A sua mão continuou massajando o meu joelho, sentia no seu toque uma espécie de vontade de me agradar e de apreço. Tinha de duvidar da minha intuição, afinal, também confundi por alívio a embriaguez nos bancos de jardim, quando só conseguia respirar se bebesse uma garrafa de vinho verde que me levasse a consciência do horror para longe como ela fora para sei lá onde, debaixo da terra, algures num sítio que nem imagino existir. Ela lutava contra mim, eu havia decidido que não queria mais mulheres, nos próximos anos, mas ela insistiu e perguntou-me: «- Credo João, que foi tão grave assim?» Desconfiado interpretei a pergunta como mais um ataque de vergonha que visava fazer-me inadequado, ou seja, alguém que dá demasiada importância a minudências da vida. Mas algo no seu tom de voz, fez-me pensar a sério na pergunta. Sim, afinal de que choro eu? Sim, afinal que grande mal do mundo é este sobre o qual escrevo? Posso inventar mil e uma desculpas, mas que de tão diferente é a minha experiência do mundo, que eu ache que tenho de devolver ruído ao mundo acerca do seu efeito em mim? Não é isso uma arrogância atroz? É, mas quem escreve é arrogante. Sente-se e com propriedade, acima dos conas e monhofonhas que passam pela vida, por via do seu plácido e serôdio bem-estar. A coisa chegou a um ponto, que um gajo que faça introspecção é considerado ‘artista’, se e somente se souber vender o peixe, ou seja, comportar-se de tal forma que a sua suposta vida interior seja respeitada pelos demais como expressão de uma parcela de essência divina. Respondi-lhe, : «-A bem dizer, tens razão, nada. Merdas, ou se calhar perdi a paciência…mas se calhar isso de perder a paciência é a única forma de perdermos o jogo e eu detesto perder.» Lembrei-me não sei porquê da miúda nórdica que não me larga e a quem resisto e dou para trás. Que o meu desencanto, é talvez essa a melhor palavra, me faz afastá-la, mas é se calhar por causa desse afastamento a que a forço, que me continua a perseguir por me achar o prémio. E esta merda é como as cerejas, após uma ideia outra se segue. Não há nada de errado comigo próprio, por surpreendente que pareça, rio-me de ainda pensar isto. Ou tenho conhecido pessoas de merda, Deus me perdoe, ou tenho esquecido uma regra de trânsito que não nos ensinam na escola : «Somos incapazes de amar o que não respeitamos.» Éh macacos dum cabrão. Está explicada a charada e o agir que observei em criança. As pessoas fingem e desempenham peças para serem amadas. Daí a minha obsessão com critérios de avaliação dos indivíduos. Porque é que a namorada que nunca trabalhara na vida, deixou de gostar de um filósofo que se arrastava por uns call centers? Porque querem olhar para cima. E porque era incapaz de olhar para si. Ou aquela que tinha dinheiro para as unhas e permanentes, porque não tinha de sustentar a casa, que os pais ajudavam, e a mim só a minha pobre mãe me ajuda. Não há nada de mal em mim, mas na incapacidade de introspecção de algumas. Olha o exemplo da nossa querida Susana. Escolheu o pai mais abonado para o seu filho, com o único critério de que ele pudesse pagar pensão de alimentos ao filho. Avaliou-lhe o carácter e o potencial de acumulação de dividendos. O caso da nossa Célia. Continua o mesmo trapo humano, mas cagando de alto agora que lida com médicos e já não com clientes do stand automóvel do marido. Leva umas cavacadas aqui e além, vai-se iludindo na sua imagem de si mesma, e até me contacta a ver se dou uma ideia para os trabalhos académicos da filha que também cursa Filosofia. Aproveito para a comprometer facilmente com a sua falta de personalidade. «-Não me digas que só me ligaste para obter alguma coisa de mim.» «-Achas?» «-Acho…mas dou-te o benefício da dúvida se formos jantar. Combinou-se e desmarcou como eu esperava. Sem qualquer pudor, ou vergonha. Como eu esperava que fizesse. Como sempre fez, mesmo quando me fodeu para provar a ela mesma que se vingava de mim por ter escrito sobre os seus atributos físicos. A instrumentalização do acto sexual, para fins de vingança ou amor próprio. O traste humano de nome Sónia, que aproveitou o peixe que veio à mão para castigar a cabra à solta do namorado, que de tempos a tempos a troca pelo círculo de amigos, para ao mesmo tempo, não ter de lhe olhar para a cara, e gerir a relação de forma a que ela revele por ele o apreço que nunca parece exprimir-se convincentemente. Não estou a falar mal das cachopas, é a condição humana, creio. Também tenho falhas de carácter, muitas. E isto que relato não é um episódio de gueto que vês nos movies. É o pão nosso de cada dia dos que estão acordados quando olham para as relações entre os sexos. E mesmo entre membros do mesmo lado da barricada. É o mundo de cão. E é por isso que escrevo, não para envergonhar as quadrículas que exponho, mas para mostrar o quão melhor que isto podemos ser. Mas ela continuava a massajar-me as têmporas enquanto me observava a pensar os caminhos mais que batidos destas minhas lucubrações, como se fosse algum anjo da guarda meu, divertido entre as minhas hesitações de como agir perante os dilemas morais…retribuo em género ou dou a outra face. Sem que eu dissesse alguma coisa ela retorquiu: «-Eu sei amor.», repetindo baixinho ao meu ouvido enquanto me festejava o cabelo e respirava quente nos lóbulos das minhas orelhas. «-Deixa isso.É passado. Só existimos eu e tu agora para a frente.» Sim, ela tinha razão, que lamento eu que relações de merda tenham acabado com atitudes medíocres das mulheres que não conseguiram ter qualquer respeito por mim, apenas porque as tratei como iguais. A maior parte das supostas rupturas ocorreram quando eu próprio já nem consegui olhar para as suas caras ou largá-las para ser mais feliz. É o meu único pecado a cobardia. Então João de que te lamurias tu? Se calhar o mesmo que elas, não consigo amar abaixo de mim. Preciso de um ídolo que me suplante e seduza para o Céu. Mulholland Drive - 2001 - David Lynch
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