«-João, tu só falas de amores infelizes, és algum traumatizado?» Curioso este vírus mental das pessoas, que têm tão entranhado o pensamento de que se um tipo fala de amores infelizes é um falhado frustrado, mas se uma mulher fala de amores infelizes, teve azar cósmico. Estive para lhe perguntar se achava boa ideia ir-se foder. Mas, tínhamos acabado de chegar ao cinema, ela tinha-me convidado, era cortês da minha parte ter mais paciência. «-Olha lá, quando o Malraux ou o Hemingway foram para a guerra para escrever sobre ela, alguém os chamou de traumatizados? Por que raio é que se eu partilhar a minha experiência com o sexo oposto, me invalida o discurso, por uma suposta inquinação emocional ou ressabiamento?» «-Sim, mas eles não escreveram só sobre a guerra, também escreveram sobre a guerra. Tu escreves bem, quer dizer, eu gosto do que acho que tentas fazer com as palavras, e nota-se que és uma pessoa inteligente, mas só falas da dor de corno…Desculpa lá, mas é como eu vejo.» Devia tê-la mandado foder. «-Mariana, primeiro, eu não escrevo sobre dor de corno, escrevo sobre vínculos entre as pessoas a partir da minha experiência. Cada relação tem vestígios de farsa, crueldade e generosidade. Tento perceber os outros e a mim, e passo isso a escrito. Gosto de esmiuçar pormenores que geralmente não são motivo de atenção para muita gente, mas é essa a função do escritor, bom ou mau. Segundo, eu tenho mais uns 3 ou 4 blogues, onde escrevo de outras coisas sem ser a relação entre seres humanos.» «-Certo, mas escreves literariamente? Ou só escreves assim, sobre o amor?» «-Só escrevo assim, sobre o amor. Para mim, amor e literatura estão ligados indissociavelmente. O escritor quer seduzir o leitor. O meu leitor é uma mulher. Miller dizia algures, que os homens só são irmãos da cintura para baixo, da cintura para cima são loucos ou poetas. Eu dou-me bem com gajos, a montar um termoacumulador ou a desmontar uma bomba injectora. Se falar destes assuntos emocionais e psicológicos, a maioria dos gajos tem uma arrogância que nasce com eles, sobre o assunto, boa parte acha que é detentor do segredo do mecanismo. A mulher é o único artefacto que desconhecem como funciona. Seja por lhe projectarem uma igualdade na forma de pensar, seja por lhe conferirem poderes druídicos. O meu leitor é gaja, não porque não queira ser lido por homens, ou não escreva para homens, mas porque simplesmente me interessa mais a mulher. Alguns poucos ouvem-me, trocamos experiências sobre o mesmo assunto, mas no final do dia, é uma língua diferente e intraduzível. A esmagadora maioria de mulheres, as poucas, que aqui vem ler isto, tem mais elasticidade para os solilóquios que vou formando à procura do entendimento. Se bem que, raramente consigo debater algum dos conceitos que escrevo. Sim escrevo por conceitos, que visto com pessoas. Para mim, escrever é tão foder, como foder.» «-Mas tens de utilizar esse vernáculo, repetidamente? Isso é tão pouco polido.» Fiz um último esforço, pois já me estava a passar com os moralismos. «-Se pessoa diz que a sua pátria é a sua língua, e se o vernáculo é o gueto da língua, eu não me privo de o percorrer. Há uns anos atrás o Esteves Cardoso escreveu um excelente livro, que chamou a atenção por causa da palavra ‘fodido’. Foi aclamado de grande escritor. E era. Já eu, uso umas caralhadas, e passo por mal educado. Não me estou a comparar com o MEC, que é uma inspiração para mim. Estou apenas a notar a dualidade de critérios. E claro, sou mais javardão, até porque quero percorrer as fórmulas expressivas, sem me autolimitar por motivos de pensar no que o leitor apreciará. Se o meu leitor é uma mulher, eu escrevo para mim. Dessa forma posso dizer, que o que pretendo, é que a mulher me dê o pito por causa da minha habilidade com a língua.» Comecei-me a rir, por pensar depois no que havia dito antes. Ela também se riu. E perguntou: «-Tens essa merda pensada, ou vais inventando à medida que te perguntam?» «-Vou inventando. Sei lá eu para quem escrevo, ou porquê. Sei que escrevo sobre quem amo, para quem amo.» Finda a última palavra, abate-se um silêncio incómodo, só rasgado pela nossa preocupação em simultâneo de olhar em volta e ver que a fila no cinema onde estávamos, havia entrado para a sala. Quando eu me dirigia apressadamente para o corredor escuro que conduz aos bancos, ela puxa-me a mão, e com uma lágrima presa nos olhos, abana a cabeça a dizer que não e diz-me à maneira dos mimos que se vai embora, ou lá para fora. Saio com ela e lá fora, vejo-a desabar em lágrimas e pedir-me desculpa, mas que perdera a vontade de ver o filme. Obviamente que havia algo mais do que isso, e conduzi-a por uma escada em caracol, que levava a um bar, no topo do cinema, com música ambiente baixa, e uma atmosfera de clandestinidade luxuosa, com poltronas massivas e impecavelmente conservadas de outra era. Trouxe-lhe uma Cuba livre e um vodka tónico para mim. Esteve uns 10 minutos calada, a ver se eu me esquecia do que se passara, ao mesmo tempo que eu notava nela uma vontade qualquer de desabafar. Tinha no olhar uma receptividade não integral, isto é, estava a precisar de um cortejamento non sequitur, onde recebe a emoção da validação, mas onde não tem a disponibilidade emocional para se envolver com outro. «-O que é que ele te fez?» - perguntei eu. Ela olhou para mim, e percebi no seu olhar que sabia ser escusado elaborar balelas para mascarar o assunto. Então lá me contou que tivera uma longa relação, mas que ele conhecera outra mais nova, e que a largara. E ela agora tinha perdido as esperanças de conhecer alguém de jeito, ou sequer de se conseguir dar de forma honesta. Eu disse: «-Só por essa ideia, vejo que és alguém decente. Que sabes que o pavio da capacidade de amar e de alinhar integralmente num novo mundo que é a outra pessoa, não dura para sempre. E que é má política escolher novos amantes a partir de certa idade, a memória torna-se veneno, e nós tornamo-nos cemitérios de raparigas e rapazes. A maior parte da malta quer é preencher o lugar, sem pudor em relação à experiência que vai facultar ao outro.» E ela responde: «-Eu sei o que pensas, eu li as tuas ruminações sobre a oxitocina, e sobre como a literatura tradicional é ingénua nesse assunto em particular.» Ela estava a falar de um trabalho de 100 páginas que lhe entreguei. Ela era, e é, professora universitária num curso de artes da escrita onde me inscrevi, e ela dava a parte da ficção. Como é pouco mais nova do que eu, cedo nasceu ali uma tensão, ou foi só da minha cabeça, e como trabalho final, como faço sempre, apresentei uma parede de texto a contrapor tudo o que ela ensinava nas aulas. No dia da oral, estávamos os dois sozinhos na sala do gabinete, e ela apresenta-me um 12, que recusei. Disse-lhe «-Professora, se me apresenta um 12, vou-lhe dizer que ficou ressabiada comigo, e é pouco profissional. Sabe perfeitamente que mereço mais que um 12.» Ela riu-se, surpreendentemente, e não tentou manter-me à distância com uma pose profissional. «-O 12 é o começo, você está aqui para se elevar acima dele. Não é você que diz que gosta de criar e trabalhar a partir da posição de desvantagem?» Ainda fiquei uns 5 minutos a tentar perceber o que ela dissera. E depois lembrei-me que numa aula tinha mencionado o meu blogue e que ela de certeza o foi ler. Pois a boca que ela mandou está em alguns posts meus. Comecei-me eu a rir. «-Olhe, troco a subida de nota, por um cinema consigo. Há um filme que pretendo ver e quero que me acompanhe. Eu satisfaço-me com o 12.» … «-Eu sinto-me tão mal, tão deslocada, meu Deus, que vergonha.» «-Mas também te sentes aliviada?» Ela acenou que sim. Ofereci-lhe o meu abraço, e ela aceitou. Quando a apertei voltou a chorar, e apertava-me a cada espasmo de dor, de desespero, de desalento agudo. Fiz-lhe festas na cabeça e apeteceu-me chorar com ela, mas não choro facilmente. Ao sentir a sua cabeça perto de minha boca, dei-lhe um beijo na têmpora, que é um reflexo involuntário que tenho, quando começo a ficar sem saber o que fazer com o outro em desespero. O esforço dos espasmos, e o ranho num nariz vermelho, fizeram com que ficasse sem energia, deitei-a ao meu colo, cabeça deitada nas minhas pernas, para que recuperasse o fôlego e o ânimo. Fui levá-la a casa, ela fez-me uma festa na cara e eu disse-lhe: «-Estamos cá uns para os outros.»
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