A Rosário estava lamechas. Olhava para mim e chorava. E quando via que o choro não resultava, recompunha-se fria e hirtamente, e disparava com jactância na minha direcção.« - Se calhar é melhor ir-me então.» Nem tentava disfarçar procurar no meu rosto a minha reacção ao seu ultimato. O que só me irritava, bamboleante entre a ideia do seu mau carácter, ou da minha própria estupidez, em esperar ‘delas’ algo de tão elaborado. Lembrou-me a ideia que alguém um dia me disse, e que é mais ou menos, elas só parecem enigmáticas, porque lhes dás mais crédito do que o que merecem. A Rosário era uma daquelas que em São João da Talha e nos tempos da C + S, passava por mim como se ela fosse a raposa de Torga, e eu a vinha vindimada. Fascinada com os gajos que jogavam no Sacavenense, ou com os membros de uma banda de heavy metal, nunca acederia aos meus desejos por isso lhe baixar o próprio valor social. Curioso como numa sociedade desenvolvida, os macacos continuam a agir como sempre. Há sempre um macaco no cimo do coqueiro, que serve como alvo do desejo. Os outros são chumps. Boa demais para mim, com a sua camisa branca, sorriso fácil e mamas grandes, tinha de capitalizar nos sujeitos que hoje olham com saudade esse período, a partir dos armazéns de onde trabalham. É estranho, ou não, porque não conseguia eu ver isso, ‘elas’ presas a um instinto que as levava a agir sem agência própria. E depois de conhecer alguns dos gajos populares da altura, eles também. O jogo que tinham funcionava e não pensavam muito sobre isso. Não me espanta, portanto, a relativa idade adiantada com que beijei as mamas de uma mulher. O que eu pensava ser um defeito de fabrico meu, afinal, não era. Como mágico de circo distrital, é no exagero dos gestos que se desvia a atenção para o truque. E bem vistas as coisas, ela, elas, nada mais têm senão as imagens que me excitam os desejos. Controlando o meu próprio desejo, nenhum poder têm sobre mim. Lembrei-me do meu trajecto, para a tal C+S, onde as mais bonitas e desejáveis, me olhavam esperando obter o meu biscoito de validação, que eu não dava, sob a forma de um olhar desejoso, por já saber que após o mesmo, viria o seu ar de satisfação e desprezo, por mais um troféu conquistado. A Rosário tinha exercido o seu poder sexual, almejando sempre até ao céu, nas pirâmides hierárquicas dos homens, de acordo com o valor utilitário que os mesmos iam tendo ao longo da sua vida. Até que o metabolismo abrandou por via das vezes que circundou o Sol, e o poder físico decresceu na exacta medida em que o seu orgulho ia regressando à Terra. Quando sentiu que o casino estava a fechar, arranjou um fiel conas, que lhe alimentasse o investimento de 50% de carga genética. Mas como nenhuma personalidade desenvolvera, afinal basta um corpo bonito, o tipo evaporara-se na chegada de uma outra melhor. Ela olhava-se ao espelho e ainda via bem as memórias de tempos com mais agência. Da mesma maneira que homens reformados postam imagens de si na tropa há 40 anos, assim ela via o que o espelho lhe segredava, por detrás de cada ruga. Começou por me fazer likes nos textos que publico de vez em quando. Uma ou outra conversa animosa, e um café um jantar, e dou comigo a comê-la no sofá da sua sala, vazia porque os filhos tinham ido ver um remake qualquer dos power rangers. O quarto pequeno com cama de casal e cabeceiras com um solitário vibrador dentro, era desolador, e eu só me sentia em terra alheia, lá. Dei comigo a pensar nas punhetas que havia batido a pensar nela, e no escândalo de há uns vinte anos atrás, em que o seu ex namorado lhe publicou as fotos íntimas sem consentimento. Toda a gente ficou a saber como é a Rosário nua. Pintou o cabelo e mudou de trabalho, farta de ir no comboio com gajos de sorriso parvo a olhar para ela, em cumplicidades execráveis que ninguém deseja ter. Eu, olhava para a minha gaita e perguntava-lhe «-Quê, é só isto?» Só isto de trapalhona na cama, limitada até, ou de pouco mais saber falar que do seu trabalho? Nascemos com imagens que se enfiam pelos olhos dos outros, provocando ideias que não controlamos. Rosário era só mais um corpo de morte anunciada, numa das suas voltas terminais em torno do astro rei. Comecei-me a rir. Ela perguntou-me porque me estava a rir. Se a situação tinha graça. Eu respondi «-Ameaças que vais, mas a casa é tua. Vais para onde, vais deixar-me aqui sozinho?» Apanhada na gaffe que dissera, e por se sentir gozada, ruboriza de raiva e dispara «-Então és tu que tens de te ir embora!» Aceno que sim com a cabeça, olho para o chão e aproveito o peso da massa cranial para me inclinar para a frente e levantar. Com uma perna enfiada nas calças de ganga, ela agarra-se a mim e pede-me desculpa, que não era isso que queria dizer. Olhei para trás na memória e lembrei-me algumas vezes em que me vira nesta situação. Na maioria das vezes eram ‘elas’ a tentar apalpar o terreno, do conas que achavam que eu era. Vês, formulam uma imagem decorrente de inúmeros indicadores, muitos deles que são subconscientes, e que gostam de achar que é uma propriedade olímpica designada de ‘intuição feminina’. No fundo é pouco mais que observação de linguagem corporal no outro, testes que fazem, na maior parte das vezes, de forma inconsciente, nasce com elas. As mais sabidas repetem fórmulas do jogo aprendidas previamente. Com um pouco de experiência, leia-se, repetição, começamos a reconhecer padrões, e é por isso que muitos homens dizem que as mulheres são todas iguais, farinha do mesmo saco. A seguir ao corpo, o maior tesouro do feminino é essa capacidade inata de ler o homem, e que tanto prazer lhes dá, afinando, acertando nas avaliações, mesmo que sejam profecias autoconcretizadas. Ouvimos historietas sobre gajos com dinheiro e aspecto normal que dão lições ao arrogante que os trata de acordo com a avaliação errónea que fez. Do gajo que entrou no restaurante e foi tratado de forma desprezível e que logo a seguir compra o restaurante e despede o empregado convencido. Historietas morais que gostamos de repetir entre nós, para de certa forma mascarar a forma como o mundo funciona. Não é exclusivo delas, mas a maior parte das que tenho conhecido é assim. Não é defeito, é mesmo feitio, uma forma de a natureza lhes facultar um mecanismo de avaliação do potencial reprodutor, da sua capacidade de trazer bagos, e animais mortos para ela comer, mais a prole. Gostamos achar que somos feitos do pó de estrelas mortas, mas somos de forma inexorável, primatas rodopiando pelo vazio agarrados a uma bola que roda sobre si mesma. Enclausurados na nossa individuação vibramos com merdas sem jeito nenhum, a que chamamos vida. De má decisão em má decisão, que nos parecem as melhores de acordo com os momentos. Até darmos por nós sozinhos, fechados numa casa fria ao fim de semana de chuva forte, perguntando aos nossos botões, que raio estamos aqui a fazer. A guerra dos sexos, conforme alguns autores lhe chamam, não passa do código escrito nos genes, para que continue a haver vida, iludindo o indivíduo com a ideia de que o mundo é o que transita em torno do seu umbigo. Quando era mais puto, queria ter a sabedoria amadurecida de um homem vivido. Desesperava com a futilidade tornada arte incógnita e incognoscível, destes seres que borboletam pela vida com tal poder sobre mim. Que me fazem um raio x impávido com olhos que me vêem até ao fim do meu ser, todas as minhas falhas. Como tubarões que sentem o sangue da minha ferida. Quando afinal, eram apenas as calças compradas na feira, os jeitos despretensiosos de sujeito descendente de proletários nas raias de Lisboa. Nenhum olhar acutilante, apenas complexos meus, projectados nos olhos delas. Tal como Rosário. Também a sua arrogância não era consciente, e por isso propositada. Boneca de trapo do instinto, tal como eu, como nós, agia da forma que o corpo lhe ditava. Que isto de pensarmos que a razão guia o nosso comportamento, é um sonho bonito. Os palermas que dizem que gostavam de saber o que pensam que sabem, quando eram novos, não sabem, de facto o que dizem. Nós pensamos de acordo com a idade do nosso corpo. O fascínio que Rosário exercera, era agora para mim, reconhecido como compreensível e característico da idade. Como te disse, começamos a reconhecer padrões. Deu-me pena, e arrependi-me pelo meu juízo tão implacável. A água adapta-se ao obstáculo, e eu só conheço a via da cascata. Moendo a pedra e a mim. Faço-lhe uma festa na cabeça e sento-me ao seu lado na beira da cama. Olho para as minhas mãos e relembro-a há 30 anos atrás. Como diferíamos das pessoas de agora. Pelo menos superficialmente. Elas rodavam papelinhos entre si, sobre de quem gostavam, ou de quem queriam beijar e que lhes apalpasse as mamas. Hoje, as adolescentes passam horas a ensaiar a espada, o seu aspecto, sendo normal enviarem fotos nuas para todos os colegas da turma. Não foi só em mim que a ilusão do romanticismo se esmoreceu. Todo o mundo em redor se tornou bem mais cínico e as relações entre as pessoas num mero balanço de deve e haver. Foi por isso que discutimos. Estando na cama, e ela a trocar mensagens com não sei quem. Eu disse-lhe que enquanto estava comigo, eu preferia que me dedicasse a sua atenção exclusiva. Não gostou. Não só lhe colocava um limite, como não estava habituado a que a contraparte exigisse respeito. Estava habituada a homens que se tornam personagens de si mesmos, de forma a não abanar o barco e manterem a sua aprovação ou favor sexual. Reagiu. Ou testou-me. Fez uma cara de satisfação quando me viu sentar de novo. Deve ter sentido que sou o conas que acha que sou, ou que conseguiu pelo seu encanto, mudar-me as ideias, apaziguar-me. Uma porção de oxitocina liberta-se na massa encefálica, com mais esta vitória da sua intuição. Não posso fazer-lhe uma festa no cabelo, ou dar-lhe a mão de forma fraterna, pois vai invariavelmente ter mais uma dose de oxitocina por ter acertado que sou um conas e não sei jogar o jogo. Enquanto lamento não poder ser humano e dramático, com elas, baixa-me as calças pela perna que ainda as enverga e começa a massajar-me por cima das cuecas, que retira de seguida. Olho para ela a ver se adivinho a manha, além do broche. Empurra-me para trás e começa a fazer o que intende fazer, arranhando-me por vezes, nada digo e vou tolerando porque me convenço que é uma forma de me castigar a mim mesmo por não ser normal, por estar a pensar em metafísica enquanto me chupam a gaita. Abro os braços na cama de lençóis pérola e tento só controlar os esticões de dor, quando algum dente encosta a cabeça como gato lânguido, ao meu prepúcio. Que se calhar sou eu que sou lamechas. Que não tendo a tal intuição feminina e a empatia que elas se gabam de ter, sou demasiado emotivo no que concerne ao significado da relação com outras pessoas. Que nós, choramos por largarmos o outro, e por sermos largados. Que pensamos na pessoa mesmo passados anos, e que sentimos raiva dela, é porque a fornalha sentimental ainda mantém uma chama piloto. O que nos enraivece mais, pois não conseguimos matar essa lembrança da gaja que já esqueceu o nosso nome, ou que chupa a pila de outro com os mesmos trejeitos que desenvolveu e praticou connosco, como se fôssemos apenas mais um ponto de passagem, entre origem e destino. Que acabamos a limitar o acesso uns dos outros às nossas redes sociais, como forma de nos extirparmos completamente ao olhar uns dos outros, pois sempre espreitamos, embora saibamos à partida que a satisfação da curiosidade só nos fará mal, por reavivar um pouco a puta da fornalha que teima em não deixar de arder. O contrário do amor não é o ódio mas a indiferença, e quanto mais as odiamos, mais nos odiamos a nós por não conseguirmos, de uma vez por todas, sermos indiferentes. Elas não sabem a sorte que têm. A mesma natureza que lhes oferece a ilusão da intuição divina, dá-lhes uma capacidade de se desligarem e serem implacáveis. Dava jeito quando as tribos se matavam umas ás outras, e os homens vencedores tinham novo fornecimento de úteros para propagar genes. É muito mais fácil à mulher o corte radical com o amante degolado pela tribo inimiga. E por isto, o sexo empático não compreende a profundidade com que o sexo bruto, sofre. Nós como elas, projectamos a nossa natureza, no outro, achando que ele é igual. Também não ajuda eu sempre ter cultivado o meu lado emocional, até porque fui educado por mulheres. Cortar a direito faz-me sentir que foi tudo uma ilusão. As pessoas não partilharam tempo e afecto, apenas trocaram validação e placebos de sentido. Conheço gajos que conseguem. Eu também consigo. Mas quero manter esta ilusão. Ao menos esta. Sempre gostei de acreditar que os corpos envolvidos, partilha uma nesga de alma comum. Arranco-a da posição de joelhos, pois acho que já fui castigado o suficiente. Faço o que tenho a fazer e beijo-a muito na boca. Viro-a já exausta, e abraço-a. Posso chorar à vontade, se não mexer muito o peito. Afinal fui capaz de olhar uma amante que me andava a trair, e amá-la na sua condição humana. E sei que hoje, já nem se lembra do meu nome. E é isso que as fode, não o falo. Saberem que por mais voltas que possam dar, de uma forma ou de outra, arranham sempre com os dentes nos broches que nos fazem ao coração.
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Junho 2024
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