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Primal

17/12/2019

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I

A tribo dela assentara arraiais no vale, fazia duas passagens de Inverno.
No rebordo do regato inclinada sobre a àgua, olhava para o seu reflexo como um Deus posterior faria no porvir.
O saco cheio de bagas alimentaria uma ou duas crianças não suas, e acima de tudo ajudaria a que ela própria reconfirmasse o seu compromisso com a comunidade que de noite se reunia em torno de várias fogueiras, ordenadas hierarquicamente por dignidade de clãs dentro da tribo, que teria 30 a 40 hominídeos de último modelo, sapiens sapiens.

A vida era curta e com alguns Invernos aparece a primeira fonte de sangue através de uma brecha entre as pernas por onde costumam sair os bebés.
A brecha está vermelha e ela olha os homens da tribo com um correr acelerado no peito, especialmente quando olha os quadríceps em esforço de carga, ou quando olhando um conjunto de homens, um ou outro se destaca por causa de como os restantes lhe reagem.
O chefe da tribo, na sua gravitas de gorila de costas prateadas, olhando para ela, submete-a completamente com o seu olhar. Se ele quisesse ela abriria o seu acolhimento para ele, apesar da sua velhice de um par de dezenas de Invernos. É o melhor caçador e aquele a quem todos agem com deferência, é o topo da hierarquia dentro da aldeia dos macacos.

Não é pelo aspecto, é pelo que poderia ser a sua vida se escolhida como fêmea do chefe.
Ter acesso às melhores e mais quentes peles, estar acima das concorrentes em dignidade. Saber sem sombra de dúvida que aconteça o que acontecer, os seus filhos terão sempre que comer, enquanto o chefe continuar chefe.
Ama-o, ideia nossa, enquanto se provar útil.

O seu valor emana de conseguir caçar um veado, construir uma palhota ou operar o milagre do fogo.
Olhando as àguas do regato crepitando nos seixos imóveis, pergunta-se a si mesma, que força fará este ser mais dotado de força, apegar-se a ela e colocar a sua vida em risco, quando o mais lógico seria fugir perante o perigo.
Porque morreu o coxo indíviduo, faz dois Invernos, na refrega com a alcateia de lobos, que ocupava a mesma área e que por isso fez mudar toda a tribo para aqui?...

Corria menos que os outros mas podia ter-se salvo se não se metesse entre um lobo preto e a mulher e filha. Que força é esta que anula a individualidade do macho, em detrimento da sua família?
Não pode ser só a vergonha de ser considerado cobarde e inferior perante os outros homens na tribo. Quando se lançou contra o lobo, levava uma expressão de desespero, angústia de nada permitir que acontecesse com a fêmea e prole.

É algo de interno.

A viúva digeriu a morte do seu respectivo e tornou-se tarefa da tribo. Nenhum homem a corteja, nem mesmo quando receptiva se inclina para apanhar bagas inexistentes.

Com algumas invernias no cachaço, os machos disponíveis, preferem mais novas, mais férteis, mais intocadas, mais capazes de se ligarem ao parceiro.
Que força é esta que permite à fêmea desligar-se tão facilmente do seu macho, e ultrapassar a dor psicológica?
Mas os machos estão sempre a morrer. O líquido branco que sai das peles penduradas entrefolhos é barato. Todos os dias se renova e acumula, até que morram. Morrem contra lobos, morrem contra outras tribos, morrem contra a sorte que desafiam ensandecidamente.
Se morrem todos em guerras pelo acesso ao regato, são esquecidos pelos vencedores e pelos despojos que as fêmeas se tornam, campo fértil para o esperma dos machos vencedores legarem o seu genoma.

Por isso a Natureza que é amiga, lhes deu a força de facilmente esquecer aquele que se colocaria na boca do urso para a salvar a ela. Porque a Natureza, que é amiga, cega o homem quando este ‘ama’.

Um (cock)(tail) químico na massa encefálica, fá-lo hipnotizar ante a deusa e sacrificar-se por ela, custe o que custar.
Ela estava perto de ser escolhida, se ao menos o chefe da tribo a quisesse como concubina…

Ela haveria de esmerar-se na apanha de bagas ou na lembrança de focos de água, e ele seria bom caçador, dedicado e dominante para com os outros. Seria o melhor recolector de recursos, para que ela sentisse a segurança suficiente para parir.


II


Os camaradas dele estavam em silêncio agachados sob a erva alta.
Um só som e a vara de javalis debandaria, ou pior, atacaria.

A vara que segurava na mão, terminando numa ponta de sílex seria uma de muitas a perfurar uma pobre vitíma imolada no altar de vida da tribo que assim se perpetuaria mais uma noite.
Estava em jogo uma noite em que se partilharia com outros o pouco branco dos dentes, ou em que adormeceriam agarrados ao estômago para mitigar a dor da fome.

Errar na caça e cada sujeito desceria na consideração dos outros.

Não precisavam de falar, olhando uns para os outros calculavam as distâncias e o que o caçador referência pretendia fazer.
Ganhara a honra de caçar com os mais velhos e por nada deste mundo perderia essa honra. Ser homem é algo que se ganha, não acontece só com o tempo. Quem sabe se daqui a umas Primaveras não o deixam escolher parceira.

Ele tem tentado, quando acha que ninguém da tribo o olha, vai ao regato a ver se apanha alguma sozinha e receptiva. Mas os seus esforços são em vão.
A virgindade e fecundidade são bens demasiado valiosos para caçadores por se tornar, sem nada provado.
Coelhos até as mulheres caçam. Caça grossa, perigosa, isso sim, dá direito a tentar a imortalidade.

O javali guincha de dor, deixando a sua prole em detrimento das lanças que repetidamente nele se espetam. Os olhos pesam e vê aproximar um conjunto de vultos que o olham como repasto futuro. Visão horrível.

A mão que não treme desfere com força a última estocada. Por verem o porco morto, os caçadores riem-se do jovem que inutilmente perfura o cadáver. Mas apreciam-lhe o carácter reflectido no rosto.
Esta aceitação fá-lo sentir estranho, com aquilo a que os vindouros chamarão esperança.

Esperança de procriar e ser apreciado pelo indíviduo diferente que é, e não mediatamente, pela sua capacidade de caça. Como no futuro as vindouras quererão ser apreciadas pela sua individualidade e não pelo seu corpo.

Sem canalização, depilação ou perfumes, a mulher pode distinguir-se apenas pela sua fertilidade e capacidade de contribuir para a subsistência. O homem, na capacidade de arriscar tudo.

Ele só queria não ser um pro forma na vida de alguém.
Fugindo ao ditame do tempo e de relatividade, porque em contacto diário com a morte, a vida se torna valor absoluto.

Ela só quer um chefe de tribo que a valide e torne especial. Que a vida é só esta, e quem tem a capacidade de gerar vida, só pensa na determinação da morte.
Agarrada ao concreto, virá a mulher a dizer-se mais ‘realista’.


III


Na mesa redonda em que um conjunto de tipos e tipas debatiam anúncios publicitários, um tinha andado em Berlim a estudar cinema, outra em Londres a estudar Publicidade, aqueloutra em Paris a estudar Sociologia com Bourdieu,e outras merdas de medalhas académicas.

E eu disse a palavra proibida, ‘-Conspiração.’

Então mas eu achava que o feminismo não era igualdade, mas uma conspiração para eugenia populacional?

Sim, 80% de ambos os géneros ficaria sem procriar, porque se cria a ideia de que elas têm direito ao chefe da tribo, e não se devem contentar com menos. E por isso eles, os 80% ficam sem acesso ao pito, e dedicam-se a jogos de computador e bonecas de borracha, e elas dedicam-se a desejar os que estão no topo, os 20% que as usam para ejacular e evacuar, agora que não precisam dos que sabem caçar apenas.

Ficam apenas os que perduram à superfície.

A Michelle, em português macarrónico arregala os olhos na direcção dos meus e aproxima-se de forma ameaçadora e coerciva, de mim.

Indiferente, olho-a nos olhos e repito o que acabo de dizer. A minha calma, ou indiferença, fá-la procurar em redor aprovação para a intimidação que procurava.
Não a obtendo, porque a forma como falei era espirituosa, e ninguém odeia outrem que faça rir, tenta ainda tirar de esforço com ataques ad homine, essencialmente de que não sou sofisticado, sou antiquado e nenhuma mulher me amaria, ou alguma me teria feito mal.

Ignorei-a o que só piorou a situação.

Passou o resto da noite a mandar-me bocas passivo agressivas, e a espumar de raiva quando eu fingia não ouvir e mudava de posição para o canto onde ela não estivesse.
Com licor beirão a mais no sangue e no final da noite, aproxima-se e afaga-meno ombro, numa parola manobra de me ver dar-lhe aprovação e restabelecer a sua confiança em si.
Eu digo-lhe:

«-Vai pentear macacos.»
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