Vengeance is in my heart, death in my hand, Blood and revenge are hammering in my head — TITUS ANDRONICUS, ACTO 2 CENA 3 Saí de casa logo de manhã, e à minha porta estava um ouriço-cacheiro esmagado pela roda de um carro. Isto estragou-me logo o dia, pois além de ficar triste pela morte do pobre bicho, começo logo a pensar no significado da Existência pensada a partir da categoria do sujeito. Olhando os despojos, ainda se via o que fora um maxilar, um sistema composto de individualidade, por onde aquele indivíduo mamara nas tetas da mãe, ou por onde comera até morrer esmagado em lugar nenhum. Se por um lado eu pensava que a morte havia sido relativamente indolor, um rolo compressor de cerca de uma tonelada impede a viagem comunicativa dos centros de dor. Morte rápida, creio, comparada por exemplo pela morte pelo fogo, que eu já vi, pois, os ciganos adoravam este petisco, e os gritos de dor dos pobres animais são demasiado insuportáveis até para quem ouve. Foda-se, merda de mundo. Sob a capa da beleza, tanta morte e sofrimento sem sentido. Ligo o carro, deixo aquecer, e apanho o comboio na Bobadela, lá o estacionando. Estava há duas horas na Biblioteca Nacional a ler um livro que só lá existe sobre uma filha do D. Afonso II, quando o telemóvel vibra com uma mensagem. Era a Célia, a tal que sem vergonha me havia pedido sugestões para um trabalho da filha. Quer dizer, sem vergonha é forte. Talvez mais correto seja dizer que sem tanta preocupação com a congruência lógica e comportamental. Como aquelas gajas que pedem que lhes mudes um pneu só porque são mulheres, e exageram na simpatia e nas expressões de desamparo. Como já contei aqui no blogue, enrolámo-nos, e eu escrevi um texto nada simpático com um ou outro aspecto físico e da sua personalidade. Não o devia ter feito, mas não me lembro do contexto da altura, lembro apenas que nela tudo soava a falso, tal como a gaja que pede que lhe mudem o pneu. Ficou ressabiada, e num dos meus momentos mais baixos, fez a vingança serôdia dela, tentando convencer-me de um futuro cheio de sexualidade irrestrita, fornicando-me e eu a ela, no seu carro demasiado minúsculo, indo um pouco mais além no seu desejo fingido, de modo a ver se me despojava de orgulho próprio, não correspondendo às estocadas que exigia. Mas teve azar, porque não costumo falhar nesse campo. Eu precisava de distracção e exactamente no momento em que sentiu que eu a procurava, foi quando se distanciou. É preciso praticar Judo para perceber este jogo de desequilíbrios. Isso ou ouvir os adágios populares acerca das manhas femininas. Eu ri-me na altura, estava a passear a cadela e olhava para a sua mensagem seca e contrastante com as anteriores. Disse à cadela «-Olha a Célia vingou-se.», eu ri-me e a cadela abanou o rabo. Envolveu-se depois com um colega de trabalho com metade da sua idade, que pouco depois, após queda do queijo do bico do corvo para a boca da raposa da fábula, a largou com a eterna desculpa do «-Não sei o que quero e tenho de pensar.» Que é a patranha mais eficaz para o descarte. Elas acreditam e é bom para contar às amigas, pois coloca o ónus no gajo que abandona, e não na espertalhona que achava ter fisgado um prémio. Na mensagem a Célia dizia que me estava a dever um café, que tinha muito trabalho e tinha-se esquecido e outras patranhas do seu arsenal. Ainda fiquei a olhar para o visor do telefone a cogitar se lhe dava resposta ou a ignorava completamente. Antigamente tinha pudor em fazer isso, mas fizeram-me tantas vezes que tive que concluir que de vez em quando dá jeito. Fiquei uma boa meia hora, encadeado com os vitrais da sala de leitura, e a ideia de ver até onde ia a toca de coelho da Célia renascida, agora que era enfermeira, e não uma qualquer. E lá respondi, e ela lá despejou o mesmo reportório, o único que sabe. Prometendo sexualidade em troca de atenção e validação. Sabendo que a desejo, dorme melhor consigo à noite. É tão simples como isto. E eu indo no jogo como non-player character, aquelas personagens dos videojogos, que apenas estão colocadas nos cenários mas em nada influem no jogo, apenas na sua estética. Não respondem, não reflectem, limitam-se a mover no seu espaço virtual imaginado, de forma a ajudar a compor a história. As cantigas eram as mesmas e tive de fazer um esforço para fingir estar interessado e acreditar. Quando achei que já tinha perdido tempo suficiente, comecei a solicitar a sua atenção e a sugerir encontros e planos futuros. Farinha amparo e trigo limpo, bem certo começou a dar para trás. Vim depois a saber que nunca teve alguma intenção comigo, que o que queria era a validação, pois andava atrás de um médico do serviço dela, e para se sentir confiante com ele, precisava de alguém que lhe servisse como plano B ou C, para não telegrafar carência com o seu comportamento. Achei graça, estas macacadas são engraçadas. Mas lembrei também que ela não era a única ou a primeira a fazer isto. Lembrei-me da outra maluca (clinicamente), que andava com outro que a engravidara, ao mesmo tempo que me ditava condições para um futuro relacionamento, um potencial relacionamento entre mim e ela, que eu fingia acreditar. Mordia-me para não lhe dizer se queria que eu desse a pata, ou saltasse por dentro de um aro em fogo incandescente. Os seus ditames contratuais, baseavam-se na sua leitura da minha pessoa, e da atenção que lhe dava. A equação é simples, se dá atenção é porque não tem mais que fazer com o seu tempo, ergo, não tem pretendentes, ergo, tem baixo valor. É um non-player character. Quando certa noite perguntou o que eu pensava dela, eu disse, e ela não gostou. Levantei-me do bar na Almirante Reis, e disse boa noite e um queijo, rindo também. Pá, a malta para escrever estas merdas, tem de observar e envolver-se nas situações. O Hemingway foi para a guerra para escrever sobre ela. O Orwell foi lavar pratos para Paris. Eu, envolvo-me com a vida interior dos outros. Observo, meto-me nos seus lugares, pesquiso as suas motivações, afiro as suas avaliações. Seja precisarem de bengala, de um sentimento de possibilidade, de não estarem descalças perante o mundo ou se o actual as largar, gosto de investigar a natureza das pessoas, mulheres (não acho graça a homens) e as consequências dos seus raciocínios e acções. De perceber se sou usado para preencher intervalos monótonos, egos frágeis, ou relações fingidas de codependência real. Saí da BN e estava com fome, fui à faculdade pois come-se bem e é mais barato. Tinha levado o Titus Andronicus e tinha-lo pousado na mesa onde comia. Uma estudante passa e derruba o livro para o chão, e pede desculpa. Digo que não tem de pedir, pois o livro é dos mais ruins do William e até da literatura mundial, que ninguém lhe fica indiferente. Como estávamos a falar há meia hora, digo para se sentar. Ela fascinava-se com as merdas que lhe dizia e que só as sei por andar cá há mais tempo que ela. Anoiteceu e as coisas fluíram naturalmente para jantar e trocámos números de contacto. Ao fim de dois dias de encontros sucessivos, trocámos beijos. Ao fim de uma semana, outros fluídos. Os pais estavam separados e morava com a mãe, que me queria apresentar. Mostrei-me reticente. Certa noite convidou-me para sua casa, fui, e acabámos por adormecer. A sua mãe entra em casa saída do turno, lá pelas 4 da manhã. A filha acorda e vai avisá-la de que não está sozinha. A mãe não acha muita graça, e começam a falar mais alto. Começo a vestir-me para não causar mais problemas, e desço as escadas do duplex encostado às telhas do telhado, quando Célia me vê a abotoar o que falta da camisa. «-Mãe, este é o J…» «-João que estás aqui a fazer, que merda é esta?» Por esta altura a filha percebe que eu e a mãe éramos conhecidos. Ando sempre com uma cópia do livro, em edição de bolso, no bolso. Aquela era da Penguin, e perante a cara de surpresa e choque de ambas, tiro-o para fora, o livro, e mando-o a voar para cima da mesa onde Célia janta, e onde tinha pousado as chaves do carro e a mala de ombro. Olhei para ela e disse «-Tens sorte que a minha ideia de comer os filhos, é esta.» Saí pela noite dentro, envergonhado comigo próprio, pois espero ser sempre um homem maior. Mas por algum motivo a noite estava linda, e os ouriços vivos à procura de comida na várzea.
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