Com doze horas de viagem de mota, de Norte para Sul, cheira cada vez mais ao meu país. Vou comer um hambúrguer numa estação de serviço próxima, que tem espaço para isso mesmo. Vejo uma estrangeira qualquer passeando o cão, e o filho ou filha, num amplo relvado protegido da auto-estrada. Por momentos deixo de conseguir engolir as batatas afogadas em mostarda, e soluço como velha sentimental, ranhosa de choro. Quase que me esbofeteio e pergunto-me a razão daquela paneleirice. Ah, saudades dos meus bichos. E culpa de não ter sido melhor para eles. Ao olhar o cão da gaja, lembrei-me dos meus, e da sombria ideia de que se me dessem a escolher entre passar uma hora com a minha bicharada que vi morrer, ou várias noites com as putas que me fizeram sofrer, e a quem magoei, raios, levaria biscoitos e bolas para mandar. Mil vezes prefiro os bichos de olhos totalmente ingénuos, que a bicheza humana, presa na mesma forma de condicionamento, mas especialmente convencida de que a justeza do mundo emana do seu umbigo. Os bichos não, os bichos são humildes e sem reservas emocionais ou de pensamento. O bicho é. A gaja, vai sendo. As lágrimas acabam por secar, mas o ranho que escorre do nariz, acaba de emprestar sabor aos pedaços de vacas mortas, apertada entre duas fatias de pão de sésamo. Que exista Deus do outro lado e que o Diabo me enfie um tridente pelo cu adentro, por causa dos crimes que cometi. Mas se entendo os outros, nas falhas tidas, porque hei-de eu fazer finca pé a castigar-me a mim mesmo, num altar demoníaco? Já não bastam as gajas, abençoadas pela minha líbido superlativa, que ainda tenho de me foder a mim mesmo, no tribunal do meu juízo? Caralho, toma de uma vez que seja, o teu lado. Ainda nem tinha chegado a Lisboa, depois de parar para a bifanada em Vendas Novas, e já ela me estava a ligar para ir ter com ela. Sabe como quer ser tratada, a expectativa baseada em critérios que avaliam a postura e o comportamento do outro ser, portador de pila, que paira em torno dela. Sabe exactamente qual a volúpia que quer sentir nele,o potencial, ser atencioso, tratá-la como uma rainha, no fundo, fazê-la sentir bem por ser quem é. E todos gostamos disso, não é. A diferença é que nos tipos, não há colaboração nos assuntos de saias. Apenas competição. Excepto os raros amigos com carácter, que já queimados, avisam do calor, e nunca se dignam a meter a mãozinha na perna da nossa namorada ou mulher, por mais que ela os seduza para isso. Com boquinhas, sorrisos, micro cumplicidades, que o cérebro directo da macacada masculina, não sabe computar bem. Já nas macaquitas, apesar da competição, todas trabalham em grupo, se necessário for. Nem que tenham de incinerar centenas de corpos Elas sabem trabalhar em grupo dentro da tribo, eles dominam a cooperação, em terreno inóspito. Não me apetece minimamente ir ter com quer que seja. Mas lembro-me que se calhar tenho de praticar o coito, sob pena de me esquecer de mim. Foda-se. Vou em direcção à Amadora, apesar de estar sem vir a casa há 3 meses. A tipa teve a sorte geométrica do seu lado. É boa e bonita. Sabe que o seu valor, expresso na deferência que recebe dos outros, emana do seu corpo, da rugosidade da sua pele, da geometria dos montes de carbono que ficam bem nas fotos de redes sociais. Sabe que é o invólucro, com o qual se confunde aos 20, e com o qual se distancia aos 40. Fica presa naquela idade onde o mundo é ou parece ser, feito em torno de si mesma, com convites para aqui e ali, com homens que lhe escrevem cartas de amor, e fazem juras de bajulação eterna. Como qualquer um, gajo ou gaja, é arrogante ingénuo, por prenhe de juventude, a tirana beleza jovial tolda a interpretação de tudo o que está à volta. A fantasia é agradável, narcótica até. Com a idade não se adapta, porque teria de desfazer todas as ilusões com que, como trolha manejando tijoleira, construiu a sua ideia de si mesma. O corpo, a beleza, e acima de tudo, o efeito destas bênçãos expresso na atenção que recebe da rapaziada, ao definhar, definha também o sentimento de valor próprio, porque sempre se confundiu com aquilo que o seu corpo despertava.
Em vez de encarar a dura ilusão, logro, onde caiu, como tantas tantas, outras…culpa a natureza dos homens, esses desgraçados também condicionados a seguirem a beleza, a fertilidade, a aparência momentânea, sem muito que possam fazer em contrário. Um ou outro, culpa as gajas, que são todas umas putas. Quando na realidade, é a natureza do jogo. Sempre foi. Sempre será. Quanto mais arrogante o indivíduo, com mais força cai. E a mulher bonita, é arrogante. Em surdina elas sabem. Por isso fazem dietas e metem maquilhagem. Sabem que o seu único poder é o corpo, e amaldiçoam a sorte de não serem amadas fora dele. Mesmo quando o gajo diz que lhes adora a forma de ser, sabem no íntimo que se fossem feias, marrecas, o gajo não lhes ligaria nenhuma. Detesto como alinham, de forma acéfala, na moda umas das outras… Sabe como quer ser tratada, a expectativa A ideia veio-me à mente, ao observar as sessões de pancada que um filhote de periquito, levava dentro da gaiola, do pai e da mãe. Pelo que eu percebi, queria voltar para o ninho, para o pé do irmão, a quem fazia uma festa doida quando este último saía do ninho e vinha cá para fora. Fazia-lhe afagos com o bico, acertando-lhe as penas nas costas, antes deste voltar para o ninho de onde a mãe não saía. Quando tentava entrar, a mãe desancava-lo, e nem um vómito nutritivo lograva receber. Começou a suster-se numa só perna e a eriçar as penas como forma de conservar calor e isolar-se do mundo. Um bicho inocente, de 40 gramas, começou a mirrar, com o peito em faca, e em breve prevejo que morra. Menos de 30 dias nesta terra e vê as cores e os sons e as bicadas suficiente para a sua despedida. Se reencarnar em lado algum, como cartão de visita daqui, levará algo de incompreensível para a malta que acredita em Deus. Ah mas Deus dá-te um prémio de compensação maior que aquilo que perdes aqui. Para o caralho, como se esta merda fosse uma mercearia de merda, com contas de deve e haver. Há que saber lidar, dizem as bestas. De si e dos outros. Ah mas que queres, que todos se reúnam e passem os dias a chorar? Não, só queria que os inocentes não pagassem. Aqueles que nenhum mal fizeram para ter algum castigo…ah mas não somos todos inocentes? Mesmo as bestas que decapitam outros em Ciudad Juárez? Sim, ok, de certa forma, para quem tem cabeça de martelo, tudo é um prego. Ou o peixe não sabe voar. Mas esta merda da individuação, dos milhões e milhões de indivíduos sacrificados tão cedo, cortados pela raíz da sua existência, como personagens de FPS que mais não servem para repasto do boss final…enjoa-me. O Sol poente por detrás de uma montanha virada para o mar, faz-me acreditar em Deus, e um ouriço-cacheiro esborrachado nocturnamente por um par de Firestones em jante 17, fazem-me olhar para o mesmo Deus, como se Este não tivesse compaixão, coração, empatia. Apetece-me perguntar-Lhe, se não chega os milénios de morte e violência, que já teve a ver sentado na sua poltrona omnipresente. Bem, mas de certa forma, o que é o aqui e agora senão um conjunto de estímulos eléctricos interpretados. Se um gajo reencarna consecutivamente, é tudo experiências. Boas, más…amorais. Nesta vida vais ao cú, na próxima levas no cú. Nada de especial. Talvez me choque porque quero que vivam, e sejam felizes. E o mundo não me faz a vontade. E se calhar não é o caminho de cada um, estar vivo e levar a termo a mais bela expressão em língua portuguesa..’Entregar a alma ao Criador.’ Do género, chegar à porta da Quinta do Céu e olhar para trás de São Pedro, e gritar para Deus lá ao longe, ‘-Tá aqui, fiz o melhor que pude e não a estraguei muito. Decididamente, não tenho jeito nenhum para esta merda de estar vivo.’ Mais que existir, levar a termo, aquilo que somos. Individuarmo-nos. A aflição abranda e penso em mamas e rabos. E nas gajas dos tinderes. Na forma como quase não se distinguem umas das outras, em aspecto, em pensamento, as que conheço, em crenças e aspirações. Em tomar o mundo como algo a ser explorado para seu benefício, e convencer tudo à volta que é uma sorte, ser-se por elas explorado. E não é só as dos tinderes, são quase todas, imagino. Querem ser cortejadas. Cortejar é colocar-se numa situação de plano diferenciado e instrumentalização, coloco-me abaixo da deusa, e desempenho um papel qualquer de forma a agradar, isto é, a manipular a percepção de outro. O tipo tornou-se uma outra versão de si mesmo, sempre atrás de uma forma de apresentar-se como algo de excêntrico, on the edge, de vanguarda, para ser percebido como prémio, como algo valorizável e que se diferencia da multidão. Uns óculos escuros palonços, uma mosca de barba, uma tatuagem em braço de menino da mamã. Coisas visíveis e palpáveis, para condicionar a percepção dos outros. Elas umas tatuagens com letras chinesas que dizem ‘menu’, ou umas patinhas de gato pelo úmero acima, Sabe como quer ser tratada, e eu detesto como se tornam todas na mesma mulher, matando com mil cortes de papel, esquartejando, a sombra do seu verdadeiro eu. Há segurança em ser a gaja da moda, a que está apreciada no momento. O arquétipo. E os gajos também, paradas nupciais em que mostramos uns aos outros que estamos adptados ao ‘espírito’ do nosso tempo, aderindo às modas, músicas, vestuário e aspecto físico que o comprovam.
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