I
O Hipólito tinha cerca de dois metros e era um dos poetas mais aclamados da noite alfacinha. Fadistas, nacional cançonetistas e outros acorriam a ele para fazer umas letras. Até o cantor pimba de sucesso quando queria subir de estilo e credibilidade, ia ter com o Hipólito para que este lhe desenrascasse umas letras. Eu gostava da sua poesia, tinha intensidade e cortava. Não era merda anódina perdida nas brumas do lacónico. Conheci-o à hora de almoço na Sociedade Portuguesa de Autores. Ele vinha a sair e eu a entrar por causa de uma merda qualquer a ver com royalties. Ele ao sair pela porta que eu segurava como sempre faço, dando espaço ao outro para sair da carruagem ou do espaço onde eu quero entrar, diz «-Obrigado.» e segurando na porta fica a olhar para mim, e já nas minhas costas atira «-Olha lá, tu não escreves umas coisas? Tu és escritor não és?» E eu respondi «-Não. Eu sou um grande escritor.» E ele com aquele esgar de lábios em que reconhecemos universalmente o desdém na cara dos outros, troca «-Deve ser uma fantasia tua, nem o que escreves tem nada de grande, nem tu ao vivo me pareces grande coisa.» Está certo, eu abri as hostilidades, ele escalou. Parei, passei para o lado dele da porta, encarei-o de frente, e com as mãos na cintura feito varina ou personagem de filme americano dos anos 50, retorqui «-As aparências iludem, tu pareces tão grande mas eu daqui consigo-te ver a careca. Já vi rabos de babuíno mais pilosamente ricos.» O tipo ficou a olhar para mim, avaliando se a imbecilidade que eu dissera lhe merecia uma reacção de hostilidade e fandango de falanges em rosto alheio, ou se merecia uma gargalhada por causa da graça dúbia do afirmado. Havia apenas que ficar a apoiar o que dissera e confesso que me preocupava mais analisar porque saíra a minha menção ao esfíncter de uma determinada espécie de primata, que a reacção deste gajo, maior, mais pesado, mais velho e mais cheio de si. O meu olhar reflectia isso mesmo, uma espécie de esforço em assumir a imagem de temerário e ele topou isso pelo que voltou à carga, só para teste final antes de decidir se eu era alguém para se gostar, ou alguém para castigar pela jactância. «-Li o teu livro, ‘O amor é urdido’, e é melhor que a merda de blogue que escreves. Devias dedicar-te mais à literatura e menos à ficção de datagrama.» A ele, também lhe correra mal o que queria dizer. Um blogue não é ficção de datagrama. Percebi que a sua convicção de ser o maior do mundo e arredores, estava abalada. Cedi-lhe «-Conheço a tua poesia, e conheço a tua pôiasia.» «-Pôiasia, o que é isso? De poiesis?» «-Não, de poia mesmo, de merda, que é o que escreves sempre que trabalhas para cantores populares. Queres agradar ao maior número e só escreves merda.» «-É pá, aí tenho de te dar razão.» respondeu sem pensar. Parou e cogitou acerca do que acabara de dizer. A minha menção a ‘merda’ tão vernacular, foi eficaz. Colocara-o à vontade e exprimira uma espécie de frontalidade. «-Epá, queres ir almoçar, é já aqui.» perguntou apontando para um estaminé ali perto, ao mesmo tempo que cumprimentava um fulano que o abordara, aparentemente estava combinado irem almoçar os dois. Eu respondi, «-Dá-me só cinco minutos, vou entregar uns papeis e desço já.» Ele responde, «-Estamos no restaurante, bebes o quê?» «-Vinho ou cerveja.» Ao sentar-me à mesa descobri que o outro era o seu agente. Nunca tinha visto um agente com um ar tão geek como aquele. Curiosamente quando soube o seu nome, identifiquei-o como o mais capaz e eficaz agente da capital. O jarro de vinho já ia a meio quando o derramei no meu copo. Começámos a medir pilas a nível de gosto literário, e descobrimos que não falávamos a mesma língua. Ele sabia enumerar poetas de todo o lado e estilo, e para mim era só Camões, Pessoa, Bocage, e mais uns quantos, assim, genéricos, sem brilho que impressionasse. Alguns chamam-lhe clássicos. Claro que é mais de bom tom citar um poeta basco que morreu de cirrose num pombal, que um soneto de Camões. Para mim, não. Ah e Zeca Afonso. Aí concordámos e foi quando o contexto virou a meu favor, pois o agente também era um coleccionador de poesia e estavam irmanados a tentar abrir-me os olhos, isto já no terceiro jarro. «-No blogue tento transformar os sentimentos mesquinhos em algo mais nobre e belo. É muito difícil. É catarse. O livro tem o melhor.» «-Não acho. Tens muitos textos no blogue, com ideias soltas que aproveitadas, dariam gemas. Metes é pouco trabalho na redacção.» responde Hipólito ao levantar-se e desequilibrando-se, agarrar-se à mão do agente. Quando voltou, continuou «-Duas ideias acho engraçadas, a tua consciência de que as mulheres agem como são programadas a agir e a decidir de acordo com uma ilusão de livre-arbítrio, e a tua ofensa pelo facto de serem eticamente mancas.» «-Sim, percebo o que dizes, mas que queres, é algo que provoca espanto.» «-Caga no espanto. Elas funcionam noutra frequência e é o que é. São tão frágeis quanto nós. Aceita e lida.» «-Eu sei pá.» Apesar de reconhecer algo de lógico no que ele dizia, senti na sua voz que não havia carga do seu ser nas palavras. Como alguém que fala do que percebe mas não gosta. Dei-lhe um exemplo «-Vê-me esta anterior conquista que me aborda para irmos jantar. Confessa saudades e que sente falta do sexo comigo e que me quer mais que à água que bebe. Eu respondo que não reeditaria nada, porque acabaria por me lembrar do motivo pelo qual cortei com ela inicialmente. Quanto mais me nego, mais ela insiste e acede a tudo. Até reconhecer culpas que sei que nunca assumiria. Mas assim que lhe dou o benefício da dúvida, ok vamos jantar de novo, só para conversar, ela tem um riso triunfal, e no dia a seguir manda sms a dizer que afinal não vai dar porque a fiz sofrer e mais não sei o quê. A única conclusão possível é que queria ser ela a determinar o fim de alguma coisa, como se eu me ralasse com isso. Não percebo como me rio.» «-Tu não queres é largar a ideia da radical igualdade entre homem e mulher porque isso te dá uma noção de amor cortês muitissimo mais profunda. Se houver reciprocidade de caracteres e até uma prédeterminação amorosa, o amor visto por ti ganha foros de cósmico, bem mais grandioso que pura biologia. Por isso não queres largar. Tens o teu ego demasiado investido nisso. Por isso o choque entre as duas ideias te continua a gerar espanto.» Fiquei calado. Bebi. Pousei o copo. Voltei a beber. Este gajo deixou-me sem palavras e viu-me como se eu fosse transparente. Olhei para ele, e eu estava realmente perturbado. «-Sabes, é esta gaja…» Ele riu-se, enquanto brincava com o pequeno balão cheio de conhaque que se aninhava na palma da mão dele, pousada na toalha branca da mesa. Um riso irónico de quem já viu o filme vezes sem conta e se ri com as fraquezas da condição humana. «-Gosto de mulheres e de privar com elas. Gosto de ver o amor delas por mim emanando dos seus olhos. Gosto do feminino e gosto que o feminino goste de mim. Não tendo intenções de me prender a ninguém, assim que surgem os primeiros sinais de disfunção, logo a seguir aos trintas e poucos, salto fora. Para maluco basto eu. Chamam-me cobarde, porco, e tudo e mais alguma coisa. Mas o facto é que não quero ficar como tábua de salvação ou prémio de consolação. Já aceitei que elas não partilham da mesma expressão de amor que nós.» «-Não, não aceitaste. E a prova é que continuas a falar disso.» diz Hipólito interrompendo-me bruscamente. Ele tem razão. «-Será que tenho muito ego investido nesta forma lírica de nutrir sentimentos? É que a partir de determinada quantidade de tempo com alguém, é-me quase impossível de desligar dessa pessoa. Li num estudo que o A.D.N. do esperma dos companheiros passados de cada mulher, fica gravado na portadora, e que o esperma masculino é lesivo para a portadora. Pergunto-me se as lembranças de amores passados não são o esperma feminino que corrói o meu útero mental.» Um chorrilho de gargalhadas interrompe-me a dissertação, tão audíveis que a freguesia do restaurante cessa em uníssono a degustação do repasto, para observar a origem do som e fazer sentido da cena.» «-Só tu mesmo. É isso que aprecio em parte da tua escrita, a merda de analogias que fazes.» Não percebi se era elogio. Não me ralava, estava como perdigueiro, perseguindo o cheiro da ideia que me ocorrera. «-Há um conflito de mundividências, entre mim e ela. Onde ela vê uma cópula, acto fitossanitário necessário como mictar ou obrar, eu vejo uma celebração de vida entre duas gotas de água num oceano. Onde eu vejo Cosmos num afago no rosto, ela vê um testemunho transitório na transitoriedade da vida humana.» «-Sei. O que acontece é que gostas dela, e queres a concretização e manutenção desse desejo ou vontade de. Prolongar a tua vontade enquanto tiveres vontade. E a vontade dela difere da tua.» diz Hipólito claramente divertido. «-Estás a dizer que é uma imposição da minha vontade na do outro?» «-Quem sabe? Talvez sim, talvez não. O certo é que queres concretizá-la. Justificas ou mascaras esse acto sob a capa do amor que sentes, como se o amor sentido lixiviasse esse ditame inflexível de quereres sem adiamentos, a gaja que queres.» Fiquei mesmo maldisposto. O que me estavam a dizer era que sou um puto mimado que imponho a minha vontade sem consideração pela via adulta das coisas, e pela realidade do outro. Faz algum sentido, mas eu não via assim. Por mais que reflectisse. Estaria a esconder de mim próprio? «-Olha lá Hipólito, qual é a natureza do desejo?» «-Como assim?» «-A pergunta é clara.» «-Epá, sei lá. É querer algo?!» «-Precisamente. Tal como a consciência que opera sobre o que existe, o desejo em si é vazio. Só se enforma quando é desejo de um x qualquer. O x que o enforma é o que o determina. O desejo em si é nada. Um movimento estéril. Ora se desejamos alguém, esse desejo é sobre essa pessoa e não sobre um capricho nosso, ou por nós, pois isso já é o desejo em si, sem materialização. Portanto o desejo por alguém é uma relação não estabelecida por nenhuma das partes.» A cara de Hipólito escurece como que numa catarse muscular. Viu-se apertado e a sua arrogância de vencedor da vida esmoreceu momentaneamente. Eu deixara de ser uma curiosidade e passara a reconhecer algo de mais profundo em mim, que o tornara mais humilde. Afinal havia mais gente a participar no génio. Como investigador de uma fundação famosa qualquer, arrancado à endogamia dos meios onde está habituado a circular, e enconado por um plebeu qualquer, assim Hipólito morde a ponta da cigarrilha castanha. «-Estás fodido comigo pá.» «-Porquê?» perguntei eu. «-Porque te vou obrigar a escrever o próximo livro.» «-Como Casanova e Lorenzo da Ponte fizeram a Mozart?» gracejei, passando por cima da encoberta mudança de assunto da parte dele. E percebi que a minha resposta tinha respondido a ele, mas também a mim próprio. A acusação de culpa pelo egoísmo do meu desejo, era idiota, mas a finalidade da projecção de culpa não era fazer-me sentir errado. Nem assinalar a virtude dela. Não, era con-vencer, convencer-se a si própria da minha falibilidade ou monstruosidade, para alijar ou evitar assumir qualquer responsabilidade pelos seus actos, passados, presentes ou futuros. A minha desqualificação era uma fuga à responsabilidade, um mecanismo de defesa próprio. Como o ladrão que chama ladrão a outro para mascarar o seu gosto pela propriedade alheia, assim o meu amor lançava os projécteis da culpa armados com o seu próprio pecado. Só pensando no seu rabo. Mas algo do que ele dissera me deixara apreensivo. Não a merda de culpabilização sobre uma suposta imposição da minha vontade. Sei o que quero e nenhuma vergonha tenho disso. Foi a suspeita de uma suposta falta de análise ou auto-engano de mim para comigo. A cogitação sobre a natureza do meu desejo, sabendo sempre no fim, seja qual for a resposta, que me permito errar e pecar, ser humano e defeituoso. Especialmente quando o desejo é perpetuar a dança de cabelos dela no meu rosto, os rostos salivados e levados à exaustão de uma torrente de carinho que não ameaça sequer vir a parar, uma sofreguidão pelo corpo do outro que deixa ambos sem fôlego, como guerra mútua em que queremos assimilar o outro para dentro de nós até ao cabrão do dia do Juízo Final. Para afagos masturbatórios existe a idade adulta, é no Cósmico que me afogo, se ela quiser o determinado pelo mundano, não faz sentido na minha mão. II Fui pagar e depois para casa sentindo-me o tipo mais pequeno e burro do mundo. Só depois veio o alívio daquilo que ele disse fazer todo o sentido. Tinha ficado marcada uma sardinhada na casa dele em Santos. Uma semana depois numa medíocre estação televisiva, as palavras ‘escândalo’ e ‘pedofilia’ chamaram-me a atenção. Pensei logo, esta merda outra vez. Envolvido um conhecido poeta. Chamado Hilário. Foda-se. O tema foi, como é normal, explorado até à exaustão. Fiquei a saber, que depois do almoço que tive com ele, ele tinha raptado e violado uma criança numa passagem inferior em Alcântara, numa casa de banho pública. Que agora esta indefinidamente encerrada. Em plena luz do dia. Fiquei em algo parecido com estado de choque, querendo não crer, sentindo-me eu próprio conspurcado pela presença em comum com este cabrão. Impôr a sua vontade a um ser indefeso que ficará traumatizado para o resto da vida. Que leva um gajo a fazer isto? Doença. Facilidade ou cobardia. Forçar, foda-se. Nem gente adulta quanto mais crianças. Fora identificado por ser figura mediática. A criança violada estava bastante maltratada, pela violência do ocorrido, de ter raspado a cara em cimento afagado e envernizado como Opus caementicium. Marcada para sempre por causa de 15 minutos em que fugiu para longe dos seus pais distraídos com fogo de artifício de uma efeméride qualquer. Este cabrão filosofando sobre a acção ética durante os almoços, mas predador a arrepio da liberdade de outrém durante os serões. Egoísta defensor dos altruísmos pregados ao vento. Desliguei a televisão e lembrei-me de uma frase dele, quando me despedi depois de pagar a conta. «-É guerra. Total e sem quartel. A biologia é isto, e sem Deus, tudo é permitido» Está com as costas na prisão, mas o maior castigo não pode ser este que recebe em vida.
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