I
Márcia. Presa numa cadeira de centro comercial com um prato de salada espartana e um copo de meio litro de ice tea calórico. Quem me conhece diz que eu gosto de mulheres de olhos tristes. Quem o diz tem razão. Há qualquer coisa no lamento existencial que um olhar triste exprime. Como que se partilhasse comigo a rejeiçao ou despeito por este mundo ou realidade, que não só me parece uma piada de mau gosto, como uma intencional forma de castigo. Os olhos tristes são ao testemunho de quem já se despediu da vida mas ainda não morreu. Paradoxalmente, o abismo que origina o olhar triste pode ser a mais pura expressão da mais profunda rebeldia, como o efeito do mundo que nos quebrou, da rendição incondicional que nos levou a alma. Com leggings vermelhos e uma blusa longa que se estende até ao fémur em cortes oblíquos, Márcia olhava o vazio. Aquele olhar perdido num ponto indeterminado do espaço, como que se tudo entre as retinas e o infinito não fosse senão pó perdido em átomos a flutuar no ar, só visíveis em breves instantes em que reflectem a luz de um Sol quente de Outono que estupra a fresta de uma janela. II Os sapatos de salto alto em couro preto olhavam perpendicularmente um para o outro nas extremidades das pernas cruzadas. Combinavam bem com os leggings vermelhos, deixando ver uma pele bronzeada, mas ligeiramente solta além de um ponto óptimo não muito distante no corpo da mulher de trinta anos. O quadro global da sua aparência deixava perceber que o brio actual era mais afilhado de um pináculo de glória passada, que fruto de um investimento presente. Como aqueles jogadores da bola que a juventude prometia fazer ídolos, e que chegaram a saborear alguma notoriedade, e que passadas décadas continuam altivos mais para honrar a lembrança de sonhos desfeitos que por amor de si no resultado coevo. Eu reconhecia o olhar de Márcia, já o tinha visto em gente que viu o coração demasiadas vezes destruído, e nisto de desgostos, o Kurtz do ‘Apocalypse Now’ é que tinha razão, todos temos um ponto de ruptura. Vi-o em viúvas, em mães de filhos enterrados, em doentes terminais antes do tempo, em gente que fugiu da vida a vida inteira até à reforma, em gente que anulou sonhos de mocidade. O denominador comum talvez seja uma espécie de divórcio com a vida. III Bonita e elegante e com olhos tristes neste lamento, quase que me convidava a uma abordagem que fiz de imediato. «-Olá, chamo-me João.» Olhou-me como raposa de Torga, passando por vinha vindimada. O olhar exprimia algo misturado entre «-Com que linha vai este palhaço tentar coser-me...» e «-Já as ouvi todas, perdes o teu tempo.» O olhar era ostensivamente repelente. Tão ostensivo, que me convidei «-Posso sentar-me?» apontando para uma de três cadeiras vazias. «-Eu estou à espera do meu namorado, que deve estar a chegar.» - a sua voz era cristalina e com boa dicção. «-Certo, assim que chegar eu saio, estou só com curiosidade em algo em relação a ti. Gostava de te fazer uma pergunta.» «-Não me incomode, vou chamar a segurança.» - começando a virar o pescoço em todas as direcções, procurando os zelosos guardadores de espaços comerciais com casacos cor de vinho. Prossegui. «-Eu sou estudante de pessoas, e ali no banco estava a olhar para ti e estava a indagar sobre o porquê do teu olhar triste.» «-Olhar triste, eu? Está a ser desagradável.» - respondeu-me com uma indignação e asco superior à da primeira vez. «-Estava a ver o teu olhar preso no infinito, como se estivesses a recordar com mágoa qualquer coisa que determinou o caminho da tua vida até ao momento presente. Foi algum amor que azedou, oportunidade perdida ou escolha errada com consequências amargas?» «-Não tens nada a ver com isso!» - com indignação ainda maior que as anteriores, mas já com um semi sorriso a acompanhar a diferença de tratamento de você para tu. «-Eu tenho uma teoria de que as pessoas divorciam-se da sua vida como rejeição ao jogo e ao resultado.» Algo parece ter reverberado nela, como que se escutanto a sua voz interior nas palavras de outro. «-Eu não tenho o olhar triste, sou até muito feliz.» - era o que sabia e conseguia dizer. Era o que lhe importava a imagem exterior e esconder ou negar qualquer dissenção com a vida. Negar qualquer observação de outro acerca de si. «-Como te chamas?» «-Márcia.» «-Márcia, eu chamo-me João.» - e estendi-lhe a mão, que apertou e eu fixei um pouco mais do que é normal, o suficiente para ela notar que tinha a mão presa, e quando a retirou não abri a minha o suficiente para ela retirar a dela à vontade, ao retirá-la, passou entre os meus dedos que se arrastaram na sua pele dos dedos. A primeira carícia estava dada. Faltava escalar. «-Se fosses infeliz, dizias-me?» «-Claro que não.» Claro, não se conta a vida a um estranho que nos aborda num centro comercial. Isto está cheio de rebarbados inoportunos e desagradáveis. «-Pois lamento informar-te mas a tua teoria está errada. Sou muito feliz e estava só distraída e com o olhar absorto.» «-A minha teoria apresenta várias razões para esse divórcio. Uma delas é o longo trajecto do autocarro das pilas.» O rubor da sua face era uma mistura de escandalização pela expressão por mim empregue, e curiosidade. «-Desculpa, que é que acabaste de dizer?!» «-O autocarro das pilas é um percurso feito por cada mulher que se envolve com o sexo oposto, e cada paragem tem uma duração correspondente com o tempo da relação e impacto da mesma. A minha teoria diz que ao contrário do homem, que também tem o autocarro da vulva, a mulher sai diminuída deste trajecto.» Deu uma gargalhada sonora quase de desabafo de tensão. «-Sim, a mulher não pode ter os mesmos direitos que o homem, tem de estar em casa e fazer o jantar não é?» - o sarcasmo andava pelo ar. «-Não. Não penso assim. Penso que pela sua forma de amar a mulher sofre mais com a quantidade que o homem, o homem pode colocar a pila em tudo o que mexa, a Natureza fez o sémen barato e abundante. Já a mulher como que se queima a cada relação, chegando ao ponto de ruptura em que não se consegue ligar de forma profunda e satisfatória com um elemento do sexo oposto. Um pouco como que se tendo um número limitado de amores.» «-A mulher ama da mesma forma que o homem. O que estás a dizer é disparate.» «-Nem me estou a referir a isso. Estou-me a referir a um custo emocional e biológico. Emocional é que devido à abundância de pretendentes, cada mulher não se contenta senão com o ‘melhor’ candidato que ficou no passado projectando a sua sombra até aos que virão no futuro. Biológico tem a ver com a oxitocina e a sua produção no hipotálamo, e que ajuda a criar o sentimento de ligação entre homem e mulher. É libertado em maior quantidade durante o orgasmo, e parece que se vai gastando, ou melhor, o efeito vai-se embotando. Portanto quantos mais parceiros, menor a capacidade de ligação e o lamento de já não ser capaz de amar ninguém.» Ficara a olhar para mim. Prossegui. «-O resultado é esse olhar vítreo que te vi, misto de lamentação de amores infelizes e de não conseguir encontrar um depósito do nosso amor, porque já não nos conseguimos afeiçoar a ninguém. A maior parte justifica isso com o número de desilusões amorosas. Mas eu tenho uma teoria de que no amor não existem desilusões, apenas ilusões.» «-Estou a ver que és cheio de teorias. Conta-me mais.» «-São só teorias, tagarelices.» - respondi. O olhar dela alterara-se, e passara a ser receptivo se bem que notoriamente forçado. Estava a gostar da atenção e queria que eu saltasse à corda para ela. Coloquei-lhe a mão no ombro e seguindo com a mão para o pescoço que ao ser tocado se inclinou da direcção da mão, levantando-me de seguida. «-Onde vais?» «-Para o infinito, de onde me estavas a ver.»
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