O dia estava frio, mas o Sol às três da tarde não prometia a noite gélida que se avizinhava. Saído do CNANS e da minha pesquisa, donde só me esporravam naufrágios pelos olhos, encaminhei-me para Santa Apolónia, para ir apanhar o comboio, embora algo em mim me chamasse para a zona por onde entraram as águas do maremoto. A meio caminho dentro da estação, sinto o telefone vibrar na nádega esquerda, onde o havia arrumado dentro do bolso. Macacos me mordam. Era a Mónica. Foda-se. Com uma voz melosa, perguntava por mim, e atalhara logo por causa da demora a atender. «-Estava a decidir se te atendia ou não.» - respondi eu, sabendo perfeitamente que noutras circunstâncias, esta resposta seria suficiente para criar um drama e fornicar o juízo tipo cão de fila que custa a largar a presa já mesmo defunta ou rendida. Ela engoliu, eu percebi pelo esforço a parecer de novo melosa, o que me provou que era a mesma, apesar dos 6 ou 8 anos em que não nos falámos. «-João, gostava de falar contigo, talvez beber um café, estou na Baixa, se pudesses cá dar um pulinho…» O facto de se cagar para a minha existência antes, durante e depois do nosso envolvimento, fez-me estranhar o contacto súbito. Tive de sair para fora da estação, pela lateral, e saí precisamente no sítio onde esta semana um desgraçado estava a passear o cão e decidiu atravessar para o outro lado, saiba-se lá porquê, e foi apanhado por uma carrinha preta que o desfez a ele e ao cão. Alguém gravou, difundiu, e alguém me mandou por whatsapp, sabendo que não vomito facilmente. A lembrança comoveu-me e saí do lugar em marcha acelerada, lamentando um desconhecido que nunca conheci, vi a cara, ou vi passar. Comoveu-me pela morte trágica e porque geralmente, apesar de falar mal da vida e das gajas, adoro ambas, por esta ordem. E portanto, é menos um do lado de cá, que nunca mais se repetirá neste universo e isso para mim é motivo de lamento. Assim que o ruído decresceu, voltei à chamada e disse para ela repetir. «-João, vem ter comigo, preciso de falar contigo.» Perguntei, «-Mas estás grávida, tens cancro ou precisas de boleia?» Ela engoliu de novo do outro lado. Calou-se, e eu arrependi-me, apesar de uma voz me dizer para não ter contemplações com esta puta, que nunca teve alguma consideração por mim. Eu discutia com essa voz, mandada a terreiro pelo meu ego, dizendo que não sou assim, e que a partir do momento em que não sou colaborador com os destratamentos de outros, não tenho de recear o que os outros fazem a partir do que têm dentro das suas cabeças. «-Não, João, só gostava de falar contigo.» Ok, a curiosidade foi mais forte do que eu, e lá fui a reboque dela. «-Não leves a mal, mas encontramo-nos no Martinho?» «-Ok.» O Martinho, foi onde demos o primeiro beijo. Há 20 anos, quando namorámos. A minha memória é interrompida por uma pergunta no telefone que eu achava já ter desligado. «-Estás onde, quanto tempo demoras?» «-Meia hora.» E desliguei. Fiz aquele passeio de que tanto gosto, encostado mesmo à beira dos lancis junto ao rio que é assim visto de cima, verde pardacento, que levam ao Terreiro dito do Paço. Quando me farto de água, olho para as pessoas, e quando me farto de pessoas olho para o casario. Quando me farto do casario, olho para todas as memórias do espaço que percorro, e são tantas que em menos de nada chego ao destino sem dar pelo monótono tempo contado pelas minhas passadas. Antes de virar para Oeste, fiquei algum tempo a olhar o Cais das Colunas e a falar comigo mesmo, se queria ver e interagir de novo com esta pessoa. A curiosidade passara, e a resposta era negativa, mas não ia voltar feito tótó, para trás. Uma ideia mesquinha de a ver despojada do seu encanto físico, especialmente por contraposição à minha hipertrofia decorrente dos desportos aquáticos não dourados, animavam-me a ir ter com ela e lançar-lhe a escada da sedução para depois negar qualquer avanço, fazendo de mim aquele que rejeita, para variar. Fui em direcção da estátua, e já via ao longe a arcada, mas cada passo de aproximação, ainda que me desviando de quem andava para ali de patins em linha, prometia-me reviver a vida que tivera com ela, mas do ponto de vista do homem que sou agora, e que gostava de ter sido então, só que se fosse então o que sou agora, a coisa não tinha batido tanto, e por exemplo, não me teria feito dedicar de forma consistente à escrita, para perceber não só os meandros da rejeição, mas também às pessoas e a mim, por via de uma líbido que se manifesta alfabeticamente e em sessões de foda que só terminam quando tenho a pila em carne viva. Várias vezes fiz este caminho, com a mão enfiada no meio das pernas para poupar a glande esfolada ao atrito da ganga. Sempre amei de forma irrestrita e com uma crença, estúpida, de que apenas para lá da exaustão, podemos, eu e tu, eu e ela, eu e nós, ser transparentes e em paz uns com os outros. Longe vai o tempo em que usava os textos do blogue para seduzir gajas. Seduzir é forma de dizer, para assinalar a minha presença é mais exacto. Parei. Engulo em seco e percebo que no blogue, mais do que falar comigo, digo a elas, todas as coisas que ‘elas’, não me deixam dizer, não querem ouvir, ou conseguem entender. Que o blogue é a minha bóia em pleno Mar-da-Palha, para não me ser retirada a voz, sempre que alguma cachopa decide que ou não me quer na sua vida, ou que não mereço o esforço, essencialmente, porque é incapaz de me amar. Não porque não quer, apenas porque não consegue. É importante esta distinção. A rejeição não vem, na maior parte das vezes, por uma decisão ponderada e consciente, mas sim de uma incapacidade do próprio indivíduo aderir à causa. Não é, portanto, pessoal. Sim, escrevo, para que não me tirem a voz. Para que não me tirem a voz nem cuspam na minha emanação emocional. Todos andamos aqui até que a Senhora da Gadanha nos chame, a conviver uns com os outros, condenados de certa forma e em graus variáveis a conviver com determinado número de outros, como berlindes que chocam entre si dentro de um saco de renda de nylon. O berlinde de uma ponta, pode nunca chocar com o da ponta oposta, mas andam ali no mesmo saco, ao mesmo Tempo. Sempre considerei uma bênção o chocar com guelas, cujo encontro sempre resisti atribuir ao acaso. Se calhar porque me assusta o sem sentido. E não acredito, que nos encontremos aleatoriamente. A probabilidade de chocarmos com alguém é tão grande que o choque é ele mesmo um milagre, mesmo estatisticamente. Mas é uma questão de gosto pessoal. De um lado ou de outro, da predestinação e do acaso, o encontro não deixa de ter sentido, como por exemplo a ideia de uma borboleta pousar no nosso dedo quando o apontamos ao Sol. Este é um dos cilícios que me marca a carne, na minha assumida decisão de me envolver com os outros, sejam amigos, sejam amantes. Algo sobra para lá do mero choque de guelas, a improbabilidade desfeita, é por mim valorizada, nem que seja como testemunho da imponderabilidade da ‘Vida’. Fiquei a fazer tempo, a uns 300 metros da entrada, a ver se ela entrava primeiro. Mas eu conheço-me, mesmo que ela tivesse ganho 200 quilogramas de banha subcutânea, eu ia lá falar com ela. Era o cabrão do ego já a preparar-me para mais um potencial depósito de esperma que me replique os genes. Não sei se o frio vem com pés de lã, se eu estava demasiado absorto nos meus pensamentos, mas quando dei por mim estava gelado, do tipo de ter de esticar vigorosamente os braços para o sangue circular e aquecer a musculatura com açucares que geram calor. Simplesmente não conseguia estar na rua, e entrei, pedi um café e sentei-me lá ao fundo, meio marreco por ter um mostrador à altura da cabeça quando sentado, mas a que me forço pois quero olhar para a entrada. Olho para o meu relógio mecânico e percebo que decorreram 45 minutos desde a chamada. Esta puta não deve estar desesperada, pois se chega atrasada…o que só me deixou curioso de novo, o quererá esta gaja. Estava ansioso para ser surpreendido. Se me dissesse para irmos foder, surpreender-me-ia menos do que dizer que ia abrir uma roulotte de bifanas em Meca, e ela era gaja para isso. Conhecemo-nos ainda estava eu na tropa, e certo dia indo para o Alfeite às 7 da manhã pela Rua do Ouro, (atrasado tinha de apanhar o cacilheiro), sou abordado por uma loira platinada, Mónica Galvão, que estava naquele momento a vender uma colecção da História do Fado, que caso eu quisesse, podia experimentar audição, e ver a colecção completa disponível por suaves prestações. O meu remédio nestas situações era dizer, ó amiga, saí recentemente da recruta, e o meu ordenado como militar iniciante é o salário mínimo. Isso chegava para que me largassem da mão. Mas a minha pila levou a melhor de mim, naquela vez. Às sete da manhã de uma fresca manhã de Primavera, estava a Mónica a ver se ganhava a comissão dela, com um vestido branco imaculado com decote até ao esterno e costas ao léu. Ela sabia do efeito que provocava, mas era instrumental para enganar uns papalvos que são incapazes de negar uma mulher artificialmente simpática e acolhedora. Eu para ela era apenas mais um desse lote. Tinha um corpo como eu gosto, feminino, mas tonificado, era jogadora de futsal e tinha umas pernas perfeitas, e mamas a condizer. De cara, por causa do seu cabelo, ninguém diria que era portuguesa. Usava rabo-de-cavalo como eu gosto, quase encostado à moleirinha, e impecavelmente apanhado. O penteado e as pernas davam-lhe um ar menos frágil, e sendo quase da minha altura, não tinha medo de estar ali, a sacar assinaturas a rebarbados transeuntes. O trajecto até à sua secretária foi feito por mim a olhar o seu rabo, e ela a perceber, sem que algo a fizesse protestar, ambos conhecíamos o jogo. O que mais gostava nela, é que não se queixava hipocritamente. Na altura de assinar a colecção, eu estava pressionado, como é que eu mantenho esta interacção, com uma gaja que deve ter mais solicitações que o gajo que faz de Pai Natal boreal em Dezembro. Naquela altura, há uns bons 20 e tal anos, podia-se dizer o que se entendesse, no máximo passávamos por estúpidos. Era a minha táctica no antigo Hi5, suscitar polémica, para depois captar a atenção da pessoa, hiper cansada de ois, comoestás, olás, de legiões de homens sem ideia nenhuma de como se fazerem sobressair no meio das multidões virtuais. A minha forma era forçar uma má entrada e trabalhar a partir daí, e era mais eficaz que a abordagem educada e baunilha. Gabava-lhes o cabelo e depois perguntava se era verdadeiro. Admirava-lhes os dentes e perguntava se tinham sido caros. Perguntava-lhes quanto pesavam, e outras merdas que as faziam responder e não bloquear, pois apelava à sua vontade de me enxovalhar, e eu trabalhava a partir daí. Hoje até essa merda me tiraram, fiz o mesmo no Ok Cupid e os paneleiros bloquearam-me. Já não tenho o direito a ser estúpido. De modo que me saí com o que melhor me ocorreu. «-Olha, quero-te fazer um vestidinho de cuspo.» E ela respondeu, «-Hã?» Ela não ouvira bem a frase, o que pensara ter ouvido não lhe soava a algo de inteligível. «-Não percebi, repita, se faz favor.» Usou de alguma autoridade na voz, calculo que no seu íntimo, sabia que aquilo que eu dissera, extravasava o elo profissional da nossa micro relação. «-Quero-te fazer um vestidinho de cuspo.» Ficámos calados a olhar um para o outro. Ela a digerir o que eu dissera, e eu a mostrar que estava por detrás das minhas palavras e intenções. O momento prolongou-se bastante. Talvez ela estivesse em choque, eu só estava a passar pelos meus competidores imaginários, cheios de charme, savoir-être, graça natural. O nosso olhar ficou preso. Não olhávamos um para o outro para decifrar os trejeitos do rosto, mas para o preto das órbitas e tudo o que está para trás dele. Eu comecei a ficar arrepiado e foi isso que me acordou da hipnose. E ela ao ver-me consciente de mim, também se recompôs. Ambos ficámos sem palavras. O silêncio tornou-se insuportável, e eu meti o rabinho entre as pernas e saí escadas abaixo, e fui a correr para os barcos, para não levar piçada de chegar atrasado ao serviço. Fui até Cacilhas só a pensar em que raio se tinha passado ali. Disse para mim que iria lá no dia seguinte, mas que lhe diria eu, que mais há a dizer, depois que dizemos a alguém que a queremos lamber toda? Fiquei com alguma apreensão. Semelhante à primeira vez em que me masturbei. Eu sabia lá o que era uma punheta. Em determinada altura da minha adolescência, era bom mexer na gaita, e se prolongasse as carícias, algo diferente parecia ocorrer, do nada, o coração batia mais rápido e eu ficava ofegante, mesmo que só estivesse deitado. Certo dia uma gota, única, de um líquido viscoso, saiu de onde antes só urina havia saído. E um certo alívio. E ao mesmo tempo apreensão, por ter partido algo, avariado. Ou por ter passado por um portal onde nunca mais voltaria ser o mesmo que havia sido até ali. Com Mónica, o alívio era acompanhado de apreensão também. Ela era a expressão de que o Mundo me pisca o olho e portanto não é um lugar impessoal, ao mesmo tempo que não sou meu dono, isto é, há algo entre os berlindes, que vai além dos guelas. O Mundo, por via de quem realmente amamos, espeta-nos na cara a ilusão da nossa individuação. Como que dizendo : «-Estou de olho em ti cabrão, mas não aches que és o centro desta merda.» Todas as gajas que vieram depois dessa, foram significantes apenas por autoconvencimento meu. Gostei delas todas, sem excepção. Mas nada que eu não conseguisse controlar. Apesar desse receio, fiz várias vezes o mesmo trajecto a ver se a via, e cheguei a pisar alternadamente o basalto negro dos motivos da calçada, na infantil expectativa de acertar numa combinação que a fizesse emergir ali do Tejo à frente, descascada para eu lamber. Nunca mais a vi. Fui à loja ou estabelecimento e estavam lá outras pessoas. Acabei por sair da tropa e entrei para a Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Lisboa, e certo dia na cantina, a almoçar rissóis vegetarianos de macrobiótica, com colegas, vi entre duas cabeças o rosto de Mónica. Levantei-me surpreso, e por coincidência ela também me viu. Ficou vermelha, mas não deixou de olhar para mim. Levantei-me e fui ter com ela. «-Olá.» Combinámos sair. Estava a estudar Medicina Dentária, que exerce hoje. Na Baixa. Na mesma casa ou prédio, onde me tentou vender uma coleccção de fado. Morava na Amadora e fui tantas vezes ter com ela a sua casa, quantas as que ia a exame de recurso, por deixar tudo para estar com ela. Passado o enamoramento, ela começou a desvalorizar a minha presença, a minha atenção fácil. Não apreciava o meu fascínio por problemas filosóficos e por todas as implicações dos mesmos, que eu via na ‘Vida’. Olhava para mim e via calças de ganga amarrotadas, camisas por fora das calças, e cabelo impossível de pentear e de ser sujeito a penteado. Dava com ela na cama a olhar pela janela, como se perguntasse à vida se era só aquilo. Comecei a perceber que já não era a luz dos seus olhos, e que o amor, lá por valer pelo que é para mim, pode não valer pelo que é, para outros. Isto é fácil de dizer agora, anos depois de tanta ruminação sobre o assunto. Claramente eu não prometia o que ela desejava ou precisava. Olhava-me como olhamos todos aqueles que consideramos pobres de espírito, por não parecerem saber como funcionam realmente as coisas do mundo. É uma espécie de racismo ontológico em relação à índole e crenças dos outros. Tomamo-los como parvos. Inadequados, condenados à extinção e ao esquecimento. Não demorou a pôr-se ao fresco, sem mais justificação que a sua ausência e silêncio. Na sua ideia residia a convicção que estava a desempenhar um acto pedagógico, a dar-me uma lição para ver se eu aprendia, totalmente ressabiada, agoniada até, por ter caído na minha teia que não teci, e de que se safara por um triz. Pior, porque nenhum motivo lhe dera, a não ser o meu amor incondicional q.b., era necessário que me visse com maus olhos para poder conviver com a decisão e consequências. Esquecer-me, negar-me a humanidade de ter ficado sentido, era o caminho mais rápido para se sentir liberta de grilhões que nunca lhe coloquei. Os anos passaram e os namorados também, e ocasionalmente lembrava-se da minha existência quando mais ninguém lhe parecia encher as medidas, ou quando o ego precisava de saber que existe pelo menos um x, tal que esse x é vivo e acredita que ama y. Ela própria percebeu essa dependência, e certa vez achou que a solução era dizer que iríamos ser amigos. Podia estar comigo para matar o que asfixiava dentro de si, sem se envolver. Para ela parecia perfeito. Para mim, era a suprema traição. «-Mas és parva. Achas mesmo que dá para sermos amigos? Achas mesmo que o que se passou entre nós, é um mero choque de berlindes?» «-Berlindes? Estás a falar do quê?» «-Esquece.» Revoltava-me a ideia e ela, ao ponto da náusea e do vómito, não só por eu acreditar que há algo mais que o acaso. Ser ‘amigo’ dela seria negar a minha mundividência, para aplacar a que ela atraiçoara. Isto a partir dos meus olhos, pois ela por certo não pensa ou vê como eu. Mas dizer para sermos amigos é trair o elo que em algum momento existiu entre nós…como que dizendo aleivosamente ao ‘Mundo’: «-Ó filho da puta, escusas de intervir, porque esta merda não passa de acaso, nascer e morrer pelo meio.» Estação após estação, não conseguia reunir comigo, nem afastar-se completamente. Fosse pela facilidade com que encho egos alheios carentes do valor que me negam a mim, fosse, acredito, por algum resquício de memória do amor que trocámos, antes da fonte ficar envenenada. Eh, sou o primeiro a aceitar que por eu acreditar na predestinação dos ‘corações’, não se segue que outros tenham de acreditar. Afinal, cada berlinde é diferente, e batemos uns nos outros de forma diferente e de acordo com as nossas constituições vítreas. Mas o tema que de há uns anos a esta parte me apaixonou, foi esse mesmo, de como nega um indivíduo, essa manifestação do ‘Mundo’, por via das suas crenças e teimosias. Como no caso de Mónica, que se queixa da frivolidade das relações desde mim, mas que é incapaz de me ver sem ser com os seus olhos, tão enviesados como era quando me via como mais um papalvo a ludibriar com prestações a 84 meses. As pessoas veem como são, e nada há a fazer. Chegou uma hora atrasada com um vestido azul que lhe caía bem no corpo tonificado, com blazer branco por cima e óculos com aros vermelhos a combinar com os aros dos brincos. «-Olá, desculpa o atraso.» Sentou-se e ficou de frente para mim, e quando me sentei de lado, achou que o fiz para ficar mais próximo dela, nem dando luta tal a minha prontidão em adorá-la de novo. Mas eu estava era à rasca do pescoço, por ter ficado de frente para a porta. Após as trocas de informação básica, que tens feito, passado, etc, eu perguntei-lhe, «-Que se passou para quereres falar comigo com urgência? Tiveste alguma introspecção nocturna que te fez lembrar de mim?» «-Já me tinha esquecido que vais directo ao assunto.» «-Quero só saber o porquê.» O que se seguiu foi uma rememoração de algumas coisas que passámos juntos, como se acreditasse no mesmo que eu. Eu perguntava-me que queria ela de mim, o que lhe fizera modificar o seu comportamento. «-Este café, onde nos beijámos, e de onde um dia no Verão, perdeste a aposta e foste a correr daqui para o Cais das Colunas para mergulhar na água, e eu fui atrás de ti a apanhar-te a roupa.» «-Do que me lembro foi de ter mergulhado de rabo em maré vazia e ter batido com o cóccix numa rocha, e ter demorado 20 minutos a conseguir subir os degraus submersos de volta, sem escorregar.» Ela riu-se e continuou a evocar memórias, que eu sabia que me moviam por dentro, afinal sou o teórico de que os amores não morrem. Se calhar para dar sentido ao que sente por dentro, mas não quer ou pode… ou consegue, continuar em acções reais. Não lhe perguntei se estava casada junta, amantizada. Não me interessava. A partir de determinado ponto parecia um presidiário que ao comer impede acesso ao prato com o seu braço e torso, para impedir roubos fortuitos de comida por parte dos outros. Eu protejo o meu amor por ela, porque é meu. Ela nunca quis acreditar nele, sempre se negou a uma mesma visão que eu, e está no seu direito. O que o torna ainda mais meu. Comecei a ficar enjoado da conversa, até que não me contive. «-Mónica, no período de tempo em que nos conhecemos, nunca fui uma prioridade para ti. Sempre achaste que o melhor estava noutras paragens, ou no porvir. Sempre te achaste melhor que eu, mais sabida do mundo, das coisas e das pessoas, e eu um imbecil sentimentalista. Sempre foste escrava das tuas idealizações e de onde quer que fosse que visses brilho. Desdenhas os meus gostos musicais que qualificas como infantis, só porque gostaste deles quando eras mais nova. Desprezas o que digo sobre os encontros entre pessoas porque achas que são os livros de Filosofia a falar, ou pior, canção de engate barato análoga a gaslighting que visa convencer-te como me tentas convencer agora. Já uma vez te disse que para vires ter comigo de coração aberto tinhas de te engolir a ti mesma completamente. Não só por uma questão de franca espontaneidade. Mas para me poderes ver menos como achas que sou, desde que me desqualificaste por comparação com as tuas idealizações. Tal como não te exijo que partilhes a minha forma de ver a razão do nosso encontro nesta Terra, não deixo que me exijas aquiescer com a visão enviesada que tens de mim. E que nunca vais deixar de ter. Pura e simplesmente porque tens todo o teu ego investido naquilo que pensas ser e gostar. E é isso que tens de engolir para me veres com outros olhos.» Como ela nada disse, apenas olhou para a mesa, eu prossegui: «- Sempre optaste por outros. Sempre tornaste claro que nunca seríamos mais do que dois ímanes condenados a movimentos opostos de atracção e rejeição. As tuas palavras e acções são tão contrastantes, quanto desnecessárias. Nunca te pedi nada. Nem me interessa saber se o que dizes sentir é verdadeiro. Em mim é e basta-me. Para ti é como se fosse táctica de engatatão que diz sempre que sim a tudo, carpet bombing, quando é mais tomar propriedade de algo em mim que sei existir e nada conseguir fazer contra. És incapaz de me respeitar, e de me entender. E não há mal nisso. Eu é que não tenho de validar essa tua ilusão.» Levantei-me para ir embora, larguei cinco euros na mesa para pagar o café e a água com gás que ela pedira, e quando estou a passar por ela, ela agarra-me na mão e pede para não me ir embora. Baixo-me ao nível do seu rosto, e beijo-lhe a orelha, que continua a cheirar a frutos silvestres, e penso que nunca poderei confiar nela porque nunca fui uma primeira escolha para ela. Sou uma curiosidade que por vezes lhe revela o abismo da sua auto dissolução, de tudo aquilo em que investiu tanto, do seu ego, do seu tempo. No fundo ela vê-me como o seu fim, a sua anulação. Precisa da minha ajuda para me dissolver, porque sabe que sozinha não consegue. Tem de me ver de forma atávica, porque sabe que pode atrair-se pelo abismo. Tal como eu percebi no cacilheiro. Ela faz por encostar a orelha fria aos meus lábios, e eu julgo percebê-la como pessoa, e a sua reacção não me parece tão pessoal como antes. Eu sei que é estúpido, mas é a sua sobrevivência. Há pessoas que vão para a cova sem mudar de lugar à mesa, mesmo que o pescoço esteja dormente. Habituam-se à posição. Eu tinha de sair, e tinha de mantê-la afastada de mim, para que pudéssemos sobreviver na nossa morte, longe um do outro. «-Mónica, e tu lá mereces que eu te trate como estrela, quando sempre trataste como satélite?» Ao caminhar, eu sabia que o frio caminho de regresso ia ser mais longo, pois eu ia bloquear todas as memórias caminhando para Norte. Felizmente a Lua namorava-se tal como Narciso, espelhada no estuário, e eu perguntava-me se eu não era o reflexo de alguém.
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