O escapismo vem do sobrepensamento. Pensamos demais nas coisas. As gajas tolas acham que pensamos muito nelas, quando apenas metemos a nossa mente mecânica a tentar perceber as dinâmicas e os padrões simiescos da nossa vida. Por exemplo, a Paula achava que eu a via não vendo, que o que dizia e escrevia sobre ela não correspondia ao que ela era. Em parte, tinha razão, eu na altura ainda achava que quando a mulher vai ao W.C. apenas sai cheiro a rosas. A projecção do ideal ainda era tão forte que constituía ao mesmo tempo um insuflo de lisonja e um paradigma impossível de atingir. Assim como as loas tecidas a esta ou aquela acerca do seu carácter, logo de seguida seguido por um esgar de apreensão, e de compreensão profunda de uma força que agindo por detrás dos meus olhos, e elas adivinhando, me cegaria para uma suposta realidade comezinha, como se eu fosse obrigado a avaliar um rabo de saias com a mesma boçalidade que o mesmo se avalia a si mesmo. É fácil, depois de magoado dizer que a puta nada vale. É o mais lógico até, numa perspectiva de protecção egóica. Mas é só ração para quem tem uma relação ludibriosa consigo próprio. O facto é que o amor nos torna mais humanos, no sentido de nos arrancar, por vezes, ao nosso individualismo e reconhecer no outro uma humanidade que somos forçados a admirar. Eu não consegui dormir a noite toda. Sabia que ela decidira abandonar-me em direcção a outro, e que o que fazia era meramente para não ficar descalça enquanto o outro não lhe dava a certeza de ficar com ela após o suposto upgrade, isto é, meu descarte. Roía-lhe a consciência o facto de eu nada ter a apresentar em meu desfavor que não uma espécie de mentalidade retrógrada, meias rotas e usadas por cima do artelho, potencial não cumprido e um espírito quezilento e nada adequado à suposta realidade dos pobres de espírito que acham que a adequação à realidade é o enviesamento afunilado da sua mundividência. Foda-se. Como de nada era culpado, a culpa ardia-lhe a ela, o seu hipotálamo ordenava-lhe o abandono, mas o neocórtex ficava com a criança nos braços de justificar, procurar razões, para o descarte. Ah o amor. Ah não quer trabalhar. Ah tem dentes afastados e amarelecidos. Ah mas peida-se no elevador. O seu cérebro e as amigas que a disputavam comigo, faziam questão de arranjar todas as justificações, justas ou não, para provocar uma ruptura no ramram da sua vida nos últimos anos. Nessa luta moral dentro de si, entravam também as desilusões e lições passadas, contra as quais as suas intenções actuais iam, mas ela resolveu, apesar de tudo, arriscar, pouco havia a perder, um gajo de teflon, oco, invisível, irrespeitável. Todo o universo da sua via lhe prometia o paraíso boschiano se e somente se, me descartasse como descartava os cães que iam possuindo de acordo com a moda das raças. Não os matava ou abandonava, apenas colocava num canto do jardim, por detrás de uma grade que os isolava do contacto físico que dava às novas dogluches entretanto adquiridas, deixando os centros de atenção prévios a ladrar e lastimar da sua vida, o momento de abandono. Assim era a minha sina, de prémio que merecia todo o compromisso, a inconveniente a quem as prendas últimas mereciam despeito. Eu não sabia a extensão do cancro. Sabia que a sua pele estava limpa, possível por causa da pílula, apesar de dizer que queria ter filhos. Ou seja, se calhar queria, mas não comigo, por isso tomava a pílula para parecer melhor a um outro que a resgatasse da condição menor de estar comigo. E eu feito estúpido a pensar no assunto na minha infertilidade, que só um teste médico desmentiu. Não sabia que há um ano que dava conversa a todos os que lhe queriam saltar para cima, sedenta por uma validação que aparentemente o passar de Cronos lhe ia extinguindo. Havia que aproveitar a despedida e meti o despertar do relógio a acordar-me de hora a hora para fazer amor com o meu amor. Ficava a ver a sua boca aberta respirando, pois eu não conseguia dormir, ressonando até, e lembrava-me das sensações e promessas de amor eterno que tínhamos feito um ao outro. Olhava o vaivém das ondas de respiração expressas no seu peito, onde sabia que o seu amor por mim outrora morara, e confesso que soltei uma ou outra lágrima pela percepção desta nossa condição humana. Ela tinha tanta culpa como eu. Apenas seria a sua personalidade a ser testada, que é o que acontece em situações-limite. Olhar para ela e afagá-la enquanto dormia, com a certeza de que já não fazia parte do seu mundo, pior, que só tinha valor enquanto fui valor para ela, fez-me lembrar da efemeridade das nossas certezas. Não, não havia algo que estivesse correcto na maneira de Prosseguir, mas Deus arranja maneira de nos mostrar que todos os caminhos a Ele vão dar. Consegui sair da minha individualidade, e apesar de toda a compreensão só caí no ego quando me apercebi dos anos que demoraria a esquecer a palhaçada. Nisso, as viúvas de guerra levam vantagem. Perder-nos, seria equivalente a perder um braço, literalmente. Mas o bleo quadro onde ninguém estava consciente senão eu, e ela dormindo, mostrou com luvas de chumbo a relatividade das nossas paixões e o absoluto da nossa personalidade quando de manhã percebendo o mal que nos estão fazendo, desejamos de coração aberto, todas as felicidades futuras. Sabendo da ruptura próxima, apercebi-me de quanto a amava, e de quanto me ia custar ter de perder mais uma parte de mim. Paciência, queria ir, que fosse à sua vida. Dormindo, cansada do dia de trabalho anterior, lá ia acordando para foder por descargo de consciência e esforço auto-imposto, para ver se se voltava a apaixonar, ou por pena. Não sei, nem interessa. Interessa que naqueles momentos reconheci a sua humanidade, falibilidade e identidade. Ninguém engana ninguém, tacteamos no escuro à espera de encontrar uma cadeira que nos poupe os joelhos dos choques na penumbra. Encontrar é uma sorte e manter uma arte. Sei que estava num buraco em que ineditamente ansiava tirar a minha própria vida. Quis a divindade que as coisas se resolvessem por mim, que terminasse algo que me eliminava e que eu não conseguia fazer terminar por mim. Nop, o gajedo não quer alguém que as ame. A ideia parece boa no papel, mas sabem perfeitamente, que aquele que ama é o fraco que nunca será dono do seu coração.
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