O ritmo, a paragem silenciosa e o arranque fulminante de uma procissão de notas irreverentes numa espécie de stacatto com música só para si, dentro da melodia principal. Vodka tónico após vodka tónico, abano o pézinho e deixo a cabeça bailar sozinha, até concluir que por agora tenho de fazer render a bebida, mais uma e passo a meta em direcção à falta de controlo. Gosto de vir aqui, gosto de bebop num dos poucos espaços de Lisboa em que encontro malta que como eu gosta de todo o tipo de música, com um jeito especial para a ingenuidade do jazz. O jazz mais ritmado relaxa-me, o mais melódico torna-me melancólico e dá-me vontade de chorar. Nenhuma do grande Duke me deixa bem-disposto ou com esperança. Até com o mestre dos mestres, Beethoven, nas mais tristes encontro sémen de esperança. Fatalidade não fatalista. Não com Duke. A sua leveza e filigrana espetam-me com os cornos numa depressão. Depois tenho de encher-me de força de novo, com heavy metal industrial, quanto mais pesado melhor. Quanto mais violentos os riffs, mais me sinto encher como pneumático encostado ao solo, até à pressão em que funciono melhor. Dou por mim, a meio de um solo de bateria, a pensar na peculiaridade da minha individualidade, podemos fingir muita coisa, mas não as preferências musicais. Danço a cabeça a cada percussão no timbalão e dou com os olhos a querer fechar para obras como que se o vodka quisesse orgia com o meu fígado e desejasse apagar todas as minhas luzes para fornicar à vontade. O toque que sinto no ombro, demora por isso mais tempo que o normal, e quando abro os olhos demoro algum tempo a enquadrar uma cara que me olha divertida e submissa pela abordagem. Os lábios vermelhos e os dentes brancos, o cabelo louro muito claro ajudam a identificar, Petra. «-Como estás. Lembras-te de mim?» diz. «-De saída.», respondo. Estendo-lhe a mão para a cumprimentar, ela olha-me surpresa e como que indignada. Vem atrás de mim até ao balcão, a perguntar-me se estava zangado com ela. Respondo, claro que não, estou mal disposto preciso de ar, bebi demais parece-me. Saio cá para fora, sento-me num degrau e finjo que fumo um cigarro que nunca fumarei e dou assim mais solenidade ao acto de pensar na vida. O fresco da noite força-me a ficar mais claro no pensamento e a arrepiar os pêlos dos meus braços sob a camisa que pede o casaco por cima, e não ao meu colo enrolado como chouriço. Levanto-me e encosto-me no parapeito onde posso ver parte da minha querida Lisboa, namorados visitam bocas uns dos outros lá além a um canto, trocando energia amorosa entre eles. «-João, porque estás zangado comigo?» Olhei para trás e não era a minha companhia. Lembrei-me agora que a tinha deixado lá dentro, lembro que me estava a tentar fazer ciúmes, com um colega de escola qualquer, fingindo-se divertida ao mesmo tempo que me olhava para ver a reacção. Geralmente funciona porque tenho um semblante sério, e o meu estado normal parece portanto zangado, quando estou perdido em pensamentos, no caso presente a pensar nos meus gostos musicais. Mais por descargo com a minha consciência, envio uma mensagem por Whatsapp, a dizer que estou mal disposto e saí, se quiser sair cá para fora, para não se preocupar. Petra continua a olhar-me, exigindo atenção. «-Petra, não estou zangado contigo, senta-te aqui comigo.» «-Não, meu vestido não deixa.» - apanho-lhe a primeira pista de sotaque eslavo nesta frase. Dói-me o rabo, levanto-me de novo. Ela oferece-me uma garrafa de água. Gracejo, «-Petra, és muito magnânima com o inimigo.» «-Tu não és o inimigo, não digas disparates.» «-Estou a brincar.» O fresco da água que escorre pela traqueia irmanado pela brisa fresca da noite às 4 da manhã, recompõe-me e começo a pensar se não foi o café que bebi horas antes, que me tenha feito mal. Esta malta que vende café não faz manutenção às máquinas e sabe-me sempre a queimado. Queimado. Queimado estou eu. «-Petra, vou andar um pouco, e vou comer alguma coisa, depois vemo-nos e falamos melhor, espero que esteja tudo bem contigo.» «-Eu vou contigo, também não me apetece ficar mais aqui, especialmente agora que saí.» «-Ok, vamos, conheço ali um paquistanês que está refundido dentro da loja mas que me conhece e abre a porta.» apontando o caminho convidando com o meu braço esquerdo. Bato à porta e abre o Khalid. Falamos em inglês, pergunto-lhe se quer comer uma bifana que pago eu, e o muçulmano pergunta-me qual foi o resultado com o Porto, num bate boca bem-humorado com que os homens testam o bem estar mental uns aos outros. Não tem permissão para ter estaminé aberto a esta hora, e portanto, quem conhece sabe que ali, como que traficando psicotrópicos, há sempre um vendedor pronto a fazer mais uns trocos. Uma garrafa de água para mim, e um rissol vegetariano para forrar o estômago. Para Petra uma mini, e um pão com chouriço. Levei-a para um miradouro perto, pouco frequentado e que conheço desde os tempos em que trabalhei a montar computadores, quando a actividade ainda era lucrativa. Chegava com a minha mala de mão, carregado com livros de Kant e Heidegger, das aulas, e trabalhava até às tantas da noite, fumando mais erva pela actividade dos meus colegas de trabalho que pelo cigarrinho que me calhava. E que não sendo fumador nunca me faltou. Não sei porquê, nos vícios que não tenho, sempre quem me rodeia, faz questão de partilhar comigo, que eu participe. As luzes cintilavam como grilos cantando na noite, e começo mesmo a ficar como gosto de estar, afiado, bem-disposto e presente. Ela com os joelhos juntos e virados um para o outro ia degustando a sua refeição, e a garrafa de Super Bock no chão apartada uns 50 centímetros do seu corpo, o comprimento do seu braço, ostensivamente para ter liberdade de mexer as pernas sem a derrubar, se assim precisasse. «-Petra, como está a tua filha?» «-Está bem, está em casa com o pai. E está muito bem.» Aquele «está muito bem» soou-me a desnecessário. «-Que idade tem ela?» Demorou mais algum tempo a responder, a braços com um pedaço de mão menos bem mastigado que demorava mais tempo a descer pelo esófago. Vermelha pela aflição passada, responde «-4 anos daqui a um mês.» Tens foto dela? Mostrou-me no visor do telemóvel e abanei a cabeça como que dizendo que sim. «-É bonita, mas de cara sai pouco a ti.» Ela riu-se. «-Cala-te, ela é toda eu, só os olhos são do pai.» Brinco com um gole de água na boca. Olho para a obra pombalina. «-João, ficaste zangado com aquela noite, o jantar?» «-Não. Acho que foi desleal, mas não fiquei. Pelo contrário, permitiu-me dizer coisas, irrelevantes, mas coisas, que queria dizer a algumas das pessoas presentes. Mas depois, além do alívio, dei comigo a pensar no patético da situação. De nada adianta argumentar com quem te desqualificou sem saber porquê. Ainda ficam a pensar que é dor de corno, ou de cotovelo. Pouca gente vê além disso.» «-Sei exactamente o que referes. Deixaste-me sem respostas e obrigaste-me a rever algumas crenças que eu tinha. Gosto de pessoas como tu, que me obrigam a enrijar mais as minhas convicções.» diz ela acabando com a côdea. «-Se a única função do meu discurso é ajudar a defender as ideias que já tens, tu não estás de boa fé num debate, apenas numa refrega em que instrumentalizas o outro.» «-Vês, são esse tipo de coisas que dizes, que me deixam a pensar.» «-E de nada adianta porque vais continuar a encarar-me como oponente.» «-E como não, não podes negar a opressão patriarcal desde sempre às mulheres.» «-Não nego, pura e simplesmente porque acho que é uma fantasia útil, para projectar um artefacto político. Diz-me os documentos históricos que comprovem isso, que amanhã às 9 da manhã estarei na Torre do Tombo e posso consultar.» «-É um facto!» responde ela indignada. «-Em ciência não existem factos, apenas hipóteses de trabalho. Partilha comigo as tuas fontes, que não tenham sido veiculadas por feministas. Eu conheço alguma parte da história do esclavagismo, e não conheço uma única marcha exclusivamente de mulheres para terminar com o tráfico. Nos registos que consultei.» «-Mas claro, seriam obliteradas se saíssem para a rua!» diz Petra. «-Queres-me dizer, que apesar de afirmar a superioridade da mulher sobre o homem, o feminismo actual admite a profunda incompetência feminina em milénios de opressão por uma espécie humana inferior, que só suplanta o terno sexo por via da força? Poupa-me. O mais simples de acreditar além desse dogma que papagueias, é que as mulheres dos esclavagistas lucravam com o tráfego. Ponto. Não há cá superioridade moral por via de ter vagina.» «-Mas tu não és capaz de admitir a violência que todos os anos ocorre contra mulheres?» «-Sou e não a diferencio senão por via da maior agressividade e força, e mentalidade atávica, dos outros crimes contra pessoas. Dizer que por ano morrem 24 pessoas mulheres às mãos de homens, relativiza as 66 mortes que por serem entre homens parecem não ter relevância, como que se matar uma mulher por ciúmes ou sentimento de posse fosse mais grave que matar um outro homem por uma discussão sobre terras.» «-Eu não consigo falar contigo.» diz ela visivelmente agastada. «-Consegues, estás é tão habituada a ver o teu querido dogma reforçado e adulado por onde quer que ouças e vejas, que me vês como chauvinista se não dou para o peditório.» «-Eu não te vejo como chauvinista.» diz ela baixando gradualmente o tom de voz, como que envergonhada por dizer o que está a dizer. «-Não sei. Por vezes sinto que sou eu que estou no centro de uma brutal manobra de gaslighting ou doutrinação. Por vezes sinto-me impelido a ter de enunciar o não ódio a um qualquer argumento em particular, para me distanciar do juízo que daí possa vir. Não porque tenha medo do que pensem, mas porque quero levar a argumentação até ao fim, sem ser interrompido com adjectivos. «-Eu percebo isso, percebi isso no jantar. Não vi mágoa da tua parte pelo desfecho mas pela natureza da interacção com as pessoas. A ti não te custa seres rejeitado, custa apegares-te e seres separado de quem te apegaste.» diz-me olhando-me no rosto.» «-Porra Petra, agora foste tu que me deixaste sem palavras. Acho que tens razão.» «-Consegui ver nos teus olhos as ruínas de amor pelas que estavam em torno da mesa. Até pela Célia. Não um amor revivalista ou de oportunismo, mas de suplantação da existência normal, pessoas que partilharam momentos de carinho contigo deixaram marca. Por isso não insisti muito contigo, tinham-me contado coisas de ti que não confirmei na tua presença.» «-Claro Petra, quem te disse o quer que seja de mim, tem a sua compreensão e as suas formas de arrumar os outros em categorias e juízos. Para proteger o ego, ou para sair bem na autofotografia, criam-se discursos de redução do outro, eu. Alguma vez Anabela iria admitir a sua natureza falsa, insegura e hipergâmica, quando é mais fácil dizer que tenho este ou aquele defeito? Ou Cristiana admitir que eu presto atenção e me interesso pelas actividades dela, mas que é a sua estrutura judicativa que me reduz, porque acha que arranja melhor que eu, mais conveniente para a sua mundividência ou todas as patranhas que se arranjam para ‘racionalmente’ reduzir ou mascarar o outro?», digo eu, fazendo com as mãos os gestos das aspas quando disse ‘racionalmente’. «-Racionalmente? Como assim?» «-Um pouco como umas lentes que se usam e ao fim de algum tempo esquecemo-nos que as usamos. Uma razão só de tempos a tempos examinada, passa por razão, sem o ser. Sem análise constante não passa de um conjunto de lugares comuns que visa dar-nos alguma segurança no mundo, passando a ideia ilusória de que o conhecemos. E muita gente vai além, afirmando a pés juntos de que isto é liberdade, a liberdade de optar de acordo com as nossas ideias feitas. Eu por mim dou sempre, o benefício da dúvida. E em abono da verdade, sinto-me às vezes uma beca superior, por perceber isso no outro e saber que eu não sou assim. Perceber a insegurança do outro e imaturidade, preso nos seus lugares comuns mais escondidos, que se revelam a mim, se atento à sua argumentação e escolha de palavras, como é meu costume. Penso conseguir ver que no fundo o que o outro está a fazer, é a convencer-se a si mesmo, de uma decisão já tomada, e que a posteriori encontra a ‘razão’ ou a desculpa para uma decisão que tomou emocionalmente.» «-E qual é o problema?» insiste Petra. «-Nenhum, acho. A liberdade do outro está aí, penso. Em enganar-se como quer. Tenho de acatar e até me divertir um pouco. Como que se conhecesse a Terra a partir de órbita e ouvisse o discurso de patos sobre o que é voar.» «-Isso soa-me um bocado a desculpa de mau perdedor.» diz Petra sorrindo. «-Não sei.» rio-me também para ela. «-Se calhar. Mas não me vejo assim. Pelo contrário, considero-me bastante ‘vencedor’ em todos os aspectos da minha vida. Olha, o maior é agora só me querer envolver com quem tenha envolvimento emocional profundo, que não dependa de mim.» «-Mas não eras assim?» «-Não, era um verdadeiro marchista. Marchava tudo, o que vinha depois era o sentimento, urdido á maneira que te falei, tomar a decisão antes e justificá-la depois, a posteriori. E não é que acabo sempre por gostar, de facto, de quem escolhi gostar?...» «-Como farias comigo.» pergunta, com um semblante anormalmente sério. «-Não faria. Não me envolvo com quem não sinta que tenha significado, além da minha decisão. Ou há química, ou não há. Entre mim e tu não há.» «-Mas ainda assim, como farias?» Permaneço a olhar para ela. «-Eu não tenho método Petra. Talvez seja esse o meu método. Dependeria da tua personalidade. Do que eu apreendesse dela. Não sou bom em checklists, sinto-me preso. Exponho o melhor que consigo o que sou e espero que o outro seja inteligente o suficiente para ir fazendo o meu raio x de forma a que goste do que vê e não que seja para preencher algum plano secreto seu. Sou o que sou, e tento lutar contra ser o que acho que o outro quer que eu seja, quando fico demasiado em suspenso do seu afecto. Regra geral sou dialógico quando sei que jajão não molha cuecas. Enfim, um não método, mas que te interessa isto.» «-Nada.» a resposta soa a desilusão, mas não comigo. «-Petra, dá-me ideia que escolheste o teu marido de acordo com a ‘razão’» «-Porque dizes isso?» «-Vi alguma esperança numa espécie de aspiração a validação minha, nos teus olhos. E quase que juraria que me respeitas mais a mim, que discordo de ti e não vou nas tuas merdas, que ao teu marido. Se bem, que caso eu gostasse de ti, estava tramado. Não conseguiria agir facilmente de outra forma, e assim sendo, ganharia o menos apegado.» «-Suponho que tens razão, mas que pessoa, que esposa sou eu, se o admitir?» «-Uma pessoa que tem carácter, pelo menos de testar as suas ideias. E que não usa a moda de projectar culpa na outra metade da população, para justificar os seus insucessos.» «-Sim, mas em relação ao meu marido…» «-Tal como deixo nas mãos do destino ditar-me quem me rouba o coração, e esperar que o que é meu a mim venha, também tens de interiorizar que se calhar aquilo que achas que queres não é o que te faz mais feliz.» «-Por isso gosto de falar contigo. Gosto de ouvir essas patranhas que dão que pensar.» iluminou-se o seu rosto eslavo, aliviado pela descarga da culpa pessoal por contraposição a linhas de vida escritas estelarmente. «-Os géneros, foram feitos para cooperar, não para competir. Mas enfim, posso dar-te um abraço?» «-Podes.» Abracei-a, e olhando as luzes lisboetas com Parkinson à distância, dei-lhe um beijo na testa e disse-lhe para ir abraçar o marido e a filha.
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