I Miguel foi um dos melhores escritores da nossa geração. Para o fim, costumávamos ficar horas pela noite dentro a falar um com o outro sobre gajas e literatura. O ponto de ruptura dele, aquele em que o Colonel Kurtz passou a ver o horror, foi quando descobriu ter sido instrumentalizado por uma pessoa feminina de quem gostava, para que esta pudesse em privado e surdina, vingar-se do seu namorado. Nisso tenho casca mais dura que ele. Já mo fizeram algumas vezes e tive mais espírito para aceitar que ele. No seu mundo, havia ainda algum idealismo segundo o qual não há necessidade de as pessoas se enganarem. Muito menos quando sem a isso serem obrigadas diziam coisas que podem fazer o receptor entregar-se de forma genuína. E ser por isso trucidado sem apelo nem agravo. Quantas vezes lhe disse para não levar em conta o que lhe diziam, mas o que faziam. «-Miguel, é guerra. E em guerra só um lado vence, o dos homens.» «-Pá ó João, não é tanto assim. Nem quero andar com tanta energia negativa em mim por causa de gajas que atraio, provavelmente porque também ou não sei escolher, ou só atraio as maleitas que residem em mim.» Tínhamos estes debates estratégicos, por entre soro e beeps de máquinas de assistência de vida. E ele ria-se quando as catedrais lógicas erigidas para explicar e enquadrar o comportamento feminino se tornava de tal dimensão que ele, desabafava que se as gajas soubessem o quanto um tipo pensa sobre ao ângulos que nem sonham que cobrimos, deixariam de nos achar tão parvos. E eu respondia-lhe que isso era má leitura dele, pois o homem foi à Lua, e calcula as rotas dos navios no mar, mas qualquer pindérica com dois dedos de cara pode com duas pregas de carne controlar o espaço e os oceanos. Não é preciso ser-se muito esperta, apenas tirar partido da burrice em que neste aspecto a evolução nos condicionou. Afinal se fôssemos imunes ao instinto copulatório, o rácio de 17 para 1 de mulheres que na história do mundo legaram os genes à geração seguinte, por contraposição com os homens, estaria equilibrado. O homem é o sexo dispensável, descartável. Há que lidar. O que só acentua mais o desprezo que têm por nós, vendo-nos capazes de alta capacidade de abstracção em matérias que geralmente repelem o interesse feminino, e afinal tão vulnerável a manipulação por algo que nem precisa de ser muito desenvolvido por elas, o sex appeal. Do género, podes ser muito bom e esperto, mas eu tiro-te do sério e dou-te a volta até à tua completa anulação. Susana, sempre ela, funcionava dessa forma. E detestava que o parceiro pensasse assim, na procura das suas falhas de congruência, porque isso a obrigava a esforçar-se mais do que achava necessário, de acordo com o valor que dava ao alvo. Queria que o alvo acreditasse e confiasse, pois só assim conseguia a projecção, o harai-goshi perfeito. Ele ouvia-me calado e eu via no seu rosto que nada podia retorquir, apenas lamentar reconhecer que eu tinha razão. Outras vezes era ele que me devolvia o meu remédio. Se eu admitia que ela agisse assim comigo, porque acreditava no que ela dizia. «-Mas em concreto, João, que conseguiste tu desta interacção? Uma cópula, e meses da tua atenção não sexual, preenchendo os tempos mortos do outro que não lhe passa cartucho e que age com ela de acordo com o que dela conhece. Parece-me que estás a racionalizar. Mata esse hamster gordo e confortável. É o comportamento, o comportamento afere…» Eu interrompia, «-É complicado, sabes…» Ele interrompia-me «-Diz-me isso sem lhe lixiviares o comportamento.» Então era eu que me calava. Eu passava em revista como tropa na parada, os silêncios, os afastamentos, as alturas das suas aproximações sempre sob a desculpa de algum texto que eu publicasse, as desculpas que dava para as suas faltas de carácter que designava de temperamentalismo, a cristalina facilidade com que me atropelava a individualidade, sob uma capa de completa irresponsabilidade pelos seus actos e sua implicação em mim, supostamente porque não me conseguia ver como vítima, porque supostamente somos todos adultos e deveríamos saber como funciona o jogo. Então era eu que baixava a cabeça e tinha dificuldade em engolir a realidade. Não era complicado. Era por mim provocado, apenas esperava um resultado diferente, como que se redentor da humanidade feminina, ou quem sabe se a perpetuação da minha obtenção de valor que não me consigo dar, através do elogio da fêmea, e a abertura de pernas é o maior elogio que a fêmea tem para dar. Então não era eu que respondia prontamente a mensagens, e estava sempre disponível para supostamente largar tudo o que fazia para ir ter com ela? Passando a ideia de entrega total, que já sei que me retira o carácter de desafio, e por isso faz a fêmea retrair-se e desqualificar-me nas suas escalazinhas de avaliação. Era eu que planeava e executava o plano, esperando que a sofisticação deste espécime em particular me surpreendesse, e reabilitasse todo o seu género. No fundo não queria a gaja, eram as duas maiores forças em mim a tentar obter algo através dela, o meu ego e a sua incapacidade de admitir derrota, o meu impulso para o amor cortês, o da lírica camoniana, a querer resgatar-se a si mesmo do mundo em escombros após a certeza de que as mulheres são todas iguais. «-Dude, a tua psicologia está a dar cabo de ti. Sabes perfeitamente que voltou para o namorado e nem teve a dignidade de to contar em primeira mão pois quer que corras atrás, ou pior, nem fazes parte da equação. Pelo que contas nunca fizeste. A não ser na tua cabeça de racionalizador orgulhoso, e resolvedor de problemas. És pior que Ícaro. Admite derrota. Perde para te poderes ganhar.» Eu ficava a pensar nisto e na facilidade com que lhe reconhecia razão, contraposta à dificuldade em aceitar o que via como claro. «-Foste usado como Joker, olha como eu. Uma carta no baralho, que se guarda em silêncio e sem muita utilidade, senão em alturas chave do jogo. Ela nunca se interessou por ti, foste apenas uma chave inglesa no plano dela de desmontar a canalização a ver se a água corria melhor. Pelo que me contas, ressabiamento com justa causa ou não, fê-la convencer-te de algo sem correspondente na vida concreta. Jogando em dois tabuleiros, o fácil – o teu—onde bastava acenar com o lenço da sua atenção, e o do outro, difícil, mas sempre a escolha prioritária para ela, pelo envolvimento emocional e material que ela já tinha nele.» «-Tens razão, tens razão, lembro-me dos elogios dela e de perceber isso na sua entoação. Uma espécie de prémio de consolação que me dava para branquear ou asfixiar a voz da sua consciência.» «-Sim, ela tem um plano de desmantelamento do outro, que a conhecendo, lhe resiste, e vê lá tu que ela não o larga. Eu que estou de fora consigo ver, que apenas te dá a promessa de escolha, para que permaneças voluntariamente no anzol. Tu não vês porque tens o ego investido. Cega-te.» «-Suponho que tens toda a razão Miguel. Apanhei-lhe várias incongruências no discurso, que guardei para mim, e automaticamente foram para trás da minha mente. Porque é que me faço isto?» «-Porque és um cona mole.» Ri-me, ele tinha toda a razão. II Antes de ter entrado no IPO, Miguel tinha tido um caso com uma rapariga de valor de mercado abaixo do dele, particularmente agora, que havia ganho vários prémios literários, era convidado para todo o lado e estava a ser conhecido e reconhecido. Era um gajo alto e bem constituído, e de feio, na minha forma de avaliar homens, só uma verruga preta na ponta esquerda do nariz, que lhe dava um ar de Gasganete, dos Estrunfes azuis. Vestia-se bem, era um pouco reservado e observador em sociedade. O que o fazia transparecer como estranho. Depois de se falar com ele, a conversa fluía agradavelmente. Foi assim que o conheci na casa de um dealer de droga, que me interpelou no Copenhaga. Segundo falámos mais tarde, tentou demover-me da performance que acabei por desempenhar drogado, mesmo sem me conhecer, mas que não era comigo que estava a falar, era com um gajo drogado igual a mim, copulando em torno de uma piscina. Pediu-me conselho. Como descartar a miúda sem a magoar ou afectar a já de si baixa auto-estima. Eu dei-lhe a fórmula. «-Liga-lhe três vezes por dia a dizer que a amas, no mínimo três. Responde-lhe prontamente e sem excepção a qualquer mensagem que te envie, indicia planos teus de relacionamento futuro e planos a dois feitos só por ti. Escreve-lhe textos e sempre que a escutas, dá a tua opinião, e envolve-te em todos os seus dramas. Acima de tudo, age como se estivesses sempre disponível para ela, como se nada tivesses para fazer ou ninguém atrás de ti, ou por quem tenhas interesse. O objectivo é passar uma imagem de ti sem opções e fisgado.» «-Mas tu és parvo? Eu não quero nada com ela, isso vai dar-lhe a ideia oposta do que quero!» «-Cala-te e faz o que te digo.» Uma semana depois ligou-me. Que eu era um génio. Que tinha feito o que eu lhe dissera e que a tipa que não o largava, o esperava no trabalho sem se fazer anunciar, só para lhe provar quanto gostava dele, ao fim de uma semana de vulgares demonstrações de afecto, lhe pedira um tempo, que a vida dela estava complicada e epá afinal era melhor levar as coisas com calma. Percebi também que o interesse dele por ela aumentara, por lhe ter visto o completo despudor com que agira, ora amando ou dizendo que amava, ora descartando. Por isso acrescentei algo para lhe ficar no ouvido: «-Elas não amam como nós Miguel. Incondicionalmente, só amam os filhos. Somos ferramentas para elas, com maior ou menor estima. Elas amam oportunisticamente, nós idealisticamente.» Ele pareceu resistir. Para fortalecer o meu argumento, citei-lhe a Lei de Briffault « the female, not the male, determines all the conditions of the animal family. Where the female can derive no benefit from association with the male, no such association takes place. » Disse que depois falaríamos. Esbofeteávamos realidade um ao outro assim, no pouco tempo em que nos considerámos amigos. Ele dizia-me para não levar as coisas a peito, eu dizia-lhe para não perder uma capacidade masculina única, o amor idealizado, só por causa de gajas. Ele falava-me de devolver na mesma moeda as falhas de carácter dos indivíduos, eu falava-lhe em supra manipulação, em moldar a percepção do outro de tal forma em que fica a pensar que nos manobra com os nossos sentimentos, que supostamente escancarámos, apenas para sermos nós o observador último do seu acto criminoso apanhado em flagrante delito, sem que disso se apercebesse. Ele batia com o pé no soalho do Martinho da Arcada, com os Converse azuis, e dizia que grande ideia para novela de mindfuck eu lhe estava a dar. Eu respondia que já ia tarde, pois era sobre o que eu escrevia. Sobre fingir até o fingimento. E sobre os pontos altos desta guerra, quando os indivíduos dizem não confiar nunca no que penso ou sinto, porque finjo, manipulo e influencio. Onde sempre respondo o mesmo «-Os iguais reconhecem-se.» Sobre um dos meus casos mais interessantes, ele era cristalino. «-Dude, manda-te nudes para te fidelizar e controlar como gatinho. Sabe sem saber que a vista de carne é promessa de carne. As suas descrições do que te vai fazer na cama não passam disso mesmo, promessas de tempo futuro, para te raptar no presente. No fundo ela está a jogar o mesmo jogo que tu, a usar os estratagemas mais básicos do livro, para te esfregar na cara que a tua suposta sofisticação não passa de uma lisonjeadora ideia que queres ter de ti mesmo.» Miguel, a soprar-me realidade desde que o conheço. «-Todas as aproximações e afastamentos são instrumentais, visam retirar-te o poder na relação que só tu achas que existe. De forma a que a persigas, valides, e ao mesmo tempo ela sinta a vitória e o elogio da tua entrega. O ponto bom nisto é que pelo menos ela te vê como adversário digno do esforço de anulação. O ponto mau, é que não deixas de ser adversário. Nem deixarás. Vês, ela também tem o ego investido em ti, como profiláctico para o seu orgulho. O jogo é isto, retirar dos outros o quer que seja que achemos que precisamos para viver. No real ou no psicológico.» E eu a pensar, exactamente como Susana. «-Nesta batalha de egos e orgulhos não há prémio de consolação. É guerra sem quartel. Pensares que ela fica a perder no futuro se não te der a mão, é uma racionalização de bébé chorão, que o teu ego formula para se proteger de ser mais fraco.» O gajo que em surdina se lamentava da aspereza do real, parecia faca quente sobre o monte de banha quente que sou. Nos últimos dois meses, deu autógrafos na Feira do Livro, indicando-me a dedo todas as seitas da burguesia pseudo-intelectual lisboeta, que fazem retiros e meditações e merdas, de forma a comprarem a boa consciência e se convencerem que são adultos e fazem mossa nas injustiças do mundo. Das noitadas regadas e dos papos dos queixos caídos pela idade, disfarçados a base e pó de arroz, da magreza instrumental onde anteriormente a linfa e o tónus muscular moravam. Das fodas mal dadas, por nunca terem aprendido a foder, por causa de feitios de merda que ninguém atura senão os rebarbados, os sem opções, ou os coleccionadores. Das narrações entusiasmadas de sexualidades menos convencionais como que se retractassem a condição humana lida em livros de alfarrabista, das partilhas de experiências sexuais como que se de viagens ou capítulos de um trajecto de vida, sem respeito pela emotividade envolvida, a privacidade e a dura constatação de que ao fazê-lo se mostra aos outros quão damaged good se é. Sentado na banca da Relógio de Água, já quase cadavérico, o encontrei e combinei com ele mais tarde, uma visita. Contou-me que o pior que levava desta vida, e chamei-lhe logo estúpido, não se fala assim pá. Mas nem eu acreditava com convicção na esperança que queria dar ao outro. «-O pior que levo desta vida João, é o contraste, quando ninguém me conhecia, ninguém me convidava para jantar ou palestrar, ou sequer ouviam o que eu tinha para dizer. E sempre disse variações do mesmo. Só porque ganhei uma merda de um prémio, e vendo mais papel, todos os dias tenho gajas a fazerem-se a mim, dondocas da linha e afins, convites para aqui e para ali, a intelligentsia quer-me e procura-me, numa masturbação de reconhecimento mútuo. Quanto mais conheço este gajedo sofisticado mais aspiro às mulheres simples que me atendem nas bombas de gasolina ou no supermercado. Lamento os afectos fingidos sem necessidade nenhuma. Dá-me náuseas a futilidade classista dos que dizem ser anti classes e depois se justificam rodeando de suposta cultura sem debate do que está implicado dessa cultura. Da suposta validade da cultura popular, desprezando o princípio de razão suficiente do porque tanta gente aprecia o Quim Barreiros. Entender não é o objectivo. A burguesia dos boulevards lisboetas é bafienta mesmo com gente relativamente nova. Almejam a boa consciência recorrendo ao pedantismo. O pior que levo desta vida, é perceber que podia ter comido mais cona se não fosse tão canibal.» Ria-se no final destas palavras. Trinta e cinco anos depois de ter nascido, recebia gomos de terra num dia de Setembro, no Alto de São João. Eu, o editor e alguns membros da família. Nenhuma conquista anterior se dignou aparecer. Nem aquela a quem ele dissera três vezes por dia amar.
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