Uma pequena vitória de manhã, com saliva dela ainda na minha maçã do rosto. Como podes guardar raiva a seres desprovidos de introspecção, foi a minha linha de engate no bar privado onde a nata lisboeta se reunira para celebrar e fornicar, certa da aniquilação nuclear próxima. Encostado a um pilar marmóreo de cor jade, sentia-me o único antifuturologista no recinto. Ela aborda-me e pergunta-me se e não sou aquele cabrão que escreve umas merdas num blogue. O editor que me convidara para esta merda, devia-lhe ter falado de mim. Escrevo para lá desde 2006 e não me posso queixar do retorno lúbrico que juntar letras me dá. E eu respondi perguntando se ela não era a bardajona que o lia. Riu-se, e disse que alguém me devia ter feito mal, que estava a precisar de uma boa foda. Respondi que agradecia o convite mas fodas por pena já não dava, nem mesmo à beira do apocalipse nuclear que ‘eles’ julgam aí vir. Ela teve a inteligência em perceber que apenas levava as respostas adequadas ao comportamento que tinha comigo, e não desatou aos berros ou a ameaçar, ou a fazer-se indignada. Testava a rapidez do meu pensamento e resposta, vendo se ao ser desagradável, eu modificava o meu comportamento. A virulência das suas provocações foi decaindo na exacta medida em que levava o troco cada vez mais ameno da minha parte. «-Nada mau para quem aprendeu a escrever o ano passado.» foi a reductio ad absurdum que me fez perceber que invertera o comportamento comigo e que já estava a provocar brincando com a finalidade de criar uma ficção comigo, só nossa. «-Mas porquê esse ódio? Quem te fez assim tanto mal?» «-Mas tu leste aquela merda?» «-Li.» «Leste o caralho. Se tivesses lido sabias que eu não escrevo sobre ódio. Não sei. Não sei o que é. O mais que imagino parecido, é a raiva que sinto pelas feministas. Mas nem isso julgo que seja mesmo ódio. Não desejo a morte ou mal de ninguém, pelo que deduzo que se odiar fosse uma arte, eu seria mau artesão.» «-Estás a fazer-te de bonzinho, toda a gente odeia alguém, é do ser-se humano.» «-Talvez, mas eu sou demasiado orgulhoso para prender energia emocional negativa com alguém. Posso ficar ressabiado, irritado, mas isso não é ódio. O mais que seja foi por não ter tido ou a última palavra, ou por me ter deixado enganar.» A sua feição estava agora mais relaxada, pelo que eu via perifericamente. No escuro da sala ampla que dá para uma porta por detrás do Largo Camões, podia-se ver uma nesga de Lisboa lá fora, vazia, deserta a um dia chuvoso de semana, os turistas deviam estar a comer fast food num centro comercial qualquer. Um fino mas comprido néon de cor púrpura iluminava muito pouco, apenas o suficiente para ver o cintilar dos copos, o meu vodka tónico e o Martini com Frize dela. Eu não tinha ainda falado com ela de frente, estava de lado para ela, pois com aquela entrada, eu não lhe queria dar a satisfação de ter o meu olhar e atenção total. «-És muito cerebral.» Ri-me com a expressão mas percebi o que queria dizer. «-O que tu queres dizer é que sou demasiado analítico. E sim, também acho. Pensar demais nas coisas é uma forma de vingança pela certeza amarga que nunca vamos perceber um caralho daquilo que nos rodeia. E por isso, reduzimos coisas e pessoas a cogitações estéreis e anedóticas.» «-E escreves muitas asneiras, vernáculo quer dizer. Às vezes, ou melhor, a maior parte das vezes, acho que são dispensáveis, escusadas, deslocadas.» Afinal ela tinha lido qualquer coisa. A minha vaidade a meias com a vontade de saber opinião de outros, fez-me virar mais um pouco para ela, e ela para mim. Sei que ela percebeu que era por ali o caminho, e continuou insistindo no tema, para me abrir. «-Como diz o Poeta, a minha Pátria é a minha língua. Se o vernáculo são os arrabaldes, os pardieiros e os becos mal frequentados da minha Pátria, são minha Pátria ainda. As palavras são apenas veículos de transporte de emoções. Caralho, cona, foda-se, e outras semelhantes, são meras conjugações de letras e sons. O mal ou bem das palavras não está nelas.» A conversa esmorecera, pela minha explicação imbecil, mas ela já obtivera uma primeira vitória, amolecera-me a partir de uma entrada agreste. E eu não percebia se era sistemático, se ela era tão suave nestes desafios infantis que colocamos a nós próprios, ou se era tudo fruto da minha cabeça. A sua entoação mudara completamente, e a voz estava muito mais meiga comigo, e quase rouca, e diz-me com meio sorriso «-Lá estás tu a racionalizar, fechado na tua cabeça.» Ri-me, subiu mais um degrau no meu respeito. «-Tens razão.» «-Mas eu gosto de ver homens assim, arrebatados em geral, especialmente por ideias.» Não sabia se falava a sério se seria mais um esquema para me meter a falar de mim próprio, apenas para chegar ao fim de meia dúzia de frases, arrependido ou vazio, desiludido por as ter dito. Uma espécie de ressabiamento do alter ego com o ego, por não ter moderação nenhuma. Optei por ficar calado. Obtive a minha vitória quando ela, em vez de se despedir e retirar, fez por continuar a conversa. «-Assim, acho que já te entendo um pouco melhor, e se calhar a minha percepção inicial era desfasada. «-Mas não são todas? Todas as impressões iniciais são desfasamentos entre as nossas impressões dos outros, e o que os outros nos dizem, fazem…» Interrompeu-me: «-Oh João, estava só a dizer que percebi-te mal, não compliques tudo.» «-Como sabes o meu nome?» «-O Márcio disse-me.» Só não adivinho o Euromilhões. «-Mas eu já sabia, em alguns textos deixas escapar o teu nome. Retira ficção à ficção.» Foda-se. De facto, lera. «-Não é ficção. A maior parte das merdas que lá estão, ocorreram de facto. Muito raramente invento historietas. Rumino é depois á volta delas.» Ficou parada, a processar o dado novo que lhe alterava, com esta, duas vezes seguidas, a percepção que tinha de mim. «-Então o desfile de mulheres é mesmo um desfile? Deves sentir falta delas todas.» «-Não, não escrevo sobre elas, são todas o mesmo que eu era para ti há uns 10 minutos, um conjunto de ideias feitas minhas acerca de pessoas para sempre inacessíveis. Eu escrevo é sobre mim, a partir do sexo, da paixão e do impacto que o feminino tem, teve, e terá em mim. Em vez de usar o corpo de uma prostituta, uso as personagens naturais ‘delas’, para fazer a minha introspecção.» «-Acho que entendo, mas não podes negar que há alguma raiva na narração.» «-Outra vez arroz? Não há raiva nenhuma, quanto muito apenas uma nostalgia a la Elliot de preferia que tivesse sido de outra forma.» «- De outra forma como, o amor perpétuo, o mito do amor fusional em que dois se tornam um?» Adorei o ‘fusional’ a sair da boca dela. É tão raro que alguém use termos parecidos com os meus nestes assuntos. «-Sim, em parte, em parte gostaria de continuar a encarar o amor como algo de maravilhoso ou idealizado, pois talvez seja viciado nas emoções do enamoramento. Tens alguma razão aí.» «-Então também acho que tenho alguma compreensão do porque dizes que não tens raiva, ‘delas’, mas da situação, apesar de como dizes num daqueles textos, pagaste todos os teus amores com sangue ou sofrimento. Mas todos o fazemos, eu faço, tu fazes. É um processo que recusas, porque gostavas que o amor com ‘ela’ durasse para sempre. Sim, agora percebo-te, o ressabiamento ou raiva, é por causa de te matarem a ilusão amorosa, não por causa da pessoa em si.» «-Nem sei o que te dizer, é interessante a tua perspectiva. Como te chamas?» «-Dora.» «-Engraçado, Dora. Uma das tipas que narro…» «-Eu sei, a que dizia que se vingaria dos homens fazendo-os sofrer, para vingar o que o seu pai fizera à sua mãe. A tua colega de Filosofia.» Eu estava parvo, esta pessoa conhecia melhor as minhas historietas do que eu. «-Seja como for, não odeio, não tenho raiva, não lamento nem o caminho deixa de ser para a frente. Não posso adiar porque em um ou noutro momento foram minhas amigas, isto é, em grau maior ou menor, preocuparam-se comigo. Nem posso guardar rancor a um ser desprovido de introspecção, incapaz de acartar, como Atlas, o peso da culpa própria no seu mundo. Parou de verter Frize para dentro do copo de Martini que enchera de novo. Olhou para o pouco que de mim podia ver no escuro, e pediu-me: «-Repete a última coisa que disseste.» Fiquei incerto sobre se seria agora que faria uma cena triste de feminista, ou se se iria embora. Não consegui perceber na entoação. «-Atlas, o peso…» «-Não, da introspecção.» «-Não posso ter raiva de um ser, a mulher, incapaz de fazer introspecção.» Não se foi embora, mas ficou a olhar muda para mim. Nesta fase já estava quase todo virado para ela, e uma bola de espelhos na traseira do sítio onde estávamos, fazia cintilar raios de luz fugazes e aleatórios pelos nossos rostos. A expressão dela assustou-me pois esporadicamente via um olhar congestionado como se estivesse prestes a chorar. Peguei-lhe em ambas as mãos, e senti a pulsação acelerada, e perguntei «-Dora, estás bem? Se foi o que eu disse não ligues, só tenho teorias da treta.» O contacto físico fez libertar a tensão que rapidamente acumulara com a frase que me pedira para repetir. Inclinou a cabeça para baixo e como que se quebrou em lágrimas e instintivamente a abracei para purgar a dor e a tristeza do seu corpo. Quanto mais protegida, mais chorava, e mais eu a apertava, e como costuma ocorrer, ao sentir o seu cabelo perto da minha boca, soltei-lhe um beijo, a ver se passava algum do meu carinho, para o ser indefeso e vulnerável, uma forma de dar um beijinho no dóidói, para passar a ferida. Não vi, no escuro, a posição da cabeça dela, e o cabelo que eu sentira nos meus lábios estava sobre os lábios dela, pelo que sem querer lhe beijei o canto da boca. Isso fez com que se recompusesse, pois era como um lembrete de quem eu era e do motivo de ter passado parte desta noite a falar comigo. Limpou as lágrimas, chegou-se para trás e pediu desculpa. «-Estou emocional, pois o que disseste era o que o meu pai dizia muitas vezes, e eu achava que era por raiva da minha mãe que nos abandonara para viver com outro, mas não, o meu pai não a odiava. Fazes-me lembrar ele, tão destruído como a sua ideia de amor.» «-O teu pai deve ser uma pessoa interessante de se falar.» disse eu. «-Era, morreu há 10 anos.» «-Epá, não sabia, desculpa.» Fez um gesto com a mão a cortar a atmosfera, para escusar as minhas desculpas por ter mencionado o pai. «-Criou-me e ensinou-me quase tudo o que sei, e durante muito tempo ressenti-me dele por não me criar como rapariga. Com mariquices e pompons cor-de-rosa. Fizeste-me lembrar dele e sinto muito a sua falta. Por isso fiquei aqui parvalhona a chorar à tua frente. Deves achar que sou uma tola não é?!» «-É. Mas já achava isso antes.» «-Parvo!» e com a palavra saiu um ataque da mão aberta ao meu braço, castigando-me pela injúria prévia. Mas a sua mão ficou e agarrou o contorno do meu úmero. O movimento gravitacional terrestre pareceu abrandar, e os olhos fixos na escuridão intermitente, com raios de luz passageiros a alta velocidade, olhando um para o outro. Ambos tínhamos o mesmo tipo de casaco de cabedal gasto, mas eu tinha botas da tropa e ela um vestido branco com papoilas vermelhas e a rama verde das mesmas. Lembro-me do meu avô me chamar ‘João das Flores’, porque quando era pequeno estava sempre a colher flores e a dar-lhe a ele e à minha avó, e as minhas flores preferidas eram as papoilas. Sempre adorei o vermelho. Ela era mais alta que eu para aí uns dois dedos. O cabedal rangia de abrasão, com os pequenos movimentos e agarrei os braços dela que agarravam os meus. Julgo que nem eu nem ela sabíamos o que fazer, mas algo de demasiado forte me impelia para ela. O seu cabelo era negro, mais comprido à frente, escadeado em ângulo, não sei dizer pois não percebo nada de cortes de cabelo, muito menos femininos. Toda ela tinha estilo, a roupa assentava-lhe bem, e sabia claramente vestir-se. Tinha umas botas que terminavam pela canela cujo cabedal preto tinha por alturas do peito do pé um enfeite qualquer vermelho, que combinava com o malmequer do vestido. Eu tinha-me apercebido dos olhos claros mas apenas quando olhou para a claridade do telemóvel, é que percebi que eram verdes. Na sala ao lado alguém deixara cair um tabuleiro com garrafas e copos que se estatelaram no soalho, com algum alarido, e no momento menos próprio, mais inadequado, puxei-a para mim e beijei-a. Estivemos a respirar a respiração um do outro, e eu sem aquela pressão de mostrar que beijo bem ou de conduzir as operações para a cueca. Apenas sorver todo e qualquer gás libertado de dentro do corpo dela, por via exclusiva dos dois orifícios cranianos. Havia algum desespero existencial nos amassos que me dava. Como se acreditasse piamente que era eu, por quem sempre esperara. Comecei a temer a vergonha de ficar de pau feito encostado a ela, mas assim que me sentiu apertou-me mais para si. Encostámo-nos à parte de um sofá alto, e envolveu-me com as pernas, e já toda a dança e sofreguidão exigiam passar a uma solidão a dois. Mas como não nos conhecíamos, ela apenas olhava com desconforto em torno de nós. «Eu sei o que estás a pensar. Porque estou a pensar o mesmo. Preciso de estar contigo mas não aqui. Não vim aqui para nada do que se vai passando relacionado com as consequências da futurologia.» disse eu. Ela percebeu e concordou e disse, «- Quero estar apenas contigo, a sós, não neste ambiente.» Saímos e fomos para a rua. Chamei um Uber, e ela disse que tinha o carro próximo. Cancelei, e fui de mão dada com ela, até à casa dela, com vista para o mar escuro de espuma branca iluminada pela Lua ali da Ericeira.
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