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Uni Verso

11/5/2019

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A Magda tinha, tem, 23 anos.

Quando lhe disse que a realidade era a minha ficção, riu-se.
Quando lhe disse que a realidade era meramente o húmus do que escrevo riu-se também.
Acreditava que eu era um gajo com quase o dobro da idade dela, amargurado com algo inapreensível para ela, uma suposta trágica percepção da existência.

Achava-me graça porque a tratava como trato toda a gente, sem deferência pelo aspecto físico.
Sejam bonitas, sejam feias, trato tudo por igual.
Ela não estava habituada a isso, estava habituada a gajos sofisticados que sabem bem fingir um envolvimento emocional que termina quando deixa de lhes apetecer fornicar com ela(s).
Por gajos sofisticados entenda-se, com a vida exposta como tatuagem para outro ver, porta-chaves de BMW na mão, apartamento ou chalet de praia, bronze de solário e aftershave caro.

Claro, conseguindo disfarçar a ignorância do que seja estar vivo, como elas, sabendo o que resulta, conhecendo as regras, pouco se debruçando sobre elas, as regras.
Espertos são eles.
Foi ela que se meteu comigo, se meter é um toque de sapatilhas de pano meio rotas e gastas no meu joelho sob calções e pernas cruzadas num café qualquer da Baixa.

Aos desculpes habituais revelou interesse pelo livro que trago sempre comigo, Die Geburt der Tragodie, quando vou para qualquer lado escrever.
Mal sabia ela que o livro me cheira a campos de trigo e sexo ao Sol.
Perguntou-me porque gostava daquilo, que ela tinha uma cadeira de Filosofia, para encher currículo e não dar trabalho, e havia escolhido Metafísica.
Usei o meu melhor tom pedagógico e expliquei os pontos fortes, para mim, daquela obra de juventude.


Industrial não é a onda dela, mas quando as nossas mãos se tocaram fortuitamente num concerto em que cada um foi comprar cerveja para os amigos, o sorriso constrangedor por ambos terem ido com a mão ao mesmo copo de plástico que acabará num oceano qualquer, fez a sua magia.
Dois encontros fortuitos desafiam a estatística e ameaçam Eterno-Retorno.
Trocámos números.
Foi ela que me ligou primeiro.
Estranhei. Era fácil conversar com ela e aparentemente e ela parecia interessar-se genuinamente pelas patranhas que como estações me povoam o espírito.
Especialmente o meu calcanhar de Aquiles, a escrita.
Leu tudo o que postei. Tudo.
Permitia-se perguntar-me por trechos.
Eu retorquia, que te interessa isso man, são só deambulações de alguém que paga o domínio e espalha palavras pelos datagramas virtuais.
Porque quero saber que mulheres gostas, respondia ela.
Magda, retorquia eu, eu não gosto de mulher nenhuma e gosto de todas. A mulher é a cenoura que coloco na frente do nariz para não sucumbir perante a ataraxia, é a minha via de perceber o que significa ser-se humano.
Finjo ser amor, o amor que deveras sinto. Essas merdas.
Mas, dizia ela olhando para os sapatinhos gastos na biqueira, eu amo-te ou acho que te amo.
E eu, foda-se, mas só tomámos umas cervejas aqui no Terreiro do Paço e discutimos o existencialismo de Marcel.
-“Sim, mas desde que te vi, que te acho fascinante e não sei porquê.”
-Sei eu, sou exótico para ti.
-“Exótico?”
-Sim, diferente do que estás habituada.
“-Leva-me a casa.”
-Já?
-“Agora.”
-Mas passa-se alguma coisa?
-“Sim, não gostei do que disseste.”
-Ok, deixa-me acabar a cerveja.”
-“Quero ir já.”

Coloquei-lhe a chave do carro perto da mão, e disse-lhe para que lado o tínhamos deixado.
Disse também, -O eléctrico leva-te até perto de tua casa. Se aguardares 5 minutos bebo a cerveja e vou-te levar.”
Aguardou os 5 minutos.
Após a degustação da minha cerveja, vi com surpresa que mandara vir mais 2.
Depois confidenciou –“Não gostei do que disseste.”
-Sim, eu percebi isso, mas isso não justifica que por não gostares do que alguém diz ou pensa, alteres comportamento ou tentes pressionar essa pessoa a agir como queres. Muito menos a ameaçar com a tua ausência.
-“Eu não suporto faltas de respeito.”
-Não te faltei ao respeito, apenas sugeri que o meu efeito em ti possa decorrer de um carácter exótico que possa ter a teus olhos.
-“Sugeriste que sou uma tolinha que te acho graça porque és mais velho.”
-Não sugeri nada disso, estás a projectar ideias tuas. O que pensei foi que não sou a amostra mais fidedigna da demografia a que estás habituada.
-“Eu não sou nenhuma parvinha como disseste.”

A insistência numa via de culpabilização fez-me relembrar velhos ritmos conhecidos.
Estava a testar-me.
Tentando fazer-me sentir mal por algo que não disse, e nessa culpa, afogar-me em desculpas gaguejadas de forma a comprovar-lhe a sua suspeita de que o exótico afinal era apenas ouro dos tolos no meio de latão.
Como há muito perdi a paciência, calei-me e ri-me.
Insistir em explicações e dialéctica apenas que gastaria saliva e cabelos pretos.
 Mas eu também já vejo testes em todo o lado, e a maior parte das vezes nem perto do jogo estou. Quanto mais nele.
-Olha, Magda, foi bom ter passado este tempo contigo, mas vou levar-te a casa.
-“Temos tempo, só mais um pouco.”
-Tenho de me levantar cedo, e tenho trabalho até aos ouvidos, e nenhuma vontade de o fazer.
Enquanto me levantei, para ir aos lavabos, e voltei, tinham nascido mais duas cervejas, em canecas de quarenta centilitros.
Ao sentar-me brinquei:
-Estás a ver se me embebedas para teres sorte comigo?
-“Estou.”
A seriedade do proferido obrigou-me a olhar para a sua cara.
Olhava-me séria e determinada.
-“Eu quero-te, muito. Desde que te vi que te quero.”
-Magda, estás a falar a sério?
Não me respondeu com a boca só com um olhar determinado.
-Epá, tecnicamente tenho idade para ser teu pai. Isso é um pouco estranho, nunca me enrolei com uma pessoa tão nova.
-“Vai à merda, sou adulta e se não me queres diz, não uses a idade como desculpa.”
Deitou mão  a uma peça de roupa de gaja de que desconheço o nome mas que se mete por cima dos ombros em noites de brisa fresca, e principiou a afastar-se e eu a olhar incrédulo para ela.
Chamei-a, duas vezes.
Bebi a cerveja de empreitada, e levantei-me já com uma distorção ébria do espaço.
Em 3 minutos a apanhei e perguntei o que se passava.
-“Deixa-me, vou para casa sozinha.”
-Espera, eu levo-te.
-“Deixa-me, não quero ver-te mais, e tu estás bêbedo.”
-Epá, católico não estou mas não estou bêbedo. Pára, fala comigo.

Agarrada já ao corrimão do autocarro, prestes a entrar, achou por bem olhar para trás e balbuciar frases desconexas de superioridade moral.
-Não sejas infantil, vamos andar um pouco.
A sua face ficou ruborizada ao ponto de parecer explodir.
Os insultos morais passaram a vernáculo puro e duro.
Como me pareceu excessivo e intolerável, virei costas ao autocarro que entretanto fechara portas e arrancara.
Iniciei o caminho para perto do meu bom amigo, o Rio, que tantas vezes me confidenciou nas ondas que não sirvo para poeta. João, diz-me o Tejo, já vi muito escrevinhador a chorar aqui pelas margens, mas não te chegas aos pés de nenhum, nem em talento nem em transmutação de dor.

Arranja uma mulher convencional e dedica-te a fazer o que toda a gente faz. Deixa a escrita para quem tenha mais espírito que tu.
Um cacilheiro anónimo descrevia uma curva manobra de aproximação ao cais, quando sinto um toque no ombro.
Virei-me era Magda.
Tinha saído do autocarro, na primeira paragem e tinha vindo a pé à minha procura.
Comovi-me.
-Que queres?
Principiou o chorrilho de vitimização, ri-me e principiei o caminho até qualquer ponto onde ela não estivesse.
Por fim, meteu-se à minha frente.
Com lágrimas nos olhos e palavras aflitas só me pedia para a ouvir.

-“Eu não consigo fazer nada desde que te vi a primeira vez, não me consigo concentrar, não consigo respirar bem, o centro e periferia de todas as minhas ideias és tu, ensaio conversas para termos um com o outro, imagino as formas de fazermos amor e as mil e umas vezes que acordaremos de manhã de mão dada e boca seca e corpos peganhentos de suor seco. Quando trocamos mensagens adio de propósito a resposta para que me dês valor, e finjo ignorar-te para vires atrás de mim. Eu não consigo pensar em mais nada senão neste fantasiar e concretizar a fantasia. Tenho de fantasiar porque não te tenho e não aguento estar aparte, e tenho de concretizar para não ficar frustrada.”
O choro saía copiosamente em lágrimas e soluços, e ela inclinada sobre as suas duas mãozinhas apertadas no peito.


Aquela conversa da idade, para mim é treta, não acredito nela. Se duas pessoas possuem afinidade tal que se sentem bem uma com a outra a idade, desde que legal, em nada influi para o caso.
De facto havia arranjado um pudor onde não o tenho.
-Magda, preciso de uma hora, para me passar o efeito da cerveja, depois levo-te a casa.
Abracei-a de forma a que amenizasse os soluços, a princípio rejeitou o toque, depois ela mesma se abraçou a mim.
Sentámo-nos perto de duas garrafas de cerveja partidas no chão por turistas ébrios, e ficámos a olhar as luzes da outra margem.
-Nada sei sobre ti. Pelo que me disseste, peço desculpa por ter insinuado que era capricho.
Mas eu não andava à procura de nada e muito menos de uma pessoa bem mais nova do que o que estou habituado.
-“Cala-te, não me fales das outras.”
-Não estou a falar, tens razão.


Aproximou a sua boca da minha, cheirava a morangos de papel, e a expiração do seu nariz foi o suficiente para me alterar a respiração, como se o olfacto masculino tivesse uma EGR que monitoriza a expiração feminina e controla o motor a partir daí.
O beijo não tardou e a sua boca parecia dedicada. Os olhos cerrados e o abraço desesperado.
Seria isto o que eu queria? Que encontrara finalmente uma musa que me queria mais do que à concretização da sua fantasia? Uma gargalhada ecoou ao longe, o cabrão do Tejo tinha estado a observar.
O vento fresco a 120 à hora levou-me à residência universitária, para onde entrei para um quarto de monge copista, com uma cama e uma secretária.

Voltada da casa de banho, em cuecas descuidadas e despretensiosas, e um peito pequeno despreocupado.
Sentou-se ao meu lado, e evitei agir de acordo com a experiência que tinha nestas ocasiões, tornando o momento genuíno e único para ambos.
Ao tactear a pele dela com a língua, percebi que havia 20 anos que não lambia uma estrada tão esticada e saudável, promissora e optimista.
Os gemidos dela pareciam promessas de novos planetas esperando ser colonizados.
Sua vulva parecia quieta e arrumada como recheio de bivalve imberbe sem cheiros parasitas e histórias em sobeja para contar.
Adormecemos abraçados.
Raiam os primeiros electrões solares, os melros anunciam estar vivos.
Ao ver-me acordado, diz-me:
-“Vai-te embora, não te quero ver nunca mais.”
A mesma determinação. Mesmo que fosse brincadeira, nunca o seria. Nem pedi explicações.
Saí do grosseiro cobertor e vesti-me.
Entrei no carro frio da noite.
Vindo para casa, com vento acariciando os cabelos, recebo uma mensagem no telemóvel.
Pego, esperando não ser dela.
Era do Tejo, -“Eu não te disse palhaço, dedica-te a outra coisa! :D”
Respondi, “Simplesmente não entendo.”
E ele responde 5 minutos depois, -“Isto não é para ti. Sou mais livre com barragens às costas, que tu livre com tanto que te prende.”
E é que não entendo mesmo.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

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