«-Então, vieste aqui esta semana?» Dos lábios vermelhos saiu uma voz alegre que não engana no apreço pela minha presença. «-Sabes que de vez em quando tenho de vir a Cascais para ver o mar e olhar para ti.» Sorriu de novo, e respondeu :«-Acho que te enganas, vieste ver-me a mim, e olhar o mar, pois o mar não se vê, apenas se olha.» Diabos. Tem algum nexo o que diz, ou então é a minha cabeça a trabalhar mais do que o necessário. «-Não, o mar vê-se, porque nada há para ver senão a imensidão eterna e plácida, quebrada a monotonia pelo acalmante movimento da água. Já para ti olho, porque há tudo para ver.» - a coisa até saiu melhor do que eu estava à espera, dado o pouco tempo que é permitido para retorquir nestas coisas da presença de espírito. O impacto nela foi visível, não só tinha passado o teste do flirt que visa fazer um ping à minha destreza social e de mentalidade, como levou a peito o que eu disse, e ruborizou, mordendo até um lábio, que o vermelho vivo do bâton passou da carnuda superfície para um pouco do esmalte alvo dos dentes. Disfarçou, com o trejeito de arranjar o cabelo louro, e olhando para baixo, fez um esforço para se recompor a si mesma, não revelando mais do que desejava. E para variar, desviou a conversa. «-Então, que filósofo trazes hoje para a ermida?», perguntou, aludindo a conversas anteriores que tivemos, sempre que venho para aqui olhar a chanfradura estuarina, e me apetece estar relativamente só, apenas ouvindo o vento e mirando as águas, que entram ou saem, deste longo semicírculo. Invariavelmente venho com alguma ideia que li e que preciso amadurecer, e a regularidade destes meus périplos, forçou uma familiaridade de convivência com a gente que trabalha aqui nesta zona, sejam pescadores, habitantes ou esta promotora imobiliária e turística cujo stand de vidro se destaca junto à cidadela, por onde tenho de passar para aceder ao meu poiso de eleição. «-Nietzsche, e o episódio do colapso.» «-Ainda?, Tens de variar mais as companhias.» - responde-me com um sorriso maroto, que recebe resposta igual, mas não deixo de prosseguir caminho. Sentado, vieram-me as lágrimas aos olhos. Pois lembrei mesmo o episódio em Turim, não estive lá, claro, mas imaginei-o com todos os pormenores ao longo dos anos, e vejo como se lá estivesse estado, Nietzsche colapsando ante um cavalo açoitado até às portas da morte. Como que sentindo ter a exacta ideia da razão desse colapso envolto em lágrimas, não podia eu próprio deixar de chorar perante a ideia de uma falência súbita do sujeito, perante graus insuportáveis de sagacidade. Perguntava-me a mim próprio se a minha revolta e ressentimento vinham da ideia clara da anedota em que estamos metidos, ou se de uma ira gutural por ter no passado acreditado em tanta tanga, que olhando para trás, me envergonha e mostra o quanto perdi por efabulações infantis. Seja, mas tudo faz parte de um caminho e de uma determinada lição que tinhas de aprender, digo-me, para me reconfortar, nem acreditando no que digo. Então mas o que é que lamentas? Não ter comido mais gajas? É essa a medida com que aferes a vida? A desconsideração que sentes ter sido alvo? Mas tu alguma vez podes exigir a outro aquilo que tu não dás a ti próprio? Enquanto moía estas ruminações, a água fluía para fora, para Oeste, fazendo virar os graneleiros fundeados, à espera de entrar em Lisboa se o preço do cereal subir. Uns americanos ruidosos passam por detrás de mim, apreciando a paisagem, pelo mero aspecto estético, desconhecendo que olham para um gigantesco cemitério submarino, de naufrágios coleccionados em séculos de História. Curioso, do outro lado, na Caparica lá ao fundo, foi onde levei a pobre de espírito, e lhe tentei contar esta arqueologia do real, e aparar os seus achaques fingidos, que apenas revelavam os seus tiques de tiranete, dos tempos em que os rebarbados a validavam pelo seu corpo. Contava-me histórias do namorado, em que eu não acreditando em nada, podia reconhecer uma personagem, farto de estar com ela, de a aturar, uma tipa intratável que apenas sabe disfarçar, o profundo ressentimento que tem com a vida, por não ter acabado com o melhor que lhe devia caber, entretida durante anos, a exercer a sua liberdade sexual de homem para homem, entregue à vertigem de uma auto imagem que a forçava sempre ir para mais além, para o gajo mais interessante, mais sofisticado e adequado à sua visão da vida. Tanto nadou para fora do estuário, que se arriscava a morrer sozinha no cemitério, onde jazem milhares de outros. Encontrou o seu Bugio, que lhe paga as contas. Ela finge ter personalidade, lutar por causas, o feminismo, o racismo e outras. Apenas para simular ter a personalidade que não tem. Cata o vento, e tenta manter-se como prémio, para que o parasitado continue a apreciar a ferroada por onde lhe sai o sangue. Mais, ele esforça-se por manter a estocada contínua, gerindo a relação com desaparecimentos súbitos, orgulhando-se de um carácter selvagem que deixou de ter a partir do momento em que o travestiu para manter esta gaja. Duas pessoas, codependentes, fingindo e sendo o que fingem. Pergunto-me por que raio, de uma lucubração elevada, me vem a ideia desta imbecil à consciência. Porque me lembro de ter permitido mais uma vez, que uma traumatizada de guerra execrável, me toldasse a perspectiva. Aliás, ela não fez nada, eu é que tenho este hábito de dourar a mulher com as vestes de deusa, iludindo-me a mim mesmo, porque se as visse como são, não as suportaria. Por outro lado, a mulher passa a detestar-me, por a ver como deusa, não quer nem suporta esse tipo de pressão, além de que olha para nós, e pensa ‘ai sou deusa? Então és crente.» que é uma variação do ‘se a tratas como estrela, ela trata-te como fã». O que vai contra todos os filmes romcom que só são vistos por alguns homens, porque têm um quid de lógica, parece lógico que a mulher te aprecie por seres bom e útil para ela. Mas não é assim que funciona, infelizmente, e lá volto aos açoites do cavalo. O mundo está completamente além, dos caprichos da nossa mente. Está-se, incluso, marimbando para eles. É lidar, como dizem os taberneiros. O ter-me envolvido com esta, tal como mais umas num passado recente, nada teve que ver com a procura de algo autêntico, mas de uma distracção para esta amarga constatação. Uma, convencida de que me topara à distância, ligara-me e me dissera ‘-Estás é ressabiado por eu te ter largado, lida!». Não, por acaso não, se falo do abandono é porque a companhia é a forma como fujo, é que não sei lidar mesmo com esta nova e triste, adulta, ideia do mundo, pessoas e coisas. Que vejo agora, sempre existiu, mas quando somos crianças tudo é alegria cega. Antes fosse, antes fosse sentir-me rejeitado, cuspido fora, por alguém que julgando, me deu parecer desfavorável. Como me podem rejeitar, se tenho de fingir que são pessoas interessantes e de companhia agradável, para poder passar tempo com elas? Como posso ser rejeitado se eu próprio sinto que tenho de lhes dar fodões de caixão à cova, para que não precisem de procurar noutro lado, de modo a eu mesmo me poder continuar a iludir e a não ver o patético da coisa? Foda-se, afinal também finjo, todos fingimos, aparentemente. É fuga à verdade ou capacidade de sedução para a vida? Eu não as odeio, nem quero odiar. Aliás, eu adoro mulheres. Se calhar o problema é esse. Não as adores, que não são deusas. Gosto muito de mulheres, sinto-me bem com quase todas as mulheres menos com as feministas, com essas não posso. Detesto gajas frustradas e controladoras. Sonsas. Tenho mesmo de descontaminar e aprender a domar o monstro que me faz passar por estas figuras, o ego. O cabrão tem boas intenções, visa proteger-me, mas perco-me, gaja a gaja vou-me perdendo. Porra, vou passar uns tempos só dedicado ao espírito, e exercer a minha probidade, autocontrolo e dedicação a uma causa superior. Uma mão no meu ombro faz-me olhar para trás, arrancado ao meu transe como malmequer por mancebo apaixonado. Um vestido de linho branco, esvoaçava ao vento, ela tinha um colar azul ao peito, e o chapéu pérola de linho ou palha, uma faixa de mano azul e branco. As pernas bronzeadas contrastando com o branco da roupa, e um braço segurando o chapéu enquanto o outro se apoiava em mim, para se sentar ao meu lado. Ficámos umas boas duas horas à conversa. Tinha saído do trabalho e estava solta ali por Cascais, e segundo as suas palavras, decidira vir ver se eu já me atirara à água. «-E se tivesse atirado, que farias?» «-Nada, sendo a tua vontade. Apenas lamentaria, não gosto de ver pessoas infelizes.» «-És feliz?» perguntei eu. «-Por acaso agora estou possuída por uma grande calma, desde que me sentei aqui contigo.» «-Talvez seja do cemitério que olhamos.», atalhei eu, para voltar a explicar a alguém como a morte vive debaixo da beleza. Mas analisando-me senti-me envergonhado de novo, tentando impressionar alguém de modo a repetir a mesma lengalenga de sempre. «-Dizes coisas estranhas, mas por alguma razão entendo. Estás a falar aqui da Baía e das desgraças que aqui se passaram, não é?» Ri-me, e esforcei-me para permanecer calado. O Sol esgueirara-se de mansinho, e o vento arrepiava-me todo, tinha-me esquecido do casaco no carro. Ela percebendo, pergunta-me se quero ir beber um gin e eu respondo que sim, se for tónico. A resposta tinha dupla intenção. Olho em volta e era demasiado cedo para jantar, e demasiado tarde para o que fosse. «-Não estou a ver bares, além dos restaurantes.» «-Eu conheço um.» , interrompe-me ela desmontando a postura do topo do muro, e saltando para a calçada, oferece-me a mão para que a siga. Chegados a casa dela, abro a janela da sala, e vejo todo o azul que recebe o abraço da terra como se anfiteatro grego. Que grande vista. Olho de relance os retratos pelas paredes brancas, e ela depois de ter trocado de calçado, vem perto de mim e olha-me fixamente nos olhos, tão perto que sinto o calor da circulação sanguínea do seu pescoço, num torpor que me faz desejar, deitar-me nele.
0 Comments
Leave a Reply. |
Viúvas:Arquivos:
Outubro 2024
Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
|