.»
Ignorou por completo o meu tom de censura.
Nunca lhe passaria pela cabeça explicar-se, mas também nunca lhe passou pela cabeça que o chamasse à atenção.

Olhando para mim, de certa forma fingindo surpresa gasta perguntou «-E?»

«-Nada. De certa forma fizeste-lhe um favor, foi o que lhe disse.»

«-Essa tipa se não o fizesse comigo faria com outro. Eu não ligo a isso. Até te digo mais, depois de mim, já se enrolou com mais dois. Já tive esses pudores. Agora não.»

«-Então?»

«-Mano, eles são piores que elas, elas traem-nos e eles vêm ter comigo como se eu fosse o que as desencaminha, quando é algo que já estava no íntimo da pessoa que eles reduziam a meninas virginais negando-lhes o direito de serem madonas infernais. Esses mesmos bocós, que quando eu tinha esses pudores, saiam comigo para os bares e aproveitavam eu ir mijar ou pedir outra rodada, para se fazerem às minhas companhias nas minhas costas. Não. Já não tenho esses pudores.»


«-Sim, eu entendo, que se uma pessoa não está satisfeita, tem todo o direito de procurar quem a faça feliz. Faz-me confusão como tratam um gajo depois de já não o quererem, isso sim, faz-me confusão. O resto não.»

«-Não penses nisso, resolves o problema.»

«-O meu anjo da morte já me disse isso.»
«-Hã?»

«-Esquece. Eu sei que tens razão. Não se pode esperar o respeito das mesmas regras por parte de quem joga um jogo diferente.»

«-Esta era fácil de interpretar. Aos quarentas e poucos sentia-se apartada de uma vida mais excitante que achara merecer por direito. O tipo em casa não apresentava senão a excitação de um bom e velho relógio de cuco, que a intervalos certos a penetra ruidosamente. As mulheres são seres inteligentes, normalmente mais facilmente enfadáveis que nós. A maior parte dos gajos tenta ser divertido para aplacar essa neotenia. O que é o mais enfadonho ainda. Não pensar, resolve o problema. Borrifar. Quando se interessa por nós vende-se uma imagem a ela, diferente da que quer largar, e próxima do que acha merecer.»

«-Essa merda parece física nuclear.» brinquei eu, ainda perdido nas palavras, guardadas longamente, mas que ele soltava como que por expiação de um qualquer pecado, ou alívio de silêncio constrangido.


«-É mais complexo ainda. São bichos que funcionam na imagem, na percepção, controlas a percepção, controlas a forma como pensa. Controlas o pensamento, dispões do corpo. Boa parte dos bananas acham que é por revelarem como sentem e serem mais como mulheres, que criam essa ponte de identidade com a tipa que querem desposar.É lógico e soa bem, mas infelizmente não funciona assim. Os seres lutam pelo privilégio reprodutivo, mal estará o mundo quando o desejo se erigir por decreto. Os bananas correm para um relacionamento para disporem de vulva de forma segura e regular, olham para as gajas como a dose narcótica que acalma os demónios de inadequação e a necessidade de vulva e dedicação exclusiva a um parceiro. Eu vejo-as como barro humano com os defeitos de fabrico que todos temos. Esse teu amigo devia achar que tinha encontrado resposta para o dilema reprodutivo, mas esqueceu-se que ela também é feita de espírito.»

«-Sim, mas não podes negar que a forma de avaliação delas é cruel, como se fôssemos objectos no seu plano.»

«-É igual à nossa. A única diferença é que o fascínio é directamente pelo corpo delas, que é mais elas, que o dinheiro e a dominância são nossos. Ou talvez não, o gajo com meios e dominante, é o dono da sua capacidade de dinheiro e dominância, tal como ela é responsável por ter nascido bonita. A beleza promete imortalidade, e os meios visam garantir a imortalidade dos futuros nascidos, pois para criar crianças é preciso meios. O homem de meios mostra que tem recursos para ser pai e vencer o dilema reprodutivo.»

«-O tipo está destroçado.»


«-Está porque é um cobarde, no fundo. Investiu a sua imagem e a sua responsabilidade pessoal ante a eternidade, num centro de gravidade fora de si, só porque não é senhor nem do seu espírito nem do seu corpo. É mais fácil abdicar de si em prol de um outro, que como última peça do puzzle nos dará o placebo de sentido na vida. A haver, são os filhos que já tem, o resto é acessório. Elas pensam assim, e as que não pensam, dependem do seu valor de mercado, ou seja de saberem quão fácil para elas é substituir aquele que já não serve. As pessoas usam-se umas às outras, nos seus planos e vidas secretas que só elas acham saber. Só porque pensam fechadas dentro da sua cabeça acham que os outros não terão algum acesso a esse mundo unívoco, mas enganam-se, eu por exemplo, pareço um carneiro mal morto e distraído mas estou sempre a analisar, a tentar perceber o que pensa e porque pensa o outro, o quer que seja que pensa.»
 
«-Mas nada concluis que tu próprio já lá não tenhas colocado. Projecções.»


Ele riu-se.


«-Tens razão, por isso não penso. Vejo, planeio, executo. Quero determinado corpo, manipulo determinada alma. Esse teu amigo é porreiro?»


«-É o sal da terra.»


«-Ainda bem, fiz-lhe um favor. A mulher dele está em queda livre. Baixa auto estima camuflada sob peças de roupa bem arrumada sobre a pele, mas a crença profunda de que no fundo no fundo, sabe não prestar. Finge para o mundo, em especial para a família, algo que sabe não ser, porque sabe que não é. Não presta, não porque não preste, não presta porque nessa pantomina, oblitera tudo e todos para manter a aparência, para manter o olhar que vê nos outros, que a validam como ela quer ser vista. Tal como os conas que precisam de elogios femininos e de engatar gajas, para se sentirem apreciados, válidos, adequados através dos olhos de outros, de maneira que não conseguem fazer a si mesmos. Um pouco como alguém que comendo a sopa só sabe a que ela sabe através da boca de outro.»


«-Como tu?»


«-Eheheh cabrão! Por acaso um pouco, mas estou a trabalhar nisso. Uma vez que acertei com o método, relativizei o alvo e acalmei bastante. Não as deixar como deusas.»


Levando-o de volta para o comboio, e depois do breve abraço de camaradagem, extemporaneamente me disse, «-O teu amigo tem sorte. Livrei-o de um problema que tinha.»


«Eu sei.» disse eu enquanto me afastava da carruagem branca e gotejada pela chuva.




Voltando para casa olhei a Lua e ela sorrindo perguntou-me se eu queria mais ou ia chorar como um puto maricas e pedir para voltar para dentro do saco preto.

Ri-me com o riso mais amargo, por saber que lá por parte do mar me abranger a pequena praia do pensamento, nem por isso eu sonhava saber o que é saber navegar.



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