Num dos treinos de pugilato, dei comigo a desconcentrar-me e a vogar para longe da minha localização física. Uma das coisas que mais aprecio no boxe, é a inexistência de karma ou expiação. O erro cometido é de imediato pago. Não há cá esperas, não há cá ficar à espera da chegada do Reino dos Céus para que a vingança seja do Senhor, seja um cabrão que nos abrandou a vida, seja uma gaja que nos dilacerou com comportamento merdoso, camuflado pela ilusão de que supostamente nunca mais nos voltaremos a ver, que somos descartáveis da sua consciência e do seu mundo. Sem um pedido de desculpas, ou uma conversa de coração franco em que ambos assumem erros e afinal, exprimem um ao outro, que o encontro de ambos foi mais que parte da peça que a maioria representa nos poucos anos que por aqui anda. Não, no boxe, fazes merda, pagas logo por ela. No meu caso, caí no erro de pensar em quem não pensa em mim, e a odiar-me por ser mentalmente incapaz de eliminar esse tipo de fraqueza, da minha voz interior. Pois bem, um gancho esquerdo do meu opositor acordou-me para uma realidade bem mais dolorosa que os dóidóis de ‘amor’. A caminho da minha nova cama de suor sangue e cuspo, antes que a minha cabeça batesse no chão do ringue, ainda consegui lograr congruência na desconcentração…perguntei-me, antes de entrar na inconsciência, será que a dor física é de facto superior à psicológica, ao apartar ou amputar, que alguém nos faz, saindo de cena? Foi quando estava a pensar na minha paneleirice de complicar as coisas, que apaguei de todo. Já nos chuveiros, após recobro a custo, é que senti uma dor lancinante no maxilar, que me respondeu que a dor física se persistindo e em grau suficiente, nos ocupa a mente de tal forma, que as tristezas sentimentais saem de cena mais rapidamente que um amor antigo que decide que já não somos algo a ter em conta. Engraçado como a dor lateja tal e qual o coração. Com 4 Ben-U-Ron’s no bucho, a coisa não havia como acalmar, e tacteando com o dedo, percebi que tivesse, talvez de arrancar um molar e o dente do siso. Não conseguia estar parado em casa, nem sequer adormecer. Vesti-me e saí, fui para as Picoas, o Mustang, bar com música rock e coca cola merdosa, ainda devia estar aberto, às 2 da manhã. Fui na ideia de me distrair da dor, que é aliás o que tenho feito toda a minha vida. Sentado com uma coca cola natural bebida por uma palhinha que dirigia o líquido para longe do centro de dor, dava graças ao bar estar às moscas, o contrário do que eu pretendia, ao ir para ali, ao fim e ao cabo. Entrou por fim um casal, ela muito bonita, e ele, fazendo-me lembrar a mim mesmo há uns 20 anos. O que podia eu escrever sobre o assunto. Sei que quando estava para me vir embora, ele me veio perguntar se eu tinha lume, meio para mostrar a ela que abordava naturalmente qualquer pessoa por via das suas virtudes sociais, meio a precisar mesmo de fumar. Meteu conversa por causa da minha t shirt da Hell o Kitty. Só aí me apercebi que a tinha tirado ao calhas da gaveta. Eventualmente ficámos os 3 na palheta na mesma mesa, naquela cumplicidade da noite lisboeta que antecede a entrada de um novo fim-de-semana. Percebia-se que estavam ambos na fase de enamoramento, e a uma ida dela aos lavabos, ele fica a olhar para ela, com um par de olhos embevecidos, ao que eu o acordo dizendo ‘-Esses pensamentos, vão-te causar muita dor.’ A cara que me fez, foi exactamente a mesma que eu faria há uns anos, imbuído das mesmas crenças. Se ele era como eu, não ia perceber, acreditar, valorizar, o que eu tentava dizer sobre aquele assunto. Nem ia eu assumir o papel do velho que tenta transmitir pérolas de sabedoria que por um lado reflectem a minha experiência pessoal e nada mais, por outro, correm o risco de eliminar as experiências dolorosas de outro no caminho do seu crescimento. Papel que outros assumiram comigo, na exacta medida da sua capacidade de articulação da linguagem e das ideias que eles próprios formularam, sobre o assunto, sobre as coisas do mundo. De nada me serviu, querer absorver a caminhada de outros a partir dos meus sapatos, ou de lutar com as suas luvas, o meu oponente reflectido num espelho. Ninguém aprende muito pelas experiências de outros, tal como o rapaz não sentia a minha dor de dentes. Tal como tu que aqui me lês. Bebi a coca cola e deixei duas cervejas pagas para ambos, no meu caminho para a cama a meia hora de sofrimento.
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