Debruçado sobre uma dor de cabeça, ia bebendo a água tónica que pedira antes.
Acompanhado por Miguel, que estava agarrado ao telemóvel, mantendo conversas com gajas do tinder com quem encorna a mulher, pois sabe que a mulher o encorna a ele. Desde o primeiro dia de casamento. Perguntei-lhe certa vez, se era assim, porque havia casado. Sem moralismo, porquê andar com uma pessoa, que sabemos que não nos é fiel, nem nós somos capazes de manter fidelidade com ela. Há pessoas que se dão bem com isso, eu talvez seja demasiado inseguro. Sem querer a ideia veio-me à cabeça, a mulher era algo de certo, mal ou bem não o largaria, as aparências prendiam os dois agarrados a um simulacro de vida normal, que confere aquele sentimento reconfortante de fazer o que todos fazem, para não ter de olhar para o abismo entre o que esperávamos e o que somos, até morrer. Sou interrompido pelo Mirtilo. O nome dele é Jonas, mas chamamos-lhe ‘Mirtilo’ porque era assim que dizia ‘martelo’ quando era novo, achava graça à palavra e a substituir os ‘a’ pelos ‘i’, sempre que se lembrava. «-Senta aí pá!» disse eu. Miguel olhou para cima e reforçou o apelo, e começámos a falar como se a última vez que o havíamos feito, tivesse sido ontem e não há uns 6 anos. A vida, passa por nós, e num ápice, estamos a levar terra por cima. Conversa para aqui e para ali, e Mirtilo, com uma segurança que não era normal nele. A assertividade com que dizia as coisas, a perda de curiosidade e o fechamento de espírito, revelavam que a sua realidade estava meio fechada a tudo o que de externo pudesse perigar, uma situação de equilíbrio, aos olhos dele. Eu sabia o motivo, sabia o que mudara, não cusco redes sociais, mas as redes sociais por algoritmos, colocam-me notícias de outros que deveriam ser do meu interesse. E o que mudara era o facto de ter namorada ou mulher, o que vai dar ao mesmo. Eu conhecia a pessoa. Mirtilo afastou-se dos círculos habituais de pessoas, e gradualmente deixou que a sua vida se enrolasse em torno do dedo da vontade dela. Um gajo podia levar a mal esta falha de carácter, mas creio que faz parte do ADN da testosterona, digamos assim. Somos todos assim. Parece que a gaja se torna o ponto de fuga como nos quadros dos pintores. Mais chato, é quando as gajas levantam vôo, é que eles se lembram que deixaram amigos para trás. Normalmente afasto-me, depende do tipo, se faz em consciência e mania de superioridade, ou não. Não suporto que me usem, sejam homens ou mulheres. Mas este tipo, era um puro, não se metia com ninguém e era amigo do seu amigo. Não dizia nada que pudesse ofender, apenas brindava todos os momentos com um sorriso de satisfação por partilhar os momentos, que levava toda a gente a gostar dele, e a alguns acharem-no parvo. Por dentro era uma pessoa deprimida, por demónios que só ele conhecia, um, o mais evidente, foi ter passado ao lado de uma carreira de pianista, por ter partido uma mão, que nunca mais foi a mesma, numa brincadeira estúpida de Verão. O bilhete para viajar acima da mediania, fora-se, por culpa própria, que só reforçava a sua baixa auto-estima. Estavam os dois a debater a natureza feminina, que isto aqui nos subúrbios, fala-se nisso, especialmente quando 3 gajos com alguma experiência, trocam impressões. Normalmente sou eu que animo as conversas neste tópico, devido ao fascínio que exerce em mim. Mas estava calado, estava perdido dentro de mim a analisar a maldade do mal, ou seja, a debater-me com o velho problema filosófico da natureza do mal, aplicado aos comportamentos ruminados das minhas anteriores paixões. Digamos assim. Como é que é possível que tenham feito isto, ou aquilo. Comparava o comportamento delas com o meu, e aferia se a minha análise era justa, comparando os meus erros e comportamentos com os ‘delas’. Às vezes sentia que era só o meu ego magoado e hipócrita, que havia feito muito pior crime, que o castigo judicativo imputado, noutras, não. Noutras foram mesmo mesquinhas comigo. Não vou dizer putas para não centrar a narração em conotação sexual e para não encher a merda do texto com vernáculo filho-da-puta que ainda assim é português. A língua. Uma frase não me saía da cabeça. As mulheres são cruéis as mulheres são cruéis as mulheres são cruéis. Isto contrastava com a minha anciã opinião das ditas mulheres. Para ser justo, comparava, são os homens mais benévolos. Não, procurava exemplos de filhas-de-putice feitas por homens, que me lembrasse, e não podia ser parcial na resposta idiota que procurava para a pergunta ainda mais idiota. Bom, se é só comigo, então, que real merda tenho eu que coloque o outro à vontade, para não me ter qualquer respeito. Sim, é isso, uma falta de respeito que vem de onde. Será que é uma expressão emanada da minha própria falta de respeito por mim próprio? Eles discutiam cada vez mais alto. Apenas a dor que ainda sentia pelo ego destroçado, por esta e por aquela, reconstruído lenta e dolorosamente enquanto borboletavam levemente pelo mundo, deixando-me esfaqueado pelo chão. O meu feitio torcido clamava vingança, mas o meu orgulho fazia com que limpasse o assunto da consciência, estas putas não merecem uma gotinha de energia nervosa. Tocam-me no braço para entrar na conversa. Miguel lamentava-se de uma conquista que lhe fizera ghosting, depois de ele ter ajudado com a renda da casa. Facilmente me perdi novamente na regurgitação do passado e de como para fugir do inferno solipcista, decorrente de uma rejeição, um vómito do mundo, eu engatava gajas atrás de gajas, para usar os seus olhos como reflexos das imagens que eu queria que o mundo exterior tivesse de mim. Convivendo com a alteridade da outra pessoa, apenas o suficiente para a manter por mais algum tempo, e como forma de defesa porque acabo por gostar delas e sei que se as tratar como seres humanos, com curiosidade por quem são, ou se tornam em cabras mimadas ou se metem ao fresco à procura de prémios de maior valor que eu. Acontece que procurar a alteridade do outro, é como ler uma biblioteca, mas só com um ponto em comum, o perigo de revelar demasiado interesse. É que o interesse revela ao outro, qual o equilíbrio de poder na relação, e como qualquer relação é um fino equilíbrio entre a posição vertical de ambos os termos, o interessado corre o risco de aparecer rebaixado aos olhos do interessante. A observação e estudo, tem portanto, de ser feita a encoberto, fingir uma vida superficial enquanto de forma furtiva se olha para o objecto de estudo e de amor, como um predador de informação olha para o alvo. Estudar o outro é um acto de predação e de amor, ou ligação emocional. Pelo menos até ao ponto em que a paixão crescente não elimina a capacidade de pensamento crítico. É como que ser cientista social com o nosso objecto de amor, conhecendo-lhe os mecanismos internos e como se distingue de outros indivíduos. Diz o vulgo ignorante, que isso é tornar o outro em objecto, é algo de reprovável, como se o interesse genuíno por outro fosse algo de censurável. As pessoas não gostam de se sentir observadas, além de que agem diferente, se sabem que estão a ser observadas. Portanto, há que observar sem ser notado. A rota descendente, que ocorre quase sempre, é quando começamos a perceber que o ser humano que amamos, tem sérios desafios com os seus defeitos, que todos temos. A indigência cultural pode ser detrimento para uns, a ausência de rabo para outros. Mas por essas alturas, já o anzol não permite fuga. Gostamos da pessoa, e principiamos a construção da narrativa que vai tapar todos os defeitos que lhe achámos previamente. É isto que deviam dizer quando se referem ao fenómeno da cabeça de baixo pensar pela de cima. Tornamo-nos então, por amor, os maiores algozes de nós próprios. Abafamos as evidências, endoutrinamos as nossas capacidades de análise e auto-análise, tornamo-nos os compositores das historietas que visam apenas tornar viver com a gaja, suportável. E quando olhamos para trás, queixamo-nos da gaja, que nada teve a ver com o assunto, e vemos pelo caminho, os pedaços de nós que fomos eliminando por reagirem à anulação. O amor Disney não é outra coisa senão mascarar estas dinâmicas com uma capacidade mitológica e irracional, o amor cortês, cuja premissa de base, é o amor acima de tudo, sem que ninguém consiga definir muito bem sequer, o que seja o amor. Tal como o Paraíso. De como o sexo que é dispensável, lida com a geopolítica do amor, em relação ao objecto fétiche da sociedade ocidental, a mulher. «-Pá!» Eles chamavam-me de novo para a conversa. «-Onde estás com a cabeça?» O Miguel estava mais bem disposto agora, e já debatia os assuntos que não lhe visavam exclusivamente os interesses. Indignado com a falta de vergonha de algumas colegas de secundário, que o sabendo casado, lançavam o isco. Aquela até o convidara a um passeio nocturno no jardim, que tinha o marido no café. E não foste, perguntei eu. Andas sempre em caldeiradas, era mais um troféu para contares aos amigos. Não fui nem vou, na escola não me passava cartucho, agora que está gorda e aborrecida com as suas escolhas sou eu que lhe dou desprezo. Dás desprezo, não é bem assim, pois ela não te ia sugerir isso do nada. Ele calou-se. E eu dei por mim de novo a pensar comigo mesmo, que boa parte das relações mais duradouras, devem muito ao medo de cada um retornar à selva da procura de parceiro, pois todos sabemos não só as nossas filha de putices, como a dos outros e outras. Que quando duas almas se engatam na fase enamoramento, é tudo borboletas na barriga, mas que antes é um salve-se quem puder de mentiras, intrigas e fingimentos, onde a carne é ordenada de acordo com medidas relativamente gerais de proporção e hábitos de acumulação. O mercado da carne, é um mercado no verdadeiro termo, e nem toda a carne é igual. Tem vegetais e animais vivos para venda, pode pagar-se em dinheiro, em víveres, a pronto ou a crédito. Fiquei contente por ter uma nova ideia para um texto. Mirtilo toca-me no pulso e pergunta-me, porque me vê mais calado que ele, como anda a minha vida emocional. Sabes, por observar outros e a mim próprio, o que mais me custa é a minha idealidade. Faz confusão a crueldade ou indiferença de certas pessoas, e ando de volta disso sem muito interesse em engatar as neuróticas que por aqui andam, apontei para o telemóvel. E ele disse-me que (e com razão), que se procuro peixe olhando para o céu, apenas vou apanhar o peixe que outros mandam ao ar. Tem toda a razão, eu é que me deixei tornar ainda mais calão. Foi então que a coisa descambou, Mirtilo começou a dar-me lições de como captar e manter uma fêmea, bem como da sua filosofia de vida, agora que tinha um pito estável que o validava como homem. Por estima para com ele, não lhe disse nada, até porque não adiantaria. As pessoas pensam com o corpo, e de acordo com a situação em que julgam ou sentem estar, na vida. Tive de fazer um esforço para engolir, e só consegui porque me distraía a tentar fazer a genealogia do seu ingénuo modo de pensar. Entretanto Miguel junta-se à festa perguntando se eu ainda continuava a escrever textos crípticos para engatar gajas. Eu perguntei se os dois tinham tirado o dia para me foder o juízo, que não escrevo para gaja nenhuma, mas para mim, para pensar os assuntos. Mirtilo disse que estava a tentar ajudar-me e não a foder-me o juízo, ao que respondi que agradecia mas que acho que a posição dele era ingénua. E que até nem gosto de falar destas merdas, pois é ou pode ser tomado como estar-me a queixar de algo por inaptidão própria, que é um silogismo bastante comum, não tens cona queixas-te da cona, logo estás ressabiado. Quem não se queixa da cona é porque está bem, ergo, porque tem acesso à cona. Neste mundo, o valor da vulva é tal, que até a reacção no acesso à mesma, determina o teu valor como homem. Ingénuo porquê, pergunta Mirtilo. Porque estás a narrar uma história que compuseste para ti. Compus para mim? Como assim? Então, qualquer opinião que tenhas agora é determinado pelo teu estado presente, por exemplo, se tens sede, narras as coisas, com especial ênfase na água, se tens frio, a narrativa que te sai da boca é mais particular em relação a agasalhos ou lareiras. O homem é o seu corpo e a sua situação. O jovem conta histórias de façanhas físicas, o velho de experiências passadas. Que é que isso tem a ver comigo? És uma pessoa mais aberta, inteligente e humilde, quando não estás dormente com a vida burguesa em torno da vulva. Eu sei, porque já passei por isso. Percebi que não respondia, ao contrário de muitos, por arrogância referente ao sentimento de possuir uma chave interpretativa sobre a vida, incapaz de se rebaixar ao plebeu ignorante que contesta. Não respondia por consideração, por não perceber de onde eu vinha senão de um suposto lugar de revolta, e que tudo era preferível a correr o risco de me perder como amigo. Ao percebê-lo, também fiz o oposto do que faço nestas situações, refreei-me, pois, o meu amigo não era arrogante, e, portanto, não era um alvo a desmontar. (…) Mirtilo cortou os pulsos a uma 6ª feira, com velas em torno da banheira em que haviam tantas vezes feito amor. A lógica dele era que o seu sacrifício a faria cair em si, para o erro de análise ao valor dele, que havia feito…ou de alguma forma lembrar-se dele para toda a vida, com um impacto emocional, que ele só sentira dela, nas primeiras semanas de enamoramento. Aliás, como todos nós sentimos, até ao ponto em que elas se começam a sentir confortáveis, connosco em torno dos seus dedos. Sem aviso prévio, ela decidira fazer vida com outro, que está no seu direito, mas ao ir embora da loja de porcelana, decidiu brandir um pé-de-cabra em movimentos circulares. Usou-o como desculpa para a sua hipergamia, e ao bater com a porta partiu toda a fina loiça em redor. Que eras um pobre diabo, não ias a lado nenhum, e tudo o mais que se lembrou para aliviar o ressentimento criado em relação a ele, por nunca lhe ter dado motivos para a ruptura, o novo prospecto surgira como oportunidade, mas para não se sentir mal com a sua canalhice, tinha de culpar Mirtilo, nem que inventando os pretextos. Borrifando-se para o efeito nele. Várias vezes ele ia ter com ela, à entrada do seu trabalho, na esperança que ela abrisse o vidro do carro e combinasse uma hora para poderem falar. Ele simplesmente não percebia como as coisas haviam mudado tão repentinamente, e como lhe havia causado o mal que ela dizia que tinha causado. Queria compensá-la e começar tudo de novo, em pânico por perder a mulher que o fazia sentir seguro por existir. Quanto mais se humilhava, mais ela lhe perdia o respeito e lhe fazia ver ostensivamente o quão acima dele estava, fingindo que não o via, rindo-se e de repente fazendo cara de enfado se os olhares se cruzavam na rua. Mirtilo foi para a cova sem saber qual havia sido o seu crime. Ela não foi ao funeral, e amigas do casal desculpavam-na, dizendo que era melhor assim, para não criar perturbações, que era digno da parte dela. Eu apenas disse bem alto no velório, não, ela é apenas uma puta que não passa por gente.
0 Comments
Leave a Reply. |
Viúvas:Arquivos:
Outubro 2024
Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
|