Arrastava-me pelas ruas dos meus vícios maldizendo os crimes cometidos contra o meu corpo. O meu coração prometia desgraça, fraco, tímido e débil, por anos de inactividade e indolência complacente com a pandemia. «-Posso-me sentar?» pergunta uma voz ao meu ouvido, arrancando-me de olhar o horizonte ali perto da Estação Fluvial do Cais das Colunas, para onde as minhas esperanças embarcavam amiúde, indo visitar família à outra margem, e voltando por breves momentos, sem se fazerem anunciar. Assim ando eu ao sabor das minhas esperanças e desesperanças que outrora também passavam por ter mulher, que me desse sexo, distracção e validação para poder viver comigo próprio e provar ao mundo que sou passível de ser amado. Que sina esta de servidão, considerava eu, manietado por ter ou de fugir de mim, ou enganar os outros, para me sentir bem. Que há no meio de tudo isto senão uma vergonha tóxica que me leva a acreditar que há algo de errado em mim, que me minto, que me trato mal, que não me defendo, que acredito por vezes, que os fins justificam os meios. «-Ei, yo! Posso sentar-me ou não? Estás a pensar na morte da bezerra?» insiste ela essa voz, meio ofendida por ter de insistir na pergunta, meio divertida com a minha completa entrega a um pelotão de pensamentos. Olho para a origem do som e vejo que é a Regina, e a Regina não é daquelas pessoas que quando encontra alguém conhecido numa esplanada de café, por trás, lhe tapa os olhos, para que o cego momentâneo, adivinhe. É do outro tipo, mais inteligente, do que vem até a um dos nossos lóbulos da orelha, e com uma voz quente promissora e terna, nos mete dentro da cabeça doces, ou venenosas oscilações do ar transformadas em impulsos eléctricos aprazíveis, a que chamamos ‘som’. «-Não sei o que tens nessa voz, mas já estou com o barrote pronto.» disse eu, e estava. Estava preparado, como alguém que acorda de manhã antes do despertador tocar, mas não queria sair da cama. Isto é, naquela fase da minha vida, ainda tinha interesse pelo sexo, mas pouco ou nenhum pelas mulheres. E ela insistiu de novo «-Yo, não estás a ouvir? O que é que se passa contigo hoje?» Confesso que não tinha ouvido nem em surdina, o que me perguntara. Disse-lho. «Perguntei-te se me ias deixar assim, depois do que me acabaste de dizer, nem um beijo me dás?» Tive de fazer um esforço para lembrar do que havia dito, mas por coerência já avançara o beijo, onde ela esmagou a boca contra a minha, um pouco atabalhoadamente, pensei, mas com vontade, sem dúvida. A meio caminho da luta de línguas carnudas é que me lembrei que lhe dissera que estava entesado. O beijo só viera solidificar mais o meu estado prévio, e apeteceu-me dizer-lhe para irmos para um quarto qualquer ali perto, mas depois lembrei-me que a cópula é tão perene como qualquer outro vício. E que depois de consumada só me apeteceria estar a sós com os meus pensamentos, que ainda é a única e última forma que tenho de me sentir fiel a mim mesmo. Lembrei-me que pensava, na estrada que separa a Torre do Tombo, da Faculdade de Letras e que se esgueira para a Faculdade de Ciências, há vinte anos atrás, que a mais genuína expressão da minha entidade humana, era o sentimento. Que o quer que surgisse de um húmus emocional em mim, seria a verdade do que eu era. O que me tornava volátil, inseguro, incerto, caprichoso e impulsivo. Como foi possível ter acalentado esta crença tanto tempo? Ela percebeu que as nossas bocas estavam coladas mas eu já divagara para outro lado qualquer. E afastou-se para a sua cadeira. Para honrar a memória desses tempos de completo engano, para mais eu lia Kant e a sua definição de liberdade enquanto legisladores e súbditos de nós mesmos, disse-lhe o que pensara. Que a queria levar para um quarto e foder até ao Armageddon ou até ao fim deste mundo com batimentos cardíacos irregulares de bomba atómica. Seus olhos animaram-se, mas assim que disse que não podia, que estava constrangido de tempo, vi que ela se desiludiu e adoptou uma postura defensiva e ressabiada, que muitos podem confundir com recobro de dignidade, mas que agora vejo que não passa de falta de hábito em ouvir um ‘não’, ou de saber lidar com a rejeição, rara para quem tem uma cara tão bonita como a dela, lábios pintados de vermelho vivo baço cuja convexidade parece abraçar os raios de Sol que se esgueiram por entre as nuvens, pernas bonitas e bem tratadas, magistralmente encaixadas nos seus 177 centímetros de feminilidade. O seu cabelo preto é posto entre a minha visão do seu rosto e os seus próprios olhos, de forma que tomasse a compostura sem que eu visse, e adoptado o sorriso que visa fingir a indiferença para com este desfecho inesperado, diz-me também, de forma falsa e condescendente: «- Eu também não posso, tenho de ir dar aulas agora.» A forma como disse isto lembrou-me que estamos naquele nível de confiança mútua onde o outro não é ainda res conhecida e familiar, mas ainda um relativo estranho apesar das vezes em que acordamos juntos na mesma cama. Muitos amantes interpretam isto de acordo com uma prisão de grau variável, que ocorre sempre mais numa das partes que na outra, do tipo ele ou ela está mais caída por mim que eu por ele ou ela. É reconfortante para quem pensa assim, pois assim os pares ordenam-se numa hierarquia de valor no mercado da carne, é que o mais caído pelo outro é sempre aquele que tem menor valor de mercado na feira do engate. É o que mais precisa do outro, e eu sabia que a partir de determinado número de cópulas, não tenho a disciplina para me desgrudar emocionalmente das cachopas com quem tenho afinidade. Portanto a minha recusa era um caso de zelo pelo meu bem-estar. Tantas e tantas vezes que vi elas mascarar esta crua dinâmica, com o uso da carta do amor. O seu sentimento de insegurança revela-lhe interiormente que eu sou o prémio (pois não fui ainda desvalorizado pelo excesso de familiaridade, sou ainda res a conhecer), e tentam ganhar o meu apreço e afecto até ao ponto que as reconforte o suficiente para que eu pareça garantido. Para camuflarem essa sua insegurança, lançam-me poeira para os olhos, como um bom ilusionista sabe fazer, com ostensivas e teatrais demonstrações de afecto, para desviar o meu olhar da mão sob o recto do títere. «-Vieste para aqui escrever?» disse secamente. «-Vim, gosto de olhar o Tejo pelo meio daquelas colunas, e imaginar as vidas que passaram entre elas. Faz-me sentir nostálgico, nostálgico a partir de imaginações de vidas abstractas que suponho terem ocorrido.» Vendo-me quase desafectado pela sua presença e beleza física, aumenta o grau de aridez, e começa a fingir tédio, e ansiedade, de forma a pressionar-me a representar para ela, não por causa do teatro em si, mas do esforço que a reconforte, sabendo que parte do seu anzol se cravou na minha carne. E ao mesmo tempo é ela que se debate, a minha indiferença é sedutora para ela, pois não me encontra um ângulo de desqualificação, não percebe uma falha na armadura, que tantas vezes no passado a levou a deixar outros pobres diabos a falar sozinhos porque não lhe deram a atenção que ela achava merecer. O seu fascínio aumentava, pois eu tinha dito o que para ela era familiar e óbvio, que a queria foder, mas agia de forma contraditória, quase enfadado pela sua presença, especialmente depois de eu mesmo ter dito que o sexo não ia ocorrer. Era a contradição que a seduzia. A incapacidade de me encaixar nas suas certezas acerca do mundo que para ela tinha a sua idade, 26 anos. Também isso lhe guilhotinava o cérebro, um gajo mais velho como eu, não lhe beijar o chão à passagem, com medo de perder a pele esticada, o hálito sempre fresco pela manhã por ausência de interstícios dentários que ocorrem com a idade mais madura por retracção das gengivas, a stamina sexual com que nós homens gostamos de nos enganar confundindo-a propositadamente com desejo pela nossa pessoa…Não, eu estava tão enigmático e sólido como as colunas que me atraíam o olhar. Por fim cedeu, e teve um infantil acesso de cólera. «-Não sei para que escreves essas merdas, és sempre o herói, o bonzinho da história, vives preso ao passado e degradas-te no presente por isso. Odeias as mulheres, especialmente as que foram tuas no passado, e passas esse ódio às do presente. As tuas personagens não têm dimensão porque os teus textos não passam de solilóquios.» Adoro esta palavra, «solilóquio». Parte do seu olhar é expectante, tenta perceber se a sua provocação provocou efeito em mim, atacando a minha obra de arte, o texto, e a mim, por proxy. O alvo não era o texto, mas a minha compostura emocional. Um ping de submarino lançado para perceber por onde me pode afundar. Sorrio para ela, e de forma inesperada pego-lhe na mão, que se retrai um pouco por ela estar num estado emocional de ira, que é incompatível em parte, com uma demonstração de afecto, e é precisamente por isso que o faço, beijo-lhe a mão da forma mais terna e lenta que consigo, o que só lhe aumenta a confusão. Depois respondo sem olhar para ela, e olhando para as colunas, pois olhar directo nos seus lindos olhos azuis, seria expor uma parte de mim como prémio regatado pelas suas acções, quebrando parte do feitiço. «-Eu não odeio as mulheres, de todo. Odeio as feministas, sim. Odeio com todo o meu ser, mas não odeio as mulheres. Eu adoro mulheres, evito-as apenas quando sei não estar em estado de lidar com elas, pois existe um traço de carácter previsível no feminino. É sobre isso que escrevo. E escrevo para mim, não é para mais ninguém. Escrevo-me para me entender diante a Deusa, é só.» Pouso a mão sobre o seu joelho jacente sob uma liga cheia de estilo, parecida com aquelas dos anos 20 ou 30, da decadência de Weimar, e ao massajar-lhe a perna digo que é uma pena ter de ir dar aulas ali em Belas-Artes pois o que me apetecia era mesmo usá-la como tela numa cama. Beijo-a na bochecha vermelha, levanto-me deixo uma nota de 5 euros para pagar os cafés, e caminho na direcção do Martinho. Viradas costas às colunas, perco-me a pensar sobre o mapa mental do Pessoa, mas subitamente distraio-me, com uma mão que se encaixa na minha, e assobia à trolha para um táxi que está a passar.
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