Eram onze da noite e ouço o tom de mensagem de Whatsapp.
'-João bora beber umas cervejas.» Mas que raio. Cinco meses após eu terminar um envolvimento de um ano, aqui tenho de novo a mesma pessoa a querer 'falar'. Como nunca nego diálogo a ninguém, acedi. A desculpa era para eu aferir se de facto aquilo que lhe havia dito uns meses antes era mesmo assim e não sei quê. No fundo, estava a pesar, como na balança que o judeu de 'O mercador de Veneza' queria usar para pesar uma onça de carne, se eu seria alternativa viável ao recém promovido ao meu lugar, que a desiludia em alguns aspectos. Numa escala como as que guardam os pesos nos ginásios e fit albergues, estava a verificar qual seria o peso que poderia usar sem rebentar a musculatura. E fazem isto com uma candura e ingenuidade que me deixa sempre desarmado. Elas acham de facto que os gajos comem gelados com a testa. Eu penso que é porque existem muitos que comem com o sobrolho. «-Epá ó Andreia, quando vires a tua tia manda-lhe um beijo meu.» Andreia era orfã, tinha um irmão, ambos criados por uma tia paterna, muito simpática e que gracejava comigo e eu com ela sempre que nos víamos. «-A minha tia não gosta de ti.» «-Porquê?» «-Por causa do que tu me fizeste.» «-Mas que raio te fiz eu senão o que toda a gente decente faz quando não consegue estar com outro, afasta-se.?!» Imagino o que foi dizer de mim, para lavar a sua própria imagem. É uma coisa curiosa, quando demonificamos o outro, torna-se fácil vermo-nos como anjos. Se calhar é isso, afogar o abismo com sangue alheio. Eu percebo a dinâmica e vejo fidedignidade nessa possibilidade de resposta. Percebi também que a rejeição lhe tinha ficado engasgada. As mulheres estão menos habituadas a ser rejeitadas. Fiz-me interessado, tentei beijá-la, e afagá-la. Confessei-lhe um amor eterno constrangido pela inadequação da minha personalidade. Foi nítido o alívio nos seus olhos. Não só conseguira desqualificar-me a seus olhos como devolver-lhe um pouco de dignidade e amor próprio. Mas tinha sido muito fácil. Precisava de mais umas provas do meu sacrifício, para ficar convencida que de facto tinha ascendente sobre mim, e que portanto ficara por cima. Oh amiga, se é por isso, pensava eu. Tentou oferecer um trato, eu dava-lhe atenção não sexual, e ela podia despejar tudo o que lhe apetecia, em particular falar mal do outro que a iria traçar à noite. Eu seria o tampão emocional, o satélite em torno da sua órbita. Declinei gentilmente o negócio. E insisti nos meus avanços. De molde a levar a um ponto de ruptura fictício para mim. Fui convincente, e ela revelou-se. A sincronia e extensão das suas respostas e atenção revela claramente uma espécie de desprezo, de despeito até, que evidencia sem mascarar, que estou numa elíptica muito afastada do centro. Era só o biscoito, passo a expressão, que viera buscar. Tendo-o, mostrava quem era. Tal como Célia e outras assim. A última da Célia é que queria que lhe fizesse um trabalho para uma cadeira de faculdade. Antiga muito mente, eu iria ao espelho, verificar se tinha gelados no sobrolho, pois não entendia a completa cara de pau de algumas cachopas acharem que conseguem fazer este tipo de tropelias comigo. Agora sei apenas, que com todos os meus defeitos, e mesmo sendo um malandro de primeira, dou dez a zero a boa parte delas, em questões de ética. Não me estou a fazer bonzinho. Mas estas bacanas que conheço, na faixa dos 35 para cima, ou estão queimadas da cabeça, ou ficaram paradas no tempo com as técnicas de sedução da puberdade. E os joguinhos? O que me rio e partilho com amigos para nos rirmos todos - para não chorarmos - dos joguinhos que fazem, a ver se captam atenção e perseguição, e validação. Uma incongruência sistemática, a nível lógico, que sempre que exposta, se esconde debaixo de um argumento emocional, ou seja, não é argumento, é um capricho com pele de argumento. Imagino a cara dela do lado de lá, rindo-se achando que me confundiu. Entre gajos, um que continuamente não faça sentido no que comunica, passa a ser encarado como chato, esquisito. Se for uma mulher, são subtextos e é misteriosa. Andreia e Célia sabem disso, associam subtilmente a sua conversa comigo a uma promessa futura de pito, se e somente se, eu jogar bem as minhas cartas. Gostava de poder voltar atrás, uns anos, quando ainda me conseguia entregar a estes jogos, acreditando neles. Agora não. Agora só me pergunto como só me envolvo com pessoas que talvez sejam um reflexo da minha própria maleita existencial. Dos meus demónios. Pergunto-me se de facto serei louco, e coloco abertamente essa possibilidade, mas depois confiro que é sinal de sanidade, podermos considerar estarmos loucos. E não há uma, uma única, que me surpreenda, é uma monotonia constrangedora que começo a formular a possiblidade de que as mulheres que têm entrado na minha realidade pararam todas de evoluir, ali pelos vinte anos. O que me levanta a questão, quem tem caído nas ciladas? Sobrolhos sorvedores de sorvetes? Então bate-me. Elas também se espalham todas ao comprido. Tanta solicitação e tanto rato de laboratório onde experimentar, é indiferente se matam este ou aquele, o stock nunca acaba. E o mundo é a sua ostra. Mais uma cliente que foi para casa com o ego remendado. Cuspindo de alto para o meu ego, como nunca disse ser possível fazer. Fico apreensivo, quando encontrar uma tipa normal, saudável, vou achá-la diferente. Se o mercado da carne fosse empresa, eu era o empregado deste mês. 'No good deed goes unpunished.'
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