I
Por onde quer que me perca, posso eu ou tu, encontrar Vénus por todo o lado. Parece que a coisa se divide a meio, com mais indivíduos para o lado delas. A probabilidade de encontrar mulheres que te façam feliz o olhar, é grande neste mundo abundante, seja qual for o nicho por onde te esgueires. O meu era o da pseudo intelectualidade. E digo ‘pseudo’ porque sempre fui muito prático, e o exercício intelectual pela intelectualidade, sempre me pareceu uma masturbação sem fito que não o movimento de mãos. Tem de haver, para mim, algo acima da razão e da cultura, algo que se apreenda por via da razão e se exprima por via da cultura, mas que a elas não se reduza. Então dou por mim a escrever para um blog obscuro qualquer, e a vogar pelas ruas de Lisboa em busca da próxima palestra de escritores famosos, a quem invejo em parte não o talento, porque cada um tem a sua voz, mas as seguidoras que nunca faltam em estruturas hierárquicas de prestígio social. Mas isso é porque sou um preguiçoso de primeira. Ou então a calcorrear museus, recitais, exposições, workshops ou encontros. Tudo o que me dê a ilusão de contribuir para a minha ilustração cultural, tudo o que me leve para longe do Inferno de enfrentar a minha individualidade perene. Chegado a esses eventos, em vez de prestar atenção ao conteúdo da malta que se leva demasiado a sério e que coça a barbicha à intelectual, colocando a palma da mão no queixo e fechando a mão em torno do queixo, acompanhando-o num sentido descendente num gesto análogo ao fôlego do onanismo quando descendo pelo falo, se prepara para nova ascensão, olho para outras distracções. Quando filósofos, poetas e escritores, ou historiadores, geógrafos, ‘cientistas sociais’ falam do mundo e da realidade, ou dos outros, como algo sobre o qual é possível falar como se de um território bem definido pela sua observação, estou eu a olhar os alvos no espaço que me circunda. A fisionomia dos decotes, a receptividade na linguagem corporal – tem ela os braços cruzados ou uma cara de enjoada, está atenta aos cruzamentos de olhares ou vive embrenhada no seu mundo e fecha-se ostensiva mas elegantemente sobre ele – se me agrada, tem as pernas bem feitas, é bonita de cara, que feitio se esconderá por detrás do rosto, se fuma, se fuma sei que brocha bem, se brocha bem gosta de foder, portanto é alguém interessante para me distrair da minha dor. Tento disfarçar bem, meneando a cabeça fingindo concordar com o orador, perder-me defronte de um quadro qualquer que faço com que me hipnotize, não quero ser visto como predador sexual, que sou a tudo o que me agrade acima da idade legal do consentimento, não penses que por motivos morais. Não. Não me interessa o que pensem de mim. Apenas por uma questão de eficácia. Ao contrário do que fazia quando era adolescente, não revelo a minha cara de depravado às moçoilas, na esperança que se excitem com a minha explícita disponibilidade sexual. Elas são, sei agora, bem mais complexas que nós, gostam do jogo tanto como do resultado pouco original da cópula. Eu é que achava que se ficava excitado de imediato com o desejo de mim por parte de outra alma, essa outra alma ficaria em igual estado por me saber excitado carnalmente por ela. Tolo eu. Agora, que deixei as coisas de criança, sei que é até um ar de desapego que molha as pregas do desejo. Um ar de não precisar de luxúria e até estar demasiado feliz sem ela. Como Atlas pansexual, carrego o peso do fingimento, tornando-o arte. Tudo para que funcione. Vinte e um séculos depois de Cristo, trinta e tal depois de algum faraó perdido nas areias, ando eu de novo como caçador recolector, de migalhas do que seja a condição humana, navegando em cabotagem pelos cabos do feminino mapeando a costa, e rezando aos deuses, que nenhum baixio me encalhe ou faça naufragar pelo caminho. II Admito, sou drogado. O dealer é a mulher. A droga está no meu cérebro, oxitocina e endorfina. Os sentimentos inebriantes da paixão da corte e da antecipação do sexo novo, como o vinho novo em pipas para o povo guardar. O cocktail de químicos que me leva a Deus, e me traz ao Inferno com a rejeição e ruptura, em sucessões de altos e baixos que me iludem sobre a passagem anónima do tempo da minha vida, esquecendo o absurdo disto tudo, e a complacência que tem de vir com esse esquecimento. Certo dia, ruminando sobre esta minha dependência, que tornara foco na minha vida, numa palestra de um escritor bem mais novo que eu e bem mais sucedido, que escreve bem, vende melhor e tem o melhor grupo de gajas que o idolatra, pensei se não havia passado ao lado de uma boa carreira literária precisamente por não conseguir escrever sem o meu vício. Em vez do malte do Cardoso Pires, ou da adrenalina do Hemingway, fiz da vulva a cenoura da minha caneta. Claro que a vulva nada tem que ver com isto, já te disse, eu quero é as drogas fechadas na massa encefálica. No grupo de gajas que seguem esse escritor mais novo e sem este vício meu, por certo por via da fartura, e a fartura traz sempre relativização, vi-a. Porra que gosto de gajas que se vestem classicamente, misturando bem o pano, com o corpo. Saia cinzenta com bolas pretas, numa espécie de tecido viscose que lhe assenta como seda por cima de pernas perfeitas, proporcionais e depiladas, com sapatos de salto alto em branco pérola com a abertura na zona da biqueira que parece uma uretra masculina oval espreitando o céu e revelando umas unhas convexas geometricamente perfeitas e com esmalte escarlate. Uma língua viperina nasce no calcanhar dos sapatos, desviando seu abraço em pele de bovino para ambos os lados do pé reunindo-se no peito do mesmo. Entre ela e a sola, destacam-se um tornozelo bonito e uma pele bronzeada com o contraste certo entre o branco adivinhado da planta do pé e o restante bacanal de melanina que se espalha sobre uma carne tonificada muscularmente. Não é um pé desleixado, é um pé que revela a personalidade da portadora. A sua blusa branca, sob um torso proporcional e que sustenta um soutien branco com alças transparentes, que consigo adivinhar porque o calor da sala a fez desapertar mais um botão, as mangas arregaçadas e o cabelo impecavelmente apanhado em rabo de cavalo, e um rosto bonito como poucos fazem-me escolher esta pessoa como a próxima ilusão do meu arsenal. Toma notas num caderno, o que não deixa de me surpreender, afinal está a tirar notas de quê? Pensava que isto é para malta que vem aqui fazer o mesmo que eu, distrair-se, mas que não gosta de arraiais de bairro nem de música pimba. A caneta que usa, prateada e elegantemente esguia, pouco tem a ver com as esferográficas de hipermercado ou as berrantes canetas rosas com a estampa das Spice Girls que boa parte do gajedo nestes eventos usa.Tudo nela transbordava elegância, comedimento e presença de espírito, algo no seu olhar e compostura emanavam vida interior. No final da palestra, quando se reune a malta toda em grupos aleatórios, onde todos fingem não estar a gravitar para os elementos do painel, transitando de grupo em grupo até estarem mais próximos do mais ilustre, em sorrisos fingidos e casualidade fingida, fingem uma aleatoridade que não existe senão como fingimento. Ela, não parecia partilhar essa dinâmica, o que é o que todos querem aparentar, excepto menos aqueles que não estão de facto a fingir. O escritor lançou um livro o ano passado, que li uma página na Bertrand, e tive de o pousar, pois o gajo escreve demasiado bem, e eu não quero quebrar ilusões sobre mim. Está a um canto, fingindo que não precebe o bailado gravitacional à sua volta com as mãos nos bolsos à cowboy que vinha nos maços da Marlboro quando fumar não combinava com fotos abjectas e mensagens à ‘They Live’ do Carpenter. Está a rir-se e a melhor gaja da sala a fingir que está a falar com ele por causa de uma paixão pela escrita, ao invés de uma paixão pela notoriedade do escriba. Aposto que se for falar com ela de desqualifica de forma boçal. O projecto agradou-me como forma de divertir-me a mim mesmo, uma vez que ninguém me aborda para conversar e estou aqui num canto, entregue ao tédio. Aproximo-me dela, toda vestida de preto, mini saia justa e blusa justa, sapatos pretos, cabelo preto e óculos com armassão de massa, grossa mais que lhe assentam impecavelmente. Aproximo-me pelas costas. «-Boa noite.» «-Olá.» - responde ela surpresa, olhando a minha cara para ver se identificava se me conhecia previamente, ou não. «-Gostas do último livro?» «-Gostei muito, acho que é o melhor dele.» «-Que mais te chamou a atenção?» «-Eu gosto de livros que me dão bofetadas. Que me inclinam para um lado e me rasteiram para outro, e que quando acabo de ler, pouso o livro, bebo um copo de vinho e fico dormente a digerir a aleatoridade do real, e o dormente da razão humana ante um mundo extremamente estranho, avesso a apreensão.» - responde, mordendo o lábio inferior, e passando a bola para o meu campo, fartinha de ouvir este tipo de abordagem, na qual eu começara a falar já derrotado, por causa de não ter uma abordagem original. Levar um ananás enfiado nas calças teria sido mais eficaz, para diferenciar dos outros. «-Ainda bem que és daquelas pessoas viciadas em letras, pelas letras, pela masturbação da prosa sem clareza conceptual. Se bem que esse teu arrasto para interpretações marginais da realidade, me obrigue a perguntar-te se acreditas que ou a realidade é complexa, ou a tua tesão pela bofetada não passa de uma paixão pela fantasia que te arrasta para o concreto inesgotável e inapreensível desta realidade que desconheces quase por completo, mas que procuras de forma heterogénea ou alternativa. Um pouco como a malta que sonha com viagens a Paris e Nova Iorque, achando que já domina Freixo-de-espada-à-Cinta, mesmo sem nunca lá ter passado.» Devo ter saído um pouco do registo habitual, não pela interpelação elaborada, mas mais pelo confronto opinativo, raro nos culambistas que a abordavam. Sinal disso foi uma paragem momentânea no olhar dela, de afabilidade social, cordialidade de circunstância, e sem que pudesse evitar olhou-me de cima a baixo, para tentar preencher buracos na sua imberbe teoria acerca de mim. Olhou para as minhas sapatilhas gastas e com sola branca suja e meias de cada cor, escondidas sob umas calças largueironas, de ganga de feira, e que uso por causa da barriga de cerveja que me dilata a cintura. A camisa preta, ratada no colarinho por má qualidade do algodão, e dois botões desapertados prometendo um peito semi depilado, e o blazer cor de mogno, sob um ligeiro arqueamento das costas, e o meu rosto bonito, os meus trejeitos intelectualóides, como perder o olhar num ponto abstracto no espaço concreto, ou o assentar a palma da mão sobre o meu escalpe, como que se auxiliando a cabeça a pensar sobre tudo o que surja na conversa, como que se a cabeça fose uma espécie de biblioteca com todas as leituras que aprofundam os assuntos, e então a mão afaga o crânio enquanto o olhar revela um esforço de arquivista para consultar os corredores longos da memória, articulando novas ideias a partir do cruzamento das antigas, transparecendo para o exterior uma espécie de agastamento ao mesmo tempo que esforço deslumbrado em persistir no que é vedado, o fazer sentido deste mundo tão complexo. «-E tu és…?» Percebi que estava fodido. O argumento tornara-se secundário se eu não revelasse ser alguém na vida que ela respeitava. «-João, prazer.» - desviei o ónus estendendo-lhe a mão como cumprimento, para que me a apertasse. Um sorriso amarelo instala-se na cara dela logo seguido de um presságio de enfado. «-Olha João, tenho de falar ali com umas pessoas, já retomamos a conversa daqui a pouco.» Derrotado, mas confirmando o meu viés de novo, disse que sim com a cabeça e convidei-a a seguir, com um gesto de mão como se a estivesse a deixar passar à minha frente numa fila qualquer. Dirijo-me para o balcão para pedir uma cerveja, e de costas para o mesmo encontra-se a tipa que já de falei com a saia de viscose cinzenta com bolas pretas. Olhava-me com um olhar divertido e analítico, e ao mesmo tempo expectante, também ela parecendo auscultar algo em mim. Ao primeiro gole da imperial, percebo o que estava aferindo, o meu grau de afabilidade porque ela queria dizer-me algo e todos nós aferimos sempre como é o outro e como reagirá à nossa presença e interpelação. «-Deve doer, ser desclassificado assim.» - diz ela com um ligeiro esgar de lábios esboçando um sorriso, numa espécie de explicitação de cumplicidade ou compreensão pelo que testemunhara. «-Meh...»- esbocei eu mais gasto que desiludido, «-Nenhuma gaja é impossível de ser seduzida. É tudo uma questão de tempo e conjugação dos astros. Ou melhor, há duas tácticas principais.» «-Quais?» - diz ela claramente divertida. «- A do caçador e a do recolector. Um vai e busca somente as mulheres que estão realmente interessadas nele, o outro investe numa estratégia de longo prazo, captando a atenção e o baixo interesse delas, mas como computadores funcionando em rede vai fazendo ping, nas várias fases da vida do indivíduo para aferir a sua disponibilidade e mesmo fragilidade. É o verdadeiro abutre, pairando e deixando-se levar pelo ar ascendente, só olhando e abrindo as asas, esperando que algum banquete se torne em imóvel cadáver.» Ela parece interessada e eu continuo. «-Ou seja, eu podia ceder às condições dela e fingir como todos os outros que aceito ser mais um a lamber o seu ego dando-lhe atenção. Posso continuar isso por anos, enviando-lhe de tempos a tempos uma mensagem ou fazendo um telefonema para saber como está. Eventualmente no seu trajecto, precisaria de atenção, ou comiseração, ou precisaria de alguém para falar, e eu começaria a espalhar-me como metástase pela vida dela, e num moroso processo, chegaria a um ponto em que a viciaria em mim. Não como gajo que respeitaria, mas como bengala emocional, como vasilhame para as suas emoções e frustrações que ela sabe sem dúvida que ele não pode gostar dela apesar de fingir que sim. Ninguém pode amar outro se não se ama a si, e jogar o jogo de números do abutre não é amar, é esperar por um dia triste da mulher para meter o pé na porta. Algures o desespero e a solidão tomam conta dela e ela lembra-se que não sendo a primeira escolha, o culambista é ainda assim uma escolha. Ele parece dedicado e contrariamente aos anteriores, continua de volta dela sem alguma vez ter sexo. Alguns abutres dão-se bem, elas passam a amá-los, mas a maior parte contenta-se em ser prémio de consolação. Portanto é um jogo de números e uma questão de estômago e paciência. E tu, como te chamas?» Rindo-se de forma enigmática responde «-Chamo-me Catarina.» Mostrando curiosidade acrescenta «-E porque não jogas esse jogo, dá a ideia que dá alguns resultados.» «-Sou demasiado orgulhoso e codependente, preciso da validação que amor genuíno por parte de outro dá. Curiosamente, é essa carência que impede o outro de nos amar dessa forma. Poucos conhecem o sexo fruto de desejo puro, a maior parte só obtém uma transacção comercial, sexo validacional em que um valida o outro, por n motivos. Andar atrás de uma tipa que só recorra a mim como última escolha é algo que não casa bem com o meu orgulho. No fim, obtive resultado, mas não consigo desligar do processo, há gajos que sim.» Falávamos como dois velhos conhecidos. «-Mas o jogo vale a pena, não é só a fraqueza psicológica que tens, é uma corrida pela transmissão de genes.» - e fiquei a pensar na exactidão disto que ela acabara de dizer. «-Sim, tens razão. Mas o jogo, a dissimulação, são habituais na Natureza, cabe ao indivíduo aceitar ou não. Eu não tenho paciência para tipas que fazem prolongar o sexo, que fazem esperar para ceder a sua intimidade. Não porque seja preguiçoso, que sou, ou porque não entenda a necessidade de preservarem a sua imagem. Mas porque já vi demasiadas fazerem render o peixe a tipos decentes e a oferecê-lo de imediato a tipos que se esquecem do nome delas no dia a seguir. Ficava chocado com isso. Hoje respeito toda e qualquer uma que não imponha a si nunca fornicar no primeiro encontro. Algumas sabem e são instrumentais nisto. Outras continuam a assumir o papel de prémio a conquistar, a ser adorado e bajulado, só porque o seu género é expresso como o belo.» A verborreia fluía sem parar da minha boca. O interesse expresso por ela, aumentava de forma gradual, na minha leitura das suas feições, arrastando-me numa dinâmica de a tentar impressionar com a minha sagacidade e articulação de ideias, como se alguma vez ser um cromo molhasse vulvas. Quanto mais me sentia validado pela expressão de interesse genuíno dela, mais espalhava a minha rede teórica sobre a interpretação do mundo, como que se procurasse uma confissão de assomo dela para comigo. «-Queres que um ser mais fraco fisicamente, se coloque numa situação potencialmente perigosa, só porque os homens não são seguros do seu valor?» Isto soou-me a provocação. «-É igualmente penoso para mim, sei lá eu se for para a cama contigo se não tens um picador de gelo debaixo do colchão.» A minha boçal frontalidade visava soprar o trigo do joio. Com a introdução de uma sugestão sexual na forma de exemplo, verificava a reacção do indivíduo. Se demasiado ofendido, não interessava, pois a cabeça exigiria demasiada manutenção só para ter o corpo. Se levasse na boa, já sabia qual o sino que tocava no meu campanário e portanto não se podia fazer desentendida, apenas negar o avanço. Não negou. Sorriu até e perguntou «-Tens noção de que estás a desconversar?» «-Tenho. » «-E tens noção de que essas mulheres que falas são uma minoria. As mais inseguras tudo farão para manter o tipo e por ele serem respeitadas, já que os homens acreditam que uma tipa fácil é uma tipa que não suscita confiança, logo é apenas boa como situação de recurso, como a escolha que a gaja fragilizada faz pelo abutre que falaste ainda há pouco.» Fiquei parvo e sem palavras. E pasmado, ela não recorria a tons rosa e espiritualidade de circunstância. Falava na minha língua e contrapunha-me com as minhas próprias ideias. «-Estarias totalmente correcta não fosse o facto de as mulheres serem as selectoras, ponto. Até que ponto essa vontade de manter não é ficcional, ou pelo menos até ao melhor prospecto aparecer, e com ambos os pés na dúvida, considerar o upgrade para algo melhor. A vontade de manter uma boa imagem, nada tem que ver com o gajo, uma vez que o alvo masculino é sempre uma sexualidade irrestrita e disponível. A vontade de boa imagem é uma estratégia de sobrevivência social. A mulher precisa mais do grupo que o homem e precisa mostrar que é credora de respeito pelo seu compromisso com o legado de genético de um gajo que a queira. Ao assinalar a sua virtude está a dizer que quem me emprenhar, tem garantia de paternidade já que eu não engano, e toda a malta da tribo pode ver que estou com a continuidade da mesma, portanto protejam-me em conjunto.» «-É provável.» - responde ela. Fosse outra qualquer e diria que eu estava a ser redutor reduzindo tudo a psicologia evolutiva. Foi quando senti que esta era especial. Foi quando perdi o jogo. «-Quero ir comer caldo verde contigo.» «-Achas que por te dar conversa vou aceder a passar tempo contigo? Ainda para mais vi-te ser rejeitado por outra, sem o apreço de outras como posso não duvidar do teu valor?» - disse isto bastante divertida, e algo na minha cabeça desligou, ou melhor ficou em curto. «-Estou a brincar, bora que tenho fome.» Sentados virados para a 24 de Julho, observava-a a comer, delicada e com cuidado em cada gesto, fazendo do acto um ritual e não algo a despachar. Sempre agarrada a um caderno negro, que, sem exagero, de 10 em 10 minutos consultava ou rabiscava, sem perder o fio à meada fosse qual fosse a conversa. O fragmento de porco abraçado por um pão quente asfixiante largava o aroma e vapor para o ar, e a sopa verde com lótus circulares de gordura girando sobre um eixo imaginário provocava ruídos de sopro a todos os que a sopravam para não queimar a língua. O olhar vivo e penetrante dela parecia vir até ao fundo de mim, como se uma comunhão de substâncias existisse entre nós, ou uma diferença tal que ela não podia não olhar. Convencido que por estar a comer comigo, tinha interesse e que o mesmo exigia escalar a interacção, a falar com ela coloquei a minha mão na dela como se de nada se tratasse. Ela faz uma cara de alguém que vê algo absurdo e pergunta «-Achas que escalar é a resposta? Que sinais indicadores te dei eu para achares que podias avançar? Achas que por seres homem é suposto ires sempre em frente mesmo quando não consegues decifrar os sinais cruzados?» E eu, «-Porra, parece que estás dentro da minha cabeça.» Ela, «-Nem imaginas como.» Levanta-se, beija o dedo indicador da mão direita, deposita-o na minha testa e olha-me com um olhar constrangido entre um fingido desejo de entrega e um imperativo de qualquer ordem que o impedia. Combinaçao tão perigosa como eficaz. III Um gajo fica a pensar que é só uma questão de insistência ou esforço para conquistar a fortificação. Que é um equilíbrio de lâmina que a qualquer momento pode pender para qualquer um dos lados. Mas a arte está em dar a ilusão de que pende para o lado que queremos, quase quase em ponto de desequilibrio inevitável. Como no jogo, é a miragem de vitória que vicia. Vejo-a sair pela porta por onde uma brisa nocturna lhe afaga a saia que se junta ao corpo evidenciando as pernas bem torneadas e revelando por fim uma mulher completa. Outros balbuciariam que era areia a mais para a camioneta, para mim era mais uma promessa de deserto...não fossem algumas coisas que me deixaram a pensar. Vês também fico viciado como jogador inveterado, arrogante como sou, por perceber qualquer mecanismo. Também me preparava para ir embora, quando ao meter a mão na mesa vejo um papel do tamanho de um isqueiro, com o número dela. De um momento para o outro a melancolia do dia que se avizinhava cheirava a vitória de napalm. Menos mal, mais um acto para a peça. Seguiram-se dias de troca de epístolas electrónicas onde ela habilmente sabia que botões tocar para me extorquir mais investimento. Quanto mais eu elaborava ideias e frases para exprimir exactamente o que estava a pensar, ela respondia com frases lacónicas ao meu investimento e depois com elaboração mais complexa das frases dela se por acaso eu me fartava e respondia mais espartanamente. Era um hábil jogo de saber manter o peixe na linha, sem que não desse luta mas também não partisse a linha, vencendo-o por exaustão ou colapso nervoso. Mas para isso tinha de haver o velho Sr. Desejo. Lá forcei o segundo encontro desta feita na terra dela, algures na Margem Sul, e lá chegado fomos a um bar num 13ª andar com vista para a Arrábida. «-Que pensas das Letras portuguesas?» abre elas as hostilidades, quase me fazendo engasgar com o ginger ale vitaminado a rum. «-Epá, eu tirando os velhos mortos e o Lobo Antunes e mais um ou outro, não ligo a nada. Leio os livros que me apetece ler, mas continuo na senda da minha voz.» «-Tu és muito assim, desligado, embora não pareças.» Havíamos sido colegas, ela alguns anos depois, na Faculdade de Letras. Ela era de Línguas e Literaturas. Exprimi-lhe a tesão que me dava teoria da literatura, especialmente como forma de violar o espírito de alguém através de rabiscos pretos num papel ou ecrã, e dessa violação sair um orgasmo e um filho. Ou filha. Abrir a cabeça de outro e colocar lá a inquietação. Ela de camisa preta desapertada 3 botões deixando os flancos dos mamilos olhar o mundo cá fora, calções pretos 4 dedos acima do joelho. E o cabrão do caderno preto, onde era regular e ávida a tomar notas. Indaguei sobre isso, o caderno. É um hábito antigo, sabes também escrevo e com pessoas interessantes tiro ideias para mim, que de outra maneira a minha capacidade de lembrança faria perder para sempre. Um gajo fica lisonjeado. Em ponto pequeno era uma mini palestra onde uma gaja boa me validava com o corpo e com a atenção. Levanta-se e caminha na direcção da casa-de-banho. Cabrão que sou, pego-lhe rapidamente no caderno e abro na página que penso que ela tinha como alvo do bico da caneta. Li: «Indíviduo com algum interesse, mas mais próximo de Ícaro de que Ulisses. Tem a mania que é esperto e é o seu maior defeito. Tem textos em www.viuvaprofissional.com com alguma graça mas muito rudimentares e naif. Tem a mania que é sedutor. Pensa denunciar tácticas de manipulação feminina, e ser competente na exposição das mesmas. Há qualquer coisa nele que o coloca ao mesmo nível de ou um deus menor ou de um pobre diabo. Penteado imperceptível, barriga de cerveja onde por certo se distrai de existir, nisso e provavelmente muito sexuado em virtude do calão e vernáculo que utiliza. É um vencido amoroso, falando da tristeza dos amores perdidos, incapaz de seguir em frente e racionalizando porque permanece agarrado ao passado. Parece à procura de uma relação qualquer que o permita suportar a solidão e falta de companheirismo. Portanto pouco certo da sua experiência da realidade. Segue o livro branco de engate, pensando me descartar ao terceiro encontro sem sexo. Não ter cuidado com seus sentimentos, pela sua arrogância e por achar que consegue ou pode esfregar na cara de alguma mulher, as leis biológicas que devem ficar incógnitas para todos. De facto, é para destroçar, vingar o mal que já deve ter feito, vingando-se de amantes com os seus joguinhos psicológicos de justiceiro. Julgo que acredita que remissão é redenção. De fácil manipulação e de paixão ainda mais fácil. O passo seguinte será enunciar uma plêiade de sentimentos únicos que sinto por ele de forma a que o mesmo se entregue em bandeja, e o passo para isso será dado caminhando eróticamente pelo seu ego. Numa palavra, codependente. Vampiro emocional incapaz de produzir vida, parasitando a dos outros, usando a sua líbido como motivador principal.» Ao vê-la regressar, lá ao fundo, fecho rápido o caderno, com folhar perfumadas, não sem antes ler de relance, www.maridoamador.com . Durante alguns minutos não sabia o que dizer. Ela perguntava se queria mais alguma coisa para beber. Quando voltei a mim, já me tinha habituado à ideia de mais uma viúva, onde eu gravitaria ao de leve na sua teia. Esta tinha aspirações literárias e a mesmíssima forma de análise que eu tenho. Estou perdido, pensei. Não, agora é uma questão de teimosia. Levantei-me da mesa, beijei o indicador, e colei-o na testa dela dando com a minha boca um sonoro beijo na atmosfera. Ela espantada a olhar para mim, demorou uns dois minutos a associar. IV Saí porta fora e engolindo o orgulho, disse a mim mesmo, carta fora do baralho. Ignorei as suas mensagens, e os suas chamadas frequentes. Ignorei as manipulações que tentava, tentando-me fazer sentir culpado de a ter usado de a ter gozado. O que lhe estava a custar não era o meu afastamento, mas a não concretização da vendetta a si prometida. Cometi o erro de atender um número que não conhecia. Era ela de outro telefone. Que precisava de ver que tinha ficado perturbada. Não, que sejas feliz, não me voltes a ligar. Ficou mais desesperada e disse que se concordasse nunca mais me importunaria. Ok, onde. Na sua casa. Deves estar maluca. Mas algo me disse que isto daria texto. Acedi. Entrei pela porta para um hall rectangular e paredes forradas de livros. Toda a casa era uma sandes de livros, só que neste caso o conduto estava nas extremidades. E o tijolo cimentado, no meio. Na sala numa pequena mesa, dois copos de vinho. Sentei-me no sofá, e ela perguntou-me se eu queria comer alguma coisa, respondi que não, olhando para volumes de Proust, Gabriel Marcel e muchachos. «-E então que me querias dizer?» «-Ai tão bruto e rispído para mim, que mal te fiz para ficares assim? «-Nenhum, também não te tratei mal, apenas não quero lidar contigo.» «-Posso saber porquê?» -«-Podes. Li o teu blog, és uma recolectora. Não te importas de envolver com alguém para sacar uma história.» -«-Eu estudo pessoas, e gostei de todos com quem me envolvi.» Levantei-me gorando-lhe o plano de me amolecer com tinto, e ela entrou em pânico. Agarrou-se a mim, julgando que os calções justos e a camisa de homem branca, sem soutien por baixo seriam suficientes para me fazer ter calor. Ao fazer mais força para me libertar dela, puxo-a para mim desequilibrando-a, precipitando a boca dela na minha. Perdi-me num beijo profundo, em que cada um abria mais a boca para assimilar o outro como se tratasse de um jogo de assimilação canibal. Rasguei-lhe a camisa de marca expondo dois redondos seios e entornei-lhe vinho para cima que depois me dediquei a lamber, sob camisa e sofá manchados. Ela contorcia-se e eu estive próximo de entrar em transe. Meto-lhe a mão entre as cuecas como cunha em asa delta, e verifiquei que a obra da divindade era boa e húmida, senti-lhe a pulsação, e de repente olhei seus olhos pretos. E disse bem alto «-Estou-te a ver puta. A deusa não manda aqui!» Ela ficou sem reacção e cobre-se. Por certo cheia de medo por pensar que eu era maluco. Beijei o meu indicador, pousei-o no joelho dela, pedi-lhe desculpa e disse «-Não era para ti, era para a deusa.» Fui descendo pelo elevador rindo-me de mim próprio.
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