O seu humor andava especialmente enfadado, parecia que tudo o que fazia comigo era um frete ou por favor. Os seus níveis de energia sempre haviam sido baixos, mas ultimamente bocejávamos cada um para a janela oposta do carro, nas viagens domingueiras da treta, que fazemos apenas para fingir que estamos em movimento. Como estava bem disposto, e não me apetecia estragar o meu dia, baixei o vidro eléctrico do lado dela, o que lhe provocou um susto, fazendo-a olhar para mim com um olhar reprovador como se eu fosse infantil, olhar que conheci tão bem nos tenros anos de escolaridade, pois é assim que as meninas condicionam ou castigam os meninos. Perguntei, «- E a Natércia?» A Natércia era uma amiga dela, e colega de trabalho no mesmo escritório, que andava no carrossel de pilas que a sua beleza permitia. Uma discoteca aqui, uma recepção de hotel ali, era a borboleta que pousava na flor de qualquer happening. Gostava de se sentir cosmopolita e inserida na sociedade, e sobretudo da atenção que recebia. A semana passada saímos juntos, com um engate dela de Tinder, e como não estava certa da sua segurança combinou uma saída a 4. Foi Sol de pouca dura, rapidamente se fartou e partira em viagem com outra amiga e dois novos prospectos, numa viagem para Ibiza. A forma como aquela que se sentava ao pé de mim, na viagem para Palmela, relatou as aventuras da amiga, trouxeram-me a certeza do fim da minha relação com ela. Havia um lastimar o facto de não estar nessas aventuras, ao mesmo tempo regado com uma admiração quase infantil e submissa pelo carácter indómito das aventureiras, que calculei que passasse também pelo poder sexual exercido, isto é, saberem que podem ter um homem na mão, e que por vários são desejadas, sentindo-se, por fim, bem consigo mesmas, por isso. Pronto, durara o tempo normal, dois a três anos e as cachopas passam a deduzir que a sua aposta no cavalo de corrida, eu, foi um erro, que sou, somos, apenas aparência, artífices da trapaça, em enganar e fazer perder tempo às detentoras de vulva. Eu sabia que daqui para a frente, estava a prazo. Era uma questão de tempo até surgir alguém que o seu hipotálamo ditasse como melhor. E que quando assim fosse, me manteria até ter o outro certo, descartando-me depois como fralda descartável, sem olhar para trás, como se a pena fosse tornar-se estátua de sal. A aproximação cada vez maior ao grupo de amigas, devia ter-me alertado. Mas um gajo gostando fica cego. Se aquilo que somos é a média das 5 pessoas com quem passamos mais tempo, se as colegas de trabalho passam oito horas juntas, as maçãs transmitem o caruncho umas às outras. Vivem de perto, como se fossem suas, as vidas umas das outras, embriagadas nos sentimentos que isso produz. Mas quis Deus ou o diabo, que eu seja arrogante e convencido da minha superioridade perante tudo. Deus dá-me assim lições de humildade que recuso aprender, para as receber continuamente, nem para mim sou bom. Nada havia a fazer por nós. À pobre criatura havia sido mostrado o portal da exultação, e eu passara a ser um empecilho na fruição do prazer potencial. Garantido, estável, monótono, carinhoso até, tinha o encanto de um baralho de cartas a preto e branco. A familiaridade matara-nos. Um enganando o outro, de forma que se criassem laços indestrutíveis e proximidade das almas, que cada um se esforçava por esconder. O esforço que fazemos para que o outro não se vá embora, e não termos de reviver a vergonha do abandono, de novo, e de novo desfazer as ilusões que fizemos e que davam algum sentido à vida. Sei que fico picado por ela achar que arranja melhor. Mas no fundo sei que a culpa é minha, eu é que escolhi mal e sei que tenho de mudar a forma como penso em mim. Também eu gosto de andar nos happenings que constituem o mundo, se não perder tempo com a aproximação, convencido que é a sorte grande.
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