I
Irónica esta coisa de escavar a terra para escutar os mortos com os olhos. Violar a sacralidade do seu desaparecimento eterno sob camadas de pó tão anónimo como as vidas que testemunharam. A terra onde os mortos vivem, com a mesma sem esperança que os vivos morrem pelo ar até por fim exalarem o último suspiro que os fará, como a uma ruína, tender ao ditame da horizontalidade. Esgravatar no pó à procura de respostas, que sabemos à partida nada virem a expiar ou conciliar. Apenas pelo amor ou mania de compreender. Como aquelas pessoas de que vamos sabendo que se enforcaram no candeeiro da sala, ou se mandaram contra um comboio, rejeitando de forma inequívoca e amarga esta existência. No fundo este mundo. II Sim este mundo em que vós tão bem viveis, tragando-o com o deleite de um qualquer banquete, tão adaptados como um gemido a uma descarga nervosa de prazer. Outros cospem-no fora, este mundo. Porque o pensam, e pensando percebem que não conseguem resolver nada. Vós não o penseis, antes o engolireis até que a terra seja morada, como se remédio amargo de que nem se dá conta por tão rotineiro ser. Que agruras e sem esperança levam alguém a anular-se nesta rejeição? Que desespero leva a esta rejeição senão a rejeição que leva ao desespero? III Alguém te virou a cara, saiu da tua vida, humilhou-te, tudo parece correr mal, os teus filhos não te amam, o que és cai antes da praia daquilo que planearas ter sido. Diz-me, que vida te traria vontade de continuar a olhar para a sombra de meia noite sem algum vislumbre de luz? Alguém sentir-se tão inválido de amor por parte de qualquer outro, especialmente se o amor que se imagina que o outro sente seja semi obrigatório e circunstancial. Familiares de sangue amam pelo sangue. Outros amam pela escolha. O amor de familiares e amigos não é garante contra o suicídio. Imagina alguém só num ermo ou numa divisão de casa, pesando o tecido metafísico da sua existência tentando aferir se vale a pena continuar vivo, e que a nervura central desse critério é o apreço que outros tenham por si. IV Dar com esse outrem pensando sobre que merda de pessoa ele seja sobre o que fez da sua vida e por quantas, se alguma, pessoas foi amado. Mas se todos desprezam o facto de estares vivo, o que te aflige não é essa constatação. O que te aflige é nada saberes de como inverter isso. E aqui está o coração da coisa. Quando a alma descobre que nada de si, de si depende, porque não existe um si claro e fidedigno de onde depender. Os antigos chamavam-lhe temperamento. Cada um nasce com o seu. Uns são mais amáveis que outros. V Muita gente de bem, de bons costumes, gosta de responder que é tudo uma questão de esperteza e de esforço, de saber andar no mundo e na vida, como se o remédio para a constipação de um servisse para a cefaleia de outro. A universalidade doentia de uma disparidade natural, uns nascem com virtudes sociais, outros não, uns nascem com rácios cintura/anca que enojariam uma abelha mas que inebriam um macaco nu. Uns são animais de colmeia, outros são animais solitários. Outros são animais nocturnos solitários. VI Mesmo a gente avessa a procurar aprovação alheia, a certa altura da sua vida, consigo dá a reflectir sobre o que anda a fazer nesta Terra. Sobre que valor assume para os que rodeiam, aferindo a partir dos seus comportamentos o valor próprio e o lugar nesta peça de teatro. Claro que quem não tem virtudes sociais e nasce introvertido se vê num problema de círculo vicioso. A natural reserva não cativa outros, portanto saberá sempre não ser valia na vida de outrem. O ressentimento surge e assenta praça sugando a força destas almas teimosas, que por despeito se recusam a mudar e insistem em ser amadas por aquilo que são e não por aquilo que são para os outros. É no fundo uma relação de codependência. Adorar e procurar os notáveis, os míticos, aqueles que são memoráveis, pois são esses que nos seduzem para a vida. Os tristes e melancólicos apenas nos mostram a verdade que queremos esquecer. A maioria dos símios espaciais está no meio destes extremos, enterrados em metros cúbicos de monotonia e convencionalidade. Os memoráveis, já para o fim, não passam dos palhaços de serviço egocêntricos, que servem de entertenimento para os outros, acabando todos por morrer sós. Os lúcidos ou se penduram pelo pescoço ou se tornam latifundiários da frustração. VII Em concreto, a selecção natural não é só o tigre com dentes de sabre ou outra arma branca. Ela age a partir do interior do próprio indivíduo. Como que se quisesse garantir que miséria e sofrimento nunca faltassem por este mundo. Sob o ponto de vista da arqueologia psicológica, percebemos que esta vida tem uma doentia intenção. Os primatas que na infância sofrem eventos traumáticos, parecem correr até à morte com a companhia de um estado de choque tornado natural em si. Já não basta nascer com alguma sensibilidade como a violência exercida é recebida de forma mais profunda prolongando-se até ao fim. A vida parece querer dizer que cada um nasce para o que nasce, e se os temperamentos pacíficos existem, servem apenas para ser repasto da violência, e a cada etapa, lá está a Fortuna os lembrando disso.
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