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Sorte grande e prémios de consolação I

4/3/2022

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Sorte grande e prémios de consolação I
 
Pode um homem nascer chato por dois motivos, por uma visão que flutua como farpa em carne viva, (que não consegue retirar e que é a visão de que há algo de errado consigo, é inadequado ou de outra qualidade inferior em relação aos outros), ou por ser um cobarde que foge da vida.


Mas ambos têm algo em comum. O chato não o é por falta de jeito para não o ser. É por falta de motivação, porque sabe que no final de contas, não vale a pena o esforço para deixar de o ser.


Sente que o esforço não vale a pena ou porque se tem em elevada conta, ou porque tem tão pouco amor próprio que acha que existe algo de congénito mal nele. Um culpa a metafísica, outro a biologia.


Ser-se chato, sem brilho, corriqueiro, normal, é um conceito infantil ao mesmo tempo que tragicamente perto do pulsar da vida.
O chato geralmente sabe que esta merda é uma pantomina, em que todos fazem de conta e em que ele se perderá se fingir como os outros.


Por mais que tente, algo no seu olhar revela aos outros aquilo que não consegue esconder ou não exprimir, que não acredita totalmente em si. Mesmo o espampanante que fala alto na rua e nos cafés, está só a compensar a sua crença que tenta de qualquer forma  esconder.


Nascem os indivíduos com personalidades ordenadas em escalas de aproximação ao que seja o gosto geral em cada época. Talvez o chato fosse aquele de quem ninguém sentiria a falta por ser comido por um urso ou tigre-dentes-de-sabre. O chato, o pacato, o taciturno, talvez fosse a carne para canhão da pool genética. Hoje em dia, os chatos passam ao lado da reprodução, enfiados numa solidão mitigada com  jogos de computador, redes sociais e idas ocasionais ao bordel.


 
Também existem mulheres aterradoramente chatas, mas com as mulheres é diferente.


Por pior que seja a mulher, existe sempre um enfadonho parceiro que a aceita como é, e a quem ela acaba por desprezar por isso.
Voltaire dizia que a arte de se ser chato era falar sobre o que se achava saber bem.


O chato é duplamente chato, fala do que acha que os outros querem ouvir, ou fala de si mesmo.
Há também o chato e chata que evitam falar, e se escondem da vida, para ninguém notar neles. Esses passam menos por chatos, pois não arriscam sequer exprimir a sua verdadeira personalidade, jogam pelo seguro,  cobardes, apenas até onde sentem que escusam de continuar a fingir. Muitos tomam essa cobardia como traço distintivo de carácter, que tratam de trazer ao peito.


Mas, dizia eu, a mulher pode ser chata e sem sentido de humor, encontra sempre um paliativo para a solidão, não encontra é AQUELE que ela quer.
 
O chato é aquele culpado de ser o que é, sem poder evitar. AQUELE, é igual, mas simplesmente é apreciado sem que faça algo para isso.
Por mais intragável e bidimensional que seja a tipa, pode sempre encontrar um burro que a carregue, se não fisgar um puro-sangue.


O chato e o sedutor não têm, em 99% das vezes culpa da lotaria genética, ou da Providência que os fez vir ao mundo com uma personalidade mais ou menos melancólica, com diferentes gradientes de tristeza e vida interior.


Passava na televisão do Irish Pub, o videoclip da Kate Perry, o ‘The one that got away’.
Nele se via que ela chorava, ainda depois de velha, por um amor de juventude, arrebatado e intenso como só a ingenuidade de poucas Primaveras permite.


As coisas batem mais quanto menos sabemos. Por isso os velhos são chatos, acham que sabem muito da vida, e falam disso.


Ela bebia uma cerveja à minha frente, com o mesmo ar de enfado de sempre. Era raro ver a moçoila alegre com alguma coisa.
Nem me encarava bem nos olhos, tal não era o despeito, o desprezo a jactância em relação a mim. Foi quando percebi claro, que se achava melhor do que eu, que nestas cabeças equivale a achar-se acima de mim.


Perguntei-lhe por umas amigas que haviam saído connosco a semana passada, e parece que toquei num botão, pois a habitualmente calada fêmea, desfiou uma torrente de palavras acerca das aventuras das amigas, e eu senti a sua catarse ao fazê-lo. Ela não me estava a contar nada, a partilhar comigo. Ela estava a tirar tensão do peito, claramente triste por não andar nas mesmas aventuras.
 
As amigas eram frequentadoras assíduas das discotecas da parvónia onde trabalhavam.


Facilmente granjeavam atenção de cachopos desejáveis e arrumados em escadas hierárquicas de interesse. Um mais interessante que o outro, conforme o conhecimento do jogo, a habilidade em não mostrar interesse interessando-se, e de mostrar liberdade sem se prender. Haviam conhecido dois tipos, que as convidaram assim do nada para ir a Benidorm, porque é algo inesperado e relativamente chique (pois lembram-se de algo que era comum há 20 anos mas não é tão em voga hoje) e toca de partirem.


Sem saber se os tipos eram assassinos, violadores, ou padeiros.


Foram, elas seguindo a filosofia YOLO (You Only Live Once), e correu tudo bem e na semana seguinte outros e outros sem fim, as iam seduzindo para a vida com promessas de novidade e picos de endorfina. Quanto mais altos esses picos, mais difícil se torna a elas algum dia aguentar com o gajo pacato lá do trabalho.


Quem andou em jets privados, nunca se contentará com um Volkswagen Jetta.
Claramente a minha interlocutora sentia-se amarrada a mim, por contraposição às aventuras contadas pelas amigas.


Enquanto ia falando, eu reparava no dito videoclip, e dissecava a historieta, ela idosa, com uma boa vida material, com o marido na cozinha, chora pelos cantos um amor de juventude que morreu num despiste de automóvel por ela deixar algo seu na viatura que o distrai para a morte no fim de um penhasco.


Ambos artistas e radicais como só os jovens acreditam ser, pintam telas em branco, ele apaixonado pela sua arte, uma clara mitificação do pintor que pinta por violentos impulsos como se esse fosse o sinal do génio, o vulgo gosta. Quando algo se torna comum, torna-se estéril de novidade e portanto, a excentricidade é tomada como factor de sofisticação dos indivíduos. Ora o chato sabe que isto é que é estéril, e frívolo, mas isso é porque ele não sabe jogar o jogo, o jogo é esse. Fingir. E acreditar no que se finge. E não falar do jogo.


Na minha análise não consigo deixar de pensar no marido, no prémio de consolação depois da morte da sorte grande.
Se calhar porque sou orgulhoso demais para me contentar ser a segunda escolha de alguém.


Mas por isso, se calhar sou chato, se calhar jogar bem o jogo é não se ralar com isso.
Como pode alguém viver feliz com outra pessoa que sonha pelos cantos com um terceiro?


No videoclip, a idosa tem um carro, marca e modelo, do amante desaparecido.
A ideia é gira e poética, apelando à YOLO e ao amor perdido.


Ao que podia ter sido e não foi, ao que é.
Eu estou sempre a ruminar no passado, para o interpretar, não para voltar a ele.


A viúva alfa, isto é, a mulher que está de luto por alguém do seu passado que não logrou manter, por morte ou ruptura, vive no passado e nunca pode ser uma opção de futuro, por mais que escondam ou a Cosmopolitan tente convencer do contrário. Claro que todas têm as suas histórias, umas escondem melhor que outras.


O chato anda sempre à procura dos indícios que revelem esse logro.


Acabado o videoclip, vejo-a de braços cruzados e cogito um pouco mais sobre a quantidade de mancebos que estão a preencher o sidecar de alguém.

​
Mando vir mais uma cerveja para ambos, que bebo de imediato para o caminho.
«-Para onde vais?» pergunta-me ela.
«-Para onde sou eu que faço o guião.»
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