I
Imagina. Imagina só. Imagina que processas a realidade com uma ordem sequencial de instinto-emoção-razão. Imagina que o sexo oposto que te complementa processa a realidade numa ordem sequencial de instinto-razão-emoção. Imagina. Imagina que esse género que se te opõe, tem 17 vezes mais testosterona, causando 17 vezes mais desejo sexual que o teu. Imagina que esse género tem mais dificuldade em lidar com a rejeição e ruptura, e cai mais facilmente numa espécie de torpor psicológico a que muitos chamam ‘amor’, isto é, a expressão exagerada de um instinto que visa proteger a expensas próprias, a vida da fêmea e da prole, ante os predador dentes de sabre. Imagina que ante essa força debilitadora no outro, o teu aspecto se sobrepõe e te dá o poder sobre essas marionetas do desejo, e que tu sabes que esse aspecto em nada depende de ti senão de uma sorte genética. Imagina que esses sobre os quais exerces efeito, são maiores, mais fortes, mais inteligentes e mais decididos que tu, mas que o teu aspecto se sobrepõe a tudo isso, e que aprendes com o tempo a mestria de usar a promessa de sexo para conseguires manipular esses exemplares superiores física e intelectualmente, mas inferiores emocional e psicologicamente. Esse ser mais inteligente nada tem que ver com capacidade craniana, mas com o valor dado artificialmente a cada género. Qualquer mulher pode ser astronauta, mas umas preferem ser sedutoras fazendo render a sorte genética. Outras não têm essa sorte e jogam a melhor mão que podem com as cartas que lhe calharam na vida. Imagina esse ser que constrói pontes, aviões e navios gigantescos, e que tu apenas tens uma cara bonita, glândulas mamárias desenvolvidas e os lábios pintados de vermelho para assinalar a tua receptividade de vulva escondida sob um eixo vertical de torso. Imagina. Podes imaginar. E desde já te digo, eu faria bem pior. Eu se fosse gaja levaria todo e qualquer gajo à loucura e sem apelo ou agravo. Trocaria o meu ressabiamento existencial de ter nascido mulher sangrando uma vez por mês, pelo paliativo de saber que homens por mim haviam tirado a sua própria vida. A Noémia apareceu numa loja do Vasco da Gama, acompanhada pelo seu marido, 20 anos mais velho. Na mão trazia o filho e na outra uma pulseira de uma viagem que fizera a Badajoz para aprender reciclagem de coisas velhas, na qual gastara mais unidades energéticas de autocarro que aquelas que alguma vez na vida iria poupar com a sua reciclagem. Instinto-emoção-razão. Despromovido, fazia vigilância numa loja de roupa. Quem me mandou mandar o supervisor ir levar onde lhe aprouvesse? Vá lá não fui despedido. Apenas retirado da vigilância electrónica para a presencial. Foda-se. Que se foda. A minha cara de enfado fez que ela, notasse as minhas expressões faciais. «-Desculpe, onde são os sanitários?» pergunta-me. Com a mão esquerda, apontei-lhe a placa que indicava com setas a direcção das sanitas e mictários. Nem olhou. «-Desculpe, estou a falar consigo.» Dignei-me a olhar para ela, encarando-a dentro dos seus olhos e uma ligação ocorreu entre nós. «-Minha senhora, é naquela direcção.» «-Podia ser mais simpático, se não gosta do que faz, saia e dê o lugar a outro.» Olhei melhor para ela, baixa, bem feita, o cabelo pintado de azul, os pezinhos bem enfiados nos chinelos e um à vontade de quem acha saber viver porque sabe fazer compras no supermercado e ler nas entrelinhas dos seguros. «-Obrigado pela sugestão, mas a minha função não é a de polícia sinaleiro ou GPS. A minha função é de verificar a possibilidade de furtos, ou de auxiliar as forças da Administração Interna. Se não está a furtar ou é polícia, não me importune.» Estava mal disposto e a tipa não tinha culpa, mas quem a mandara tentar tirar-me do sério? Olhando para ela, vi que estava vermelha, irritada. Qualquer coisa na minha existência e obtusidade a afrontava. «-Quero falar com o seu supervisor.» Passei-lhe o telemóvel de serviço com quase desprezo e disse «-Ligue daqui fica mais barato.» Ela perdeu o controlo de si com a minha completa negligência com a sua indignação. Uma queixa já não servia. Via-se que precisava de me ver anulado em remissão total e lamentando o momento em que a enfrentara. Olhando-lhe o corpo percebi porquê. Desde os 14 anos que seria assediada por rebarbados e outros imolados no seu altar de pequena deusa. Fazendo as contas por baixo, se desde os 14 anos recebia um piropo por dia, até aos 24 havia recebido 3650 piropos. 3650 propostas de sedução ou sexo. 3650 confirmações do seu poder sexual ou do seu ser especial por ser mulher atraente. Eu não seria único na indiferença, mas ela estava naquela fase dos trinta e muitos, em que revê seriamente o ocaso do seu poder, e portanto um reles vigilante como eu baixava-lhe a fasquia a ponto em que não podia tolerar. Ala de fazer queixas ao marido. Pelo canto do olho observei que ele, mais velho que eu, nem queria ligar ao ocorrido. Mas ante a insistência dela, e o ultimato, lá veio fazer o pro forma de me chamar a atenção. «-Ouça lá, a minha mulher diz-me que a insultou.» «-Negativo, fez-me uma pergunta e respondi. A senhora sua esposa exigiu mais deferência que a que sou pago para dar. Não lha dei, nem lha darei. Caso queira apresentar queixa tem aqui o telefone de serviço, contacta directamente com o supervisor e queixa-se de que não fiz uma vénia à sua esposa.» Ciente do gozo a que estava sujeito, optou pela única escapatória de face erguida, ir-se embora da loja sob a superioridade moral da minha falta de educação. Saiu dizendo sonoramente que a sociedade estava perdida que já ninguém respeitava ninguém. A indignação criara um acumular nervoso e emocional que a mera deserção do local não permitia aplacar. Ela vendo o marido ir-se embora acerca-se de mim e diz «-Isto não fica assim seu mal educado.» Fiz-lhe o gesto de mandar um beijo com os lábios, e a mão dela levantou-se automaticamente mas pouco, pois observou a minha fora do bolso e pronta a responder à agressão na mesma moeda. Saiu da loja, olhando-me, o chão e a montra. Voltou a entrar e aproximando-se de mim coloca-me um papel no bolso. Vai-se embora de vez. II O papel tinha um número de telefone. E eu para mim mesmo «-Queres ver que tenho de meter os cornos ao gajo de camisa de marca e chanatos de prestígio?!» Tinha. Amachuquei o papel e mandei-o para o lixo, no intervalo de 8 horas de pé. Os dias passaram-se. Continuei a ver as mesmas ondas de pessoas batendo na praia do centro comercial. Num intervalo da minha cara de mau contra o pequeno furto alguém me toca com aspereza no ombro. Era aquele metro e meio de pessoa olhando para mim ao mesmo tempo excitada de ansiedade e raiva. «-Porque não me ligaste?» «-Minha senhora, não quero problemas, pode dar-me o prazer da sua ausência?» «-Não me trates por você, preciso de falar contigo.» A sinceridade desta frase amoleceu-me. «-Saio à meia noite.» «-Eu espero.» respondeu ela. Eram nove da noite. Três horas depois, estava eu a sair com as pernas moídas e com vontade de ir para casa, mas lá estava ela esperando por mim, fora da porta principal. Olhava-me com a admiração de quem usa a admiração e a expectativa para mitigar a possibilidade de aspereza de um desconhecido. Apeteceu-me dizer que de mim nenhum mal viria, mas a minha bagagem dizia-me que a maior parte do gajedo que conheci não merecia essa gentileza, mas o próximo pito é sempre novo e não merece o lastro do passado. Calei-me por fim. «-Eu não consigo pensar em mais nada senão em ti. Desde que te vi.» disse ela com algum desespero na voz. «-Não entendo como, quase nada falámos e se provoquei isso é porque te enfrentei e não pactuei com o teu capricho.» Claro que ela nunca admitiria isso. Negaria a minha suposta satisfação de saber que acertara nos pensamentos de outro, ela, e negaria com todas as forças que a atracção exercida por mim se devia a uma indiferença ao seu poder de mulher, que pouco tem que ver com vulva, mas com a promessa de. Negaria que a sua acção era ditada por um impulso que não só assumiria, como a revelaria como membro de uma biosfera na qual o ser humano masculino é o mais baixo representante. Nã…a mulher determinada por 100 000 anos de evolução antropóide? Nã. Impossível, as mulheres são feitas de ouro e os homens de reles carbono. Eu podia mostrar-me muito interessado e chacalídeo de forma a ela saltar fora, ou continuar o verdadeiro desinteresse e ter de enxotar o suficiente até ela me desqualificar como forma de proteger o seu próprio ego. O que mais pesou na balança foi contudo a lembrança da cara de desprezo do marido da roupa de marca. Sou muito bom a estudar livros de ética, mas a exercê-la é mais difícil porque sou controlado pelos meus demónios. Possuir a mulher de outro que me desqualificara com uma mundividência manca parecia uma boa ideia, acho que não sou tão evoluído espiritualmente como acho. Morena e baixinha, de todo não o meu tipo, tinha algo de nervoso nela, uma latente fúria de estar viva, era visível por detrás dos olhos uma fuga de algo ou um ir para algum lado, o que vai dar ao mesmo. O seu corpo escondia-se bem por detrás de um leve cardigan branco sobre ganga rasgada dos calções mostrando as pernas bem torneadas, que contrastavam amorenadas com a blusa também branca. As mãos unidas como que em oração, exprimiam uma encenação dirigida a mim e ensaiada antes, com resultados garantidos noutros. «-João só um café.» Ela sabia o meu nome porque o decorara da placa que o M.A.I. exige que qualquer manequim de farda use. «-Ok, próxima sexta.» Esperava que a distância temporal e o dia a desmotivassem, mas o seu sentimento de missão levava a melhor dela, e vi-me vencido ainda antes de começar a luta. Foi-se embora para o seu Jaguar de 2019, e ficou a ver-me entrar num Toyota de 1994. Sexta-feira chegou mais depressa do que eu esperara. Merda. Sábado tinha trabalho. No bar combinado, a sua perna revelava o caminho para o êxtase, com ela declinada sobre a cadeira no Pavilhão Chinês. Assim que me sentei, mirou-me as botas castanhas tentando aferir o valor das mesmas, a proveniência, etc. Ouvi-a falando mal do marido, da atenção que não lhe dava, dos sonhos perdidos com a maternidade, e de como de alguma forma eu lhe lembrava os futuros possíveis que na altura certa não escolheu. E eu disse-lhe «-Não.» «-Não o quê?» «-Não vou contigo para a cama nem me atrais. Concedo que algo existe atrás desses olhos, que me chama, mas neste momento tenho mais que fazer que perder energia neste tipo de cambalachos.» A minha fase de menos confiança havia começado a dissipar-se, assim que deixei de esperar a mesma casa moral das cachopas, que exijo a mim. E pura e simplesmente já não tinha a paciência. «-Mas que te fiz eu, só porque sou casada?» «-Achas pouco? Não celebraste votos e palavra dada a outro gajo? Que raio queres de mim que o teu marido não te dê?» Lá começou o chorrilho de racionalizações, já as ouvi quase todas, de como algo de especial havia entre nós e que não dormia e mais não sei o quê. Tudo para se convencer a si mesma a ir para a frente com a vingança sobre o gajo, que devia ter feito qualquer coisa que lhe desagradou, que a ofendera. E agora via em mim a oportunidade cheirosa de exercer vingança. Não deviam ter jardineiro. O meu desinteresse motivaria acima de tudo. Rejeitada por um gajo que anda com um carro que vale menos que a jante do dela, oferecido novo pelo marido no aniversário de casamento. Ela nada fazia, ficava em casa a orientar o seu negócio de internet, para que ninguém dissesse que ela nada fazia. Mas como sabia que os humanos também vivem de emoções, era rainha de exibir virtudes, com posts sobre o degelo polar, sobre atropelos a minorias étnicas, ou sobre critica de costumes, de forma a mostrar às suas redes sociais que havia uma preocupação ética por sustento da sua alma. Tinha ido recentemente a Milão, fazer uma formação em reciclagem de caramelos, como forma de poupar o planeta, gastando mais em combustível aéreo que todos os caramelos que conseguisse reciclar em anos de trabalho ininterrupto. O marido, bem mais velho, apanhara-la numa fase em que ela já não conseguia competir com a sua versão de 26 anos. Aos 34 era chegada a altura de começar a encarar a própria mortalidade. Já não conseguia deslumbrar pelo mero facto de existir com simetria facial, glândulas mamárias e glúteos adiposos. A sua individualidade já não era dia sim dia sim, validada com a atenção que quase todos os homens dão demasiado facilmente. Quando somos todos os dias tratados como especiais, estrelas no firmamento, temos tendência em acreditar e interiorizar que o somos. Chega um dia em que percebemos que vivemos numa ilusão, que a validação que nos era dada, nada tinha que ver com algo – que no fundo – nos é intrínseco, 17 vezes mais testosterona. Mas o ego, esse sacana, não pode deixar-se obliterar assim. Labora de forma a encontrar as melhores justificações, a melhor luz para as nossas escolhas. Não teve sorte com os homens. Raramente assume que fez más escolhas. Mais raramente percebe que foi programada para essas escolhas. É triste viver a fugir. Com o passar dos anos o stock de cobaias vai-se reduzindo. Nunca chega a zero. Mas as que ficam nem valem a pena a experiência. Nem eu nem ela queríamos algo de sério um com o outro. Pura e simplesmente fazíamos o que sempre havíamos feito. Ver até onde vai. Eu na minha inexplicável tendência de reflectir na cara das cachopas a sua insuficiência moral, como espelho anódino, papel que represento demasiado bem, talvez para não mostrar a minha personalidade, com vergonha dela, ou porque tenho medo de ser abandonado, o que vai dar ao mesmo. Ela, revivendo os seus tempos de laboratório, e de alguma forma extasiada por esta súbita e intemporal avalanche de atenção. Um balão de oxigénio para a sua auto-estima. Percebendo-lhe o ponto da vida onde estava, não regateei nem atenção nem validação, o que vai dar ao mesmo. Sempre pronto e operacional para lhe responder e estar com ela. Não lhe dando uma aresta para poder apontar o dedo que percebi logo ser a grande táctica de lixiviação de si mesma perante si mesma. Os outros eram sempre os maus, era a sua táctica para fugir da sua própria responsabilidade. E orgulhoso como demasiado sou, iria empregar mais uma vez a táctica do espelho. Que só é eficaz em indivíduos interessados o suficiente, ou humildes o suficiente, para perceberem o meu grau de disfuncionalidade. Que ganho eu com essa tarefa de missionário? Apontar os defeitos do outro ao outro, numa peça de teatro que represento na cabeça. Como me havia seguido nas redes sociais, comentou enviesadamente os meus textos. Escusado será dizer que nada havia percebido deles, imagino literatura a sério. O arsenal de obras que dizia ter lido e gostar, perdeu de súbito valor, pois se nem me sabia interpretar a mim, quanto mais outros mais talentosos. Sobre o texto do comboio, fui obrigado a explicar, que o comboio era uma metáfora. Meteu-me a mão no joelho, e eu disse-lhe que se não a tirasse, na próxima meia hora estaríamos enrolados nos jardins em frente aos Jerónimos. Não tirou. III Dentro do Toyota, observava-me enquanto eu olhava o conta-quilómetros para calcular o consumo que um dos motores mais eficientes dos anos 90, me andava a fazer. Ela interpretou como eu olhando para o indicador de combustível, claro indicador da minha indigência e não validade como opção. Estive para lhe perguntar se sabia que o seu Jaguar híbrido era mais nocivo para o ambiente que o meu velho Toyota. Não lho deviam ter ensinado em Milão. IV A erva fresca sob a noite quente deu connosco olhando a cara do outro, perdidos em afagos patéticos, cada um representando uma peça gasta e repetida, de captação de vitória sobre o outro. Sob a luz artificial de um candeeiro, gabou-me o rosto e o físico. Percebi que era a consciência dela a roer. Fazia juras de amor eterno e ia deixar o marido, eu observava. Ela também, tentando perceber o efeito das palavras em mim. Uma vez telefonou-me dizendo que o ia largar. Pensei comigo, não, não o deves fazer. Continua com esse, que já conheces e já moldaste a teu gosto. Não quero a responsabilidade de dar umas cambalhotas contigo, perceber que não te quero aturar e deixar-te ir outra vez com o rio. Não que outros não te apanhem, mas esse é o pai do teu filho e já o anulaste até ser uma fracção dele mesmo, não vás escavacar outro. Numa outra ocasião, deu-me uns livros e uns cd’s. Senti que fosse um prémio de consolação, como quando um pai ausente compra o afecto e desculpa do filho com um carro telecomandado comprado no chinês. Sabendo que eu gostava de livros, lá procurou os mais adequados a mim e que menos mossa lhe fariam. Não me queixo. Pagava-lhe da mesma forma com um amor fingido e seriamente acreditado, por lhe espelhar na cara as suas falências morais, para eu não ter que ver as minhas. A cópula era acessória, o objectivo era mesmo conspurcar o género feminino com mais uma constatação da sua inferioridade moral. Mesmo sabendo que ela jogava sujo. «-Noémia, sabes qual é a diferença entre mau carácter e sem carácter?» perguntei-lhe eu numa noite em que o marido e o filho tinham ido passar o fim de semana ao Alentejo, na quinta de família. Ela havia ficado em casa com a desculpa de reciclar caramelos. «-Não. Não é a mesma coisa?» «-O mau carácter é dono dos seus defeitos. Tem uma estrutura qualquer que o faz aceitar os seus pecados como característicos de si. Aceita-se. Gengis Khan era mau carácter, violava e matava no mesmo dia aceitando ser essa a sua natureza.» «-Era um sem carácter, portanto.» conclui celeremente. «-Não. O sem carácter não só não aceita as suas falhas de carácter, como as mascara ou esconde debaixo do tapete. Os piores, projectam nos outros, todos os defeitos, para o foco de culpa não pousar sobre si mesmos.» É que depois de tu fazeres merda que não podes apaziguar com livros e elogios não sentidos, a única forma que tens de aparecer limpa do outro lado do túnel de Shawshank é dizer que o outro é x,y,z. E assim pelas eras vais sem algum dia reconheceres aquilo de que foges. E foges tanto que tentas controlar a apreensão que os outros têm de ti, muito moral e preocupada fora de portas, intragável intramuros. O que revela que no fundo não queres mudar. Queres continuar a achar que és um doce mel num mundo de fel, porque no fundo, lá mesmo no fundo acreditas que és uma merda, mas não te podes dar a esse luxo. Tinham um piano na sala de jantar. Foi aí, debaixo dele, que a despi e lambi os seios. «-Fala-me mais da falta de carácter.» pediu ela. Algo havia reverberado nela. «-A melhor imagem é a de alguém que entra num comboio em hora de ponta, empurrando os outros para garantir lugar, e que subindo um degrau, se borrifa se os cotovelos móveis atingem o que vem atrás a tentar entrar, enquanto as portas fecham. É aquela pessoa que crema os outros no fogo desse solipsismo. Mas não admite. Quer ser até vista como altruísta. Nas paredes, retratos de ocorrências passadas, férias, primeira comunhão do miúdo, etc. «-A empregada chega às 7, tens de sair daqui antes.» «-Ela estava convencida que consumaria a vingança saloia contra o marido através de mim. Arranjei-lhe o cabelo preto por detrás das orelhas, e nos seus olhos vi reflectidos os meus, numa espécie de lamento pela ilusão que é a nossa própria individualidade. Nunca me senti tão próximo daquilo que os filósofos chamam condição humana. Senti-me uma alma velha, por este tipo de mariquice, afinal tinha a comida no prato e o garfo pronto. Senti que a vida é o jogo que jogamos vivos para fingir que estamos mortos no Nada. Levantei-me, calcei-me e ela surpresa a perguntar-me o que se passara. Meteu-se à minha frente no meu caminho para a porta. «-Lamento minha senhora, mas não sou pago para lhe dar esse tipo de informação.»
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