«É talvez o grande fracasso humano: a desproporção entre o valor e a dimensão. Não há nada que tenha o tamanho que mereça. (...) Acontece, registo, acontece, registo. Mas é tudo mentira (...) Maior tragédia do que esta não existe.» MEC, Cemitério de Raparigas, p. 307
Rapsódia Solipcista
Doce Sónia
A melhor parte de roubar a vida a alguém
É o olhar, não quando ameaças, não quando magoas,
Nem quando vê a faca, é o olhar quando sente a faca em si
Rasgando a carne, prenunciando a morte que a caminho vem
Assim os vampiros, recolectores em emoções viciados, assim as pessoas
A entrega com reservas de alguém os juízos precipitados de ti
Ambos o frio da lâmina sentimos, ambos sabemos que é a morte
E não é preciso ter os colhões cheios para falar de amor
O teu templo é uma miragem longínqua do vento secreto, voltas que dá a sorte.
E preciso e sorvo todo o amor a que consigo aceder
Não te assustes de sentir tanto.
365 vezes, um ano e tal
Pouco mais que olhares
Uma mão de palavras vazia
Não evitam afinal
Preconceitos e juízos, e pensares
Que me tivesses conhecido algum dia.
Às vezes, o mundo é duro e cruel
Só estamos cá para perder
Abençoa-me antes de te despedires
Despojada dos preconceitos que vestires.
Nua.
Estás condenada
Roguei-te uma praga
Estamos os dois na cama agarrados
Deitados num fardo de feno
Entrelaçado como meus braços nos teus
Festejando-te num leve aceno
Os meus votos de silêncio são meus lábios molhados
Que tua língua alaga.
Cessa a tua boca cheia de guerra
Danço comigo mesmo
Dá-me o teu som
Dá-me o teu cheiro
Sorvo-te e como é bom
Ver-te vires-te comigo em tuas pernas prisioneiro
Vem-te primeiro.
Não, não sou bruto ou agressivo
E que o fosse, ou castrador
Quem sabe se frontal
Foi por amor foi por amor
Foi por amor meu amor
Eu porque à dor tanto me esquivo
Queimo-me não por ser vela
Mas por ser castiçal.
Castiçal que se afoga em cera
Desesperado e suplicante
Pelo respirar de uma boca que quisera
Viver beijando-me num amor não degradante.
Se continuas com vitupérios
Acerca de mim formulados
As tuas palavras serão adultérios
Do silêncio dos nossos beijos não dados.
Persigo sim senhora o objecto
Do meu desejo tornado
Ternamente delineado o projecto
Bastante directo, sim
Ardo por saber se o que de mim para mim
Digo, tem no objecto, o efeito planeado.
Porquê?
Porque sou descompensado.
Talvez louco.
Vivo o amor a três.
Eu, o outro, e eu outra vez.
Amando nunca se está acompanhado
A outra é muito pouco...
Não se vê?
Não consigo dormir
Sonhando com o amor que vou fazendo
Dentro da minha cabeça.
E muitas susanas pululam por aí
Um cemitério de raparigas
Na minha recordação
Objectos artefactos
Desta forma de masturbação
Amo-me através de outras
Degraus de mim para mim
Cachorro que persegue a própria cauda
Dervixe de mim mesmo encarnado
É por mim, por mim, amor, que estou apaixonado...
Que a tua potência judicativa não aplauda.
Escapo da franja
Fria e sem dó
Não me quebrarás
Nas trevas, mas ainda vejo
Cala-me droga-me
Fode-me como uma puta
Venho-me lentamente
Quando me podes acompanhar
Faz-me chorar para lavar a mágoa
E para poder afundar.
No meio do inquietante negro gentil da noite, por mim me apaixonei
Na forma de uma qualquer susana
Efabulação de diamante chicote memória em açoite, não procurando
Um sim mas uma fantasia soberana.
Às vezes sinto-me (como ela) destroçado
Sozinho e no fim embalado
Dá-me vontade de regurgitar
Fico tão sozinho desboto até já nada restar
Independentemente dos corpos que tenho à disposição
Olho para o espelho e vejo algo translúcido que já não é o João.
Com esse par de lábios
Com esse pôr de lábios
Que são teus
Conduziste-me até ti
Seduziste-me até mim
Fui então fundado
Esfomeada precisavas de mim integral
Agora sobram os restos mortais
E a areia nos meus braços
Ainda me sinto esventrado
A espada lancina ainda na minha alma
Teus caninos no meu pescoço
Ou a cicatriz do julgamento sumário
Feito como amor escondido num armário
Por sobre máscara anual de um(a) falsário
Transformada no teu sudário...
Abandonaste-me dissecado, sorvido, esventrado
Não mergulhes de cabeça nos meus olhos
Faz muito tempo que água não tem
Apenas escolhos
Rememorações cicatrizes escombros
E sorrisos dos nossos confrontos...
A quem quer amar:
O amor é uma maleita,
Que o corpo não aceita
Que a alma não rejeita
O Amor
Não paga contas não dá indicações
Regula a tua vida pelo seu bater sincopado
Do teu coração por ele destroçado
Não aceita reservas nem dá justificações
Fica uma vida inteira de ti se alimentando
Acelera o fim, queimando os momentos que ao teu lado vão passando.
Eu :
Queria ter um momento
De alegria felicidade
Por cada abismo onde me lancei
Ao pensar que o amor era um alento
Da sinceridade igualdade reciprocidade
Cheguei até hoje sabendo que me enganei.
Olho agora para os desertos
De areias caveiras e arrais
As memórias são esqueletos despertos
Que não deixam esquecer os amores em que me dei demais.