A pila estava ardendo.
A noite de sexo deixara espólio sob a forma de vermelhidão e um sentimento de ardor, na minha zona corpórea mais sensível. Durmo sempre depois de dar uns beijinhos e me habituar ao corpo dela, até que ela se farte da minha atenção e só queira queimar algum tempo sob o signo onírico. Depois de uma sessão de foda começada às quatro da tarde, eram duas da manhã e eu olhava para ela dormindo. E a olhar para ela dormindo, olhava para mim olhando para ela dormindo. Coisa fodida esta da consciência, a puta nunca incide exactamente da forma que quero. Ela, dormia levemente sem movimento rápido dos olhos, de boca aberta, e eu olhando fazia-lhe festinhas no rosto como que se o meu coração se abrisse sem ter ninguém à frente para se proteger, e eu imaginando todas as possibilidades em aberto no futuro, e eu depois delas a lembrar o momento presente. E que no cômputo geral da vida quer o meu amor quer o significado daquele momento meu seriam tão insignificantes como a extinção em massa dos dinossauros para os hominídeos de hoje. Pela porta espelhada do guarda-vestidos vi a minha cara de apaixonado reflectida de volta para mim, e o gajo lá do outro lado respondia-me com um olhar que parecia perguntar ‘-Tás parvo?Dás-lhe meia hipótese e ela oblitera-te. Protege-te parvo, parece que não aprendes.’ Isso e outra coisa, a minha reflexão revelava uma expressão de mim, que raramente vejo na minha cara e que é tão mas tão óbvia. A de carinho e vivo apreço por aquela pessoa que respira de boca aberta. E só por isso me reconheci como humano, como macaco pelado, cuja individuação apresenta como maravilha do Universo. Eu e milhares de outros ao mesmo tempo deveríamos estar a olhar para espelhos, no planeta Terra, e a pensar no mesmo. Apenas eu e o meu amigo ego, trabalhávamos para conferir ao momento um carácter especial que a Matemática não permite. Que se foda, matematicamente esta pessoa nunca me esquecerá nem eu a ela, seremos acordes em patético menor pelo registo do elástico tempo da relatividade. Não me quis trair, todos os elos partem. Mas os elos partir, não me determinam. Sou mais forte. Mantive o meu carinho, a minha expressão de apreço por esta humanidade de boca aberta e que tinha de se levantar cedo para trabalhar no dia seguinte. A decisão tomada por forças alheias a ela dentro de 1300 centímetros cúbicos de crânio não me determinaria mesmo que o resultado fosse, e será a minha aniquilação. Mas já morri antes, a morte não me vai levar de vez. O corpo dela sob o ronco que as mucosas de 40 Primaveras permitem, não me erodiu a palma da mão que transmitia o meu espanto e fascínio por alguém diferente de mim a quem não consigo resistir, e cuja tonta expressão de apreço se reduz a um toque físico, uma festinha prolongada na sua derme, porque mamíferos sabemos que o toque é rei ou autoestrada para a verdade. O cérebro dizia-me para não me acostumar à proximidade, mas nas suas falhas futuras, na sua falta de consideração para comigo, na sua falta de respeito, eu não via um ataque pessoal, apenas expressão da sua humanidade, ainda presa à visão imediata que tem do mundo. Dizem que a àguia lá em cima vê toda a paisagem e que o rato apenas conhece os corredores por onde foge. No fundo não sou eu o predado, sou eu aquele que tenta perceber o que é humano, numa fogueira onde deita a madeira de que é constituído, rejuvenescendo como uma fénix que lamente pelo eco do infinito, «-Esta merda é tão estranha, não percebo um caralho. A racionalidade de Deus não me esmaga, enlouquece-me.»
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