O seu rosto perfeitamente esculpido em carbono perecível, não era daqueles rostos que de tão belos não têm carácter.
Conseguia ver uma ou outra reminiscência do que imaginei serem traços do rosto do seu pai. Que mais é uma gaja senão uma versão efeminada do seu pater famílias? De certa maneira todos somos paneleiros, beijando as caras de pessoas que como nós saíram para a existência apenas com o sexo diferente. Ou os minetes em plenos clitóris que não chegaram a pénis desenvolvidos. O mineteiro pensava eu era um pederasta paneleiro. Ri-me com a ideia de treta, mais motivada pelo efeito da cerveja, que eu levara para este bar, um dos mais finos de Lisboa e frequentado pela nata da malta intelectualmente arrogante, das Letras, músicas e outras artes de primeiro mundo. O dono do bar conhece-me, e havia-me convidado. É mais um que insiste de todos os lados para que eu escreva um livro, que a blogosfera está morta, e que o limiar de atenção internáutico desperdiça os meus longos contos e dissertações publicadas livremente. «-Pá, foda-se, tens de escrever. Não te digo o quê, mas noto que há aí algo para sair.» O gajo estava rodeado de gente famosa, que eu desconhecia. Havia aquela aura de autoconfiança que esta malta tem. «-Pá, este é o gajo que te falei, o do blogue!» disse a alguém do grupo. «-Eh pá! Escreves umas coisas.» estendeu-me a mão, que cumprimentei, enquanto olhava por cima do ombro dele para o rabo de uma gaja de saia amarela com lantejoulas, e casaco preto à intelectual. A esta altura já tudo era de intelectuais para mim, estava tentado ir ao WC ver como é o papel higiénico para intelectuais lisboetas. A palavra espalhou-se e admito que gostei da graxa e do apaparicamento. Pelo que ia captando, isto era tudo malta com coisas feitas, e só eu andava há 25 anos para escrever a porra de um livro. Começaram a apertar comigo e lá confessei dos livros que tenho na gaveta, e que não completei porque tenho andado demasiado ocupado atrás de rabos de saias, como aquele, e apontei para as nádegas cobertas por lantejoulas num orgasmo de amarelo ou dourado, ou que raio era aquela cor. Toda a gente olhou e tossiu com a minha indiscrição, mas eu caguei-me, bebericando um espumante que mais tarde descobri ser champanhe a sério. Por isso me caía tão bem. O grupo que me rodeara desfez-se gradualmente e só ficou esse meu amigo dono do bar, e mais uns dois ou três. Que se lixe, já enchi o carro de mão de elogios e incentivo, deve durar meia dúzia de dias. Todos a fingir que o que eu não dissera não tinha importância, que em alguns o sinal do génio é mesmo poderem dizer o que entendem, sem se preocupar com as consequências amaricadas das convenções sociais. «-Olha, logo tenho bar exclusivo, passas por lá? Não me faças a desfeita de não ir.» «-Epá, já estou um bocado tocado, não vou vir a conduzir para Lisboa, para reuniões onde um gajo nem pode gabar rabos.» «-O Henrique vai-te buscar.» «-Quem é o Henrique?» «-O meu assessor. Às nove, passa à tua porta.» «-Não tens uma Henriqueta? Faz mais o meu estilo…» «-Este gajo…» vira as costas e vai para outro lado do recinto. Vim inebriado pelo metropolitano, cantando Radio Macau. O ego inchado havia trazido um pouco de felicidade, essa velha amiga que já não via há algum tempo. Troquei de direcção na Alameda e fui para a Baixa comprar todos os livros do Luiz Pacheco que encontrei, velhos ou acabados de reimprimir. Vou escrever, foda-se. Não posso atraiçoar o gajo que eu era há 20 e tal anos. Cheguei a casa e subi para a cama de primeiro andar, arredada por livros, computadores e aparelhagens de som, onde me distraio para não escrever. Olhei o tecto branco, e apaguei. Mal me tinha deitado, estavam-me a bater à porta. Abri a porta com maus modos, e calculei que fosse alguém a vender serviços de televisão internet e voz fixa. «-Sou o Henrique.» Porra já são 21? Chegado ao evento com a roupa amarrotada, censurei-me por não me ter controlado melhor na gestão do tempo. Sentia-me deslocado e fui-me sentar numa poltrona. O doce do champanhe enjoava-me e tinham-me negado água, que era uma celebração e tinha de beber. Saí para apanhar ar, e a fria noite de Lisboa, abraçou-me e disse-me que era bem-vindo, que sentia a minha falta, um dos seus melhores observadores, discreto e pacato. Pá oh noite, que queres dizer com isso? Virou-me as costas a puta, e nas minhas costas um paquistanês com a cabeça enfaixada oferece-me uma garrafa de litro de cerveja, escondida sobre o casaco. Desatei-me a rir, um supermercado aberto e com o pessoal a vender garrafas ocultas aos transeuntes. Estava lento e só depois associei que devia a ter com alguma coisa relativa a licenças e à pressão para a malta pagar bebidas de acordo com o que os bares da moda determinam. Qualquer coisa deste género, e achando estar a fazer algo bem, comprei-lhe a garrafa, calculei que ganhasse algo com cada garrafa que vendesse. Só depois percebi que tinha um problema, não ia beber um litro de cerveja de enfiada, estava cheio. Estava farto de beber. Beberiquei atá ao que o frio me permitiu, tive de ir para dentro e não ia desperdiçar o que me custara dinheiro, com tanta gente a morrer à sede. Que se fodam as vergonhas, com sorte fazem-me má cara e dão-me a justificação para me pôr a milhas. O gorila que estava à porta, torceu o nariz à minha entrada. Fingi que me estava a borrifar, e desejei que dissesse algo, para deixar a garrafa nas suas mãos. Lá dentro, já recebi algum calor e os meus lábios não me pareciam tão gelados. Escolhi o canto mais escuro e sentei-me. Fui bebendo e olhando as pessoas em redor. O meu alter ego começou a falar comigo. «-João, vais largar a bebida.» Eu sei, ando a beber demais. Não preciso de bebida para comer, foder ou escrever. A qualidade, ou falta dela, do que escrevo, não varia quer esteja ébrio ou sóbrio. Nem para drogado sirvo. Vou tendo estes pensamentos de merda, e percebo que estou bêbedo de novo. Encosto-me para trás e percebo finalmente que há uma música de fundo. A música muda, e mais gente circula à minha frente, esse meu amigo dono do bar, aborda-me, olha inexpressivo para a garrafa e chama um empregado e começa a descompô-lo porque não estava a servir-me o que havia no bar. Arranhei uma explicação, dizendo que eu é que tinha saído e comprado, que não me apetecia beber champanhe, que o pessoal não tinha culpa das minhas acções. Ele segreda algo ao empregado que se tenta apropriar da minha garrafa, não deixo. «-Tens a cerveja morta! Ele traz-te Carlsberg fresca!» Não deixei, e fez sinal para que me deixassem como estava. Desejei que ele tivesse dito que dava mau aspecto ter a garrafa à bêbedo assim em cima da mesa. Ao invés, apresentou-me alguém que era alguém no mundo da edição ou das letras. Não me lembro. Que presenciou tudo, a minha embriaguez e até um puxão à manga do fato sedoso, para se sentar comigo e debater literatura, por causa de ter citado Torga. Bebe aí da minha garrafa. Riu-se, levantou-se e afastou-se como gaivota saciada. Fiquei de novo entregue a mim, até que no meu campo de visão apareceu ela. Os dois dentes de cima um pouco salientes, mas soberbamente tapados por lábios carnudos e escarlates, cabelo curtos que não gosto mas nela ficavam bem. Numa orelha tinha um brinco com uma estrela, e na outra um brinco circular que descia quase até ao ombro. Calça de ganga preta justa às pernas, com túnica ou blusa verde-turquesa, assimétrica, mais comprida do lado direito que do esquerdo, e um cinto de cabedal largo e militar à cintura. Apesar da base que colocara no rosto, percebi que tinha pele esticada e sem buracos, não teria mais de 28 anos, e um tom branco que me dizia que não era de sair muito para o mundo. Aquele escarlate labial estava a dar cabo de mim. Tudo nesta pessoa me dizia que era bem-adaptada à vida com os outros, o riso fácil, o olho para o saber vestir, o à-vontade com que passava de conversa e de interlocutor, as expressões francas sem sombra de dúvida sobre si mesma. Um, gajo, eu, fica titubeante sobre o seu merecimento sequer para uma conversa. Lembrei-me das confissões de merecimento que recebera antes e deixei-me de sentir tão abaixo, e veja-se, esbocei o meu melhor sorriso na sua direcção. Se viu, fingiu que não viu. De facto, a cerveja estava morta, tão morta como a minha tentativa de engate por via dentária. O dono do bar, passou por ela, e não sei que lhe disse, mas apontou na minha direcção. Foi quando achei que estava na hora de me ir embora. Inclinei-me para a frente, mas o traseiro teimava em não se levantar. O veludo preto da poltrona girava como cornucópia 3d no meu campo visual. «-Olha lá, soube que me estiveste a gabar o rabo?» Esta voz. Não era familiar, mas não era desconhecida. Era uma voz feminina, com duas camadas, a camada feminina polida na parte de cima, que ouvimos quando percebemos as palavras, mas depois uma outra mais gutural, que exprime o quer que seja que nos anima por dentro. Não era máscula, mas era diferente da das outras mulheres que conheço, que perante exultações de dor ou de prazer, a voz apenas se estica até aos limites do espectro audível. Esta não, não era menina de chiliques. Era carácter, carácter transmitido por via oral. Olhei para cima, a sofisticada desejada, falava comigo. Só lhe consegui dizer, como cabra que não sou, «-Ainda há bocado ri-me para ti, não me ligaste nenhuma, que mudou de então até agora?» «-Não reparei. Além de que um sorriso não quer dizer nada.» Ambos tínhamos razão. Não quer dizer nada, mas ela tinha visto. «-Vá, estiveste a gabar o meu rabo ou não?» Fiquei parvo a olhar para ela, pois não via a lógica da pergunta. «-Agora? Eu nem reparei no teu rabo agora. Estava mais a olhar para os teus maneirismos, para os teus olhos tristes encovados pela parte superior das maçãs do rosto e para os teus olhos azuis. Só me apetece desabafar façanhas sexuais, mas o teu rosto, sendo belo não é ostensivamente belo. Tem carácter. Nem quero imaginar a minha boca na tua.» Esta última frase já soou a cliché, eu e ela percebemos isso e ela riu-se porque detectou que eu estava em modo de engate. Atabalhoado, mas incisivo. Não foi agora, mas foi de tarde. Fiquei confuso. «Eu estava de amarelo e preto. Pensei que tivesses tu, o carácter para assumir.» Percebi que era a gaja que tinha visto de manhã ou tarde, não me lembro das horas. «-Agora é que não assumo mesmo, já me lembro. Não te vi de frente antes.» «-Tens bom gosto e eu tenho bom rabo.» Rimo-nos os dois. Eu estava hipnotizado pela forma como os lábios dela mexiam, enquanto falava, e dei comigo a pensar se era de facto assim ou se eu já estava a arranjar pretextos para gostar dela. «-Sabes, devias rever os textos, não dizer asneiras, e elaborar mais a estrutura para ter integridade.» O raio do blogue. Estava explicada a mudança de disposição. Estava para lhe perguntar o que sabia ela disso. Mas algo me fez ficar calado. «-A minha banda só começou a ter mais sucesso, quando consegui acertar isso nas letras que escrevo.» «-A tua banda?» «-Sim acabámos de tocar!» Era daí que eu conhecia a sua voz desconhecida. Era o som ambiente, que tocava ao vivo na área contígua ao espaço de onde eu escutava. «-Eu não revejo os textos e tenho o processador de texto ora a funcionar ora a fingir-se de morto. Além de que na maior parte das vezes, escrevo directamente para o site.» Ao dizer isto estendi a mão para o cabelo dela, e senti o calor que emanava do pescoço. Ela esperava que a puxasse para mim, porque meteu o pescoço a jeito. Por espírito de contradição inclinei-me para ela e beijei-lhe a orelha com o brinco circular. O seu olhar era trémulo e sério. «-Este momento está perfeito, não queria que acabasse.» disse por fim. Deu-me a mão e afundou o rosto no espaço entre o meu ombro e o meu pescoço.
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Junho 2024
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