Um objecto maciço de azul industrial brilhante que cobria uma multidão de milhares de dispositivos sob a pele metálica, sensores de todo o tipo a estímulos externos, com escrita a fino dourado percorrendo ambos os bordos, escrita mais ornamental do que para comunicar algo, passava defronte meus olhos, de forma serena, como que fazendo render o tempo, tal e qual uma nuvem que se arrasta indolente pelo céu, à espera de morrer gradualmente, ou de um calmo rio à beira de uma cascata..ou que um cometa venha e desfaça esta merda toda de uma vez. A calma antes da tormenta como prenúncio de obliteração. Sabia bem, que o desapego só dura uns meses. Acordamos meia dúzia de vezes juntos, e por fim cedem, e acabam por artilhar a sua vida connosco lá pelo meio. O segredo do sedutor, isto é, daquele que joga sem ser jogado, é prender e não ser preso. No fundo, a sedução, não passa de uma arte cinegética, onde tiramos partido de os pobres alvos não conseguirem ver o cano da caçadeira, ou conceber da sua existência. Seja o que for que o sedutor alimenta, existe para negar a humanidade, de si e do outro. Isto num mundo idealista como é para cabrões como eu. Mata ou morre, com ferros matas, com ferros pereces. Um dia comes o urso, outro dia o urso come-te a ti, e por aí adiante. Isto num mundo dos realistas. Em casa dela, sentado, olhava para as paredes tingidas com cores quentes, diria que africanas. Lanças nas paredes, bonecos em todo o lado, e de todos os feitios. Pede-me uns minutos e volta com um robe, sobre a lingerie que momentos antes me negara com um -«Pára, não me excites.» Fica contente porque me levanto da poltrona e vou como glutão, calcorrear as suas carnes, transmitindo-lhe um sentimento aprazível, que decorre de ser desejada. Beijando-a no pescoço e apertando-lhe as nádegas ao mesmo tempo, tenho de ir respondendo à mesma pergunta…achas-me atraente, queres-me comer, gostas das minhas mamas, já viste algumas pernas assim? O contraste da sua pele escura com a minha, destoa não fosse o calor que ambas trocam em cumplicidade herege. Roça seu corpo no meu, em espasmos que acho serôdios, empurra-me desajeitadamente para a poltrona, e rodando a cabeça como fã de heavy metal, chicoteia-me o rosto com o seu cabelo esticado e pintado de vermelho vivo. Desvio ocasionalmente o rosto das chicotadas repetidas, lembrando o quão estranhas são todas as pessoas, especialmente naquilo que fazem para tentar seduzir o outro. Ou excitá-lo. Esta deve ter visto isto nalgum filme, ou alguém lhe disse que é uma boa ideia. Jogara chicken comigo. Ou roleta-russa. Tentara aferir o meu ponto de suspensão, o quão pelo beiço estaria, instrumentalizando a sua atenção, como as crianças fazem quando descobrem que conseguem controlar o fluxo de urina. No mundo do jogo, perde quem se prende. É preciso arte para prender. É preciso compreender o universo e as suas leis imutáveis. Uma delas, é que o que brilha, é desejado, e não é por ser necessariamente ouro. Desde ver quem beija de olhos abertos, a reter as expressões claras de desejo, para que o outro não sinta ascendente sobre nós, e passe a controlar habilmente o acesso à sua intimidade. Ou, o contrário, bombardeando a nossa periferia dos sentidos, com promessas de amor e sexo irrestrito e incondicional, para nos arrastar para um contexto, onde sem ele, ela, o outro, a vida parece cinzenta sem a sua presença. Invariavelmente, sempre que caçando, e olhei para trás, lá estava o cano serrado de uma caçadeira nas mãos do que eu pensava caçar. É uma questão de disciplina, de não permitir que o que é e o que devia ser, não se misturem ou venham alguma vez a conhecer. As coisas são como são. Como deviam ser é na minha cabeça. As pessoas deviam ser mais dignas umas com as outras, eu incluído, pois Deus me livre, não sou nenhum anjo. Mas não. Calculamos, aferimos, julgamos, tudo o que achamos ser melhor para as nossas vidas. Para nós. Damos carne ao esqueleto instintivo, por via de justificações sofistas, que toma decisões por nós. A uma que havia perdido a atracção por mim, por se achar melhor, por não ter espelhos em casa, por ser solicitada por outro macaco mais bem vestido e imbecil como ela, dei com ela a dizer às amigas que havia perdido a ligação por mim, pois havia dado com nós os dois em minha casa, ela a brincar com o Candy Crush e eu a ler blogues no computador. Nem lhe passando pela cabeça que o nosso divórcio começara muito antes, e que apenas por gostar dela fui permanecendo. Mas como? Existe um gostar que não é suficiente para ficar? Claro. Um gostar do indivíduo que só nos anula, atrasa e empobrece. Mas que não conseguimos resistir, pois é da pessoa que gostamos, defeitos e tudo, rezando semanalmente para que nos largue, porque nós, por falta de amor próprio ou medo da dor que sabemos vir no correio, não conseguimos largar. Nós tínhamos acabado assim que percebi que aquele brilhozinho nos seus olhos, decorrente de me achar um prémio, desaparecera. A primeira vez que fodemos, olhei para ela, e ria-se, de felicidade, de contentamento. É quando sabemos que o outro está ali com todo o seu ser, sem reservas, e não quereria estar em lado algum, a não ser ali. Aquela altura, e também depende do tipo de gaja, em que se dissermos que vamos assaltar um banco, ela salta para o carro para meter o motor a aquecer. Mas o tempo, roeu essa imagem de mim, nos seus olhos. Tal e qual como a Esfinge por milénios de sol e chuva e ziliões de pequenos fragmentos de areia soprados contra si. Contra mim. A minha imagem a seus olhos é também minha responsabilidade. Mas acredito, lá está, mais no que deve ser, do que naquilo que realmente é. Que uma tshirt rota por a puxar do estendal, desbotada por meia dúzia de lavagens, não me deveria desqualificar, pois só o ‘amor’ importa, não é? Infelizmente o rouxinol não canta assim. O macaquinho ou a roda de hamster do outro lado, interpreta esta negligência como um sinal de desleixo, de que eu não tenho amor próprio suficiente para me preocupar com a minha própria imagem. Ergo, o segredo está sempre no mesmo, somos bichos de imitação, e se algum não acredita em si próprio e O DEMONSTRA, ninguém consegue acreditar nele. São portanto, as relações, análogas a uma peça teatral contínua, de gestão de imagem, de controlo da percepção do outro. De esconder o facto de que nos peidamos, arrotamos sem querer, ou que a casa de banho cheira mal depois de sairmos. Que não ganhamos trocos suficientes para parecermos autónomos, ou a braços com contas ao fim do mês, que não conhecemos o restaurante da moda, exprimindo assim um anedótico conhecimento do ‘nosso’ mundo e tempo, que nos torne válidos, o quer que seja que isso signifique. Escolhemos idiotices para dizermos uns aos outros, e fingimos profundamente esse acreditar em nós, essa proactividade e convicção, para sermos apreciados e valorizados, uns pelos outros. Jogos de congruência, onde uma morde o ombro quando a como por trás, outra, sendo introvertida, fingindo gostar de foder em locais públicos. O olhar atento consegue perceber quando é a manipulação do outro, da nossa percepção, até ao ponto em que a intimidade nos prende, e ficamos como peixe preso no anzol. Porque são os nossos sentimentos que nos prendem. O velcro. A rejeição, a mentira, quase nunca são relativas à nossa pessoa em concreto. São expressões do macaco interno, demónio camuflado de livre-arbítrio. Tal como, e aqui jaz a tua ilusão, o apreço, a aceitação, o ‘amor’. Reflexos de reflexos de reflexos, reflectindo outros reflexos parecidos. Apertando a realidade pelos colhões, o real não passa daquilo que os teus olhos não querem ver. Porque é preferível viver na realidade que a nossa mentalidade inventa, que na crueza do que seja o mundo, naquilo que é. O véu, por cima de todas as coisas. A mão do titereiro enfiada no cu da marioneta. E a pergunta mantém-se, quanta verdade, és tu capaz de suportar? Que por exemplo, o Rodrigo, que é uma jóia de pessoa, se fartou de chorar à noite, e com mentalidade de coaching negativo, divisou um plano de conduta ao contrário do que sempre tivera. Trata de forma bruta e rude as tipas com quem se envolve, engodadas pelas suas certezas absolutas e exuberantes, fodendo esta e aquela, de encontro a um guarda-roupas, largando-a inerte no chão assim que se vem e vai ver a bola para a televisão da sala. O seu instinto seria de a abraçar e beijar, mas sempre que procedeu assim, nele cagaram. Senta-se na sala a ver a bola e a lamentar os modos deste mundo, e a incongruência que sente no fundo. Mas o comportamento é reforçado, porque conseguiu reduzir a taxa de abandono. A sua dúvida pende entre a rudeza e a assertividade nova, que introduziu no seu comportamento. Ou a Ana, que finge, se esconde, do mundo e das pessoas, desde que se conhece como gente. Vive apenas através da personagem superficial que lhe garantiu apreço dos outros ao longo dos anos, e como acha que não é passível de ser amada além disso, anula todas as outras expressões do seu ser, para se focar na sua percepção que garante resultados. A sua ficção. Mas é incapaz de se anular completamente e tenta por todos os meios procurar a validação exterior que lhe permite viver com o seu pálido reflexo, a aprovação dos pais e da família, sobre esta pequena parcela de individualidade artefactual, ou para o seu grupo de amigas promíscuas e culturalmente indigentes, amarguradas por a passagem dos anos as ter privado das opções sexuais, de antigamente. Porque sabe não merecer melhor. Sabe o logro que é, a traição que opera a si mesma, mas não consegue ser diferente. Estica-se como criança, sobre mim, espetando os cotovelos no meu peito, provocando dor. Olho para ela perguntando-me se sabe que os cotovelos assim como adagas, magoam, se não tem consciência ou faz de propósito para ver a minha reacção. Pede-me para lhe programar a box da tv, pretexto que me levou a casa dela, a seu convite. Ao lado da box, uma caixa de preservativos e dois tubos de lubrificante, um com cheiro a menta e outro a baunilha. Abraça-se sôfrega a mim, e enche-me os ouvidos com a língua, no que considera ser erótico ter muco auricular, não percebendo que a temperança salivar é bem mais aprazível. Mas não a vou envergonhar dizendo que está a fazer algo menos bem. Suporto como soldado, mas começo a reparar nos objectos pendurados nas paredes, que não percebera antes. Um é um pentagrama. Os bonecos que eu confundira com a parafernália que as gajas metem nos vários espaços para efeitos de enfeitar, eram bonecos espetados por agulhas, cravejados de alto a baixo por lancinantes lacerações por via de minúsculos floretes. Algo deste género estava prometido que me acontecesse. Andar com tanta mulher e eventualmente cairia nas mandíbulas de um predador além dos arrufos de namorados. Um predador bem mais sinistro e investido na captação da alma dos visados, petrificados em máscaras que enfeitam as paredes. Bem me enganou, fez-me sentir tão à vontade com a aparência de um lidar franco, sem fingimentos ou artifícios que se cheiram a léguas, e que nos levam pela suposta intenção que os anima. Engodado que estava pela pureza e honestidade de uma relação não predatória ou calculista, como se fosse possível a um humano considerar os interesses do outro tanto como os seus…que não vi os sinais de perigo, a frieza de análise, os olhos vermelhos, e a voz sedutora de mão dada com a fácil sensualidade com que me acariciava o rosto. As nossas ficçõezinhas construídas para engodar os outros e a nós, pois somos uns filhos da puta a verter ouro falso, para manipular a nossa percepção de nós mesmos. De forma análoga, a capacidade de prender o outro, com os nossos afastamentos, as nossas promessas, os nossos corpos. Dobramos os sinos à morte das impressões iniciais, quando vemos sinais no outro que já não nos trata com tanta deferência, com tantos sinais de que nos vê como algo de tão valioso no mundo. Quando a aparência de desilusão percorre o seu olhar, lamentando a perda de tempo do seu investimento emocional. Quando nos dá por garantido, uma desilusão garantida. Quando vemos o reflexo do nosso rosto, nos olhos do amante, devolver a imagem grotesca da nossa face, o único reflexo que nos importa, não do espelho, mas de quem queremos para nós. O longo limbo do nosso medo de haver manipulação ou fingimento por detrás dos olhos fechados que nos beijam, que espreitamos para confirmar se os nossos medos são reais. Viciamo-nos nas fases de enamoramento, no viço inicial que exige de nós as melhores ficções que forçamos goelas abaixo, porque queremos acreditar, que vivemos o amor, que amamos, mesmo que seja só a ressaca da dopamina e oxitocina que nos torna a vida de drogados, um pouco mais suportável e afastada do lento ocaso prometido às nossas vidas. O velcro, com uma face suave, e outra agreste, a procura dos contrários e o vómito dos semelhantes. Com força se cortam as ligações emocionais entre quem se amou e partilhou segredos. Até ao momento da ruptura, que é o momento em que um, se decide colocar a si em primeiro lugar, sobre o pacto anteriormente contraído em eflúvios de loucura temporária. Gerimos o velcro das nossas relações, para não mergulhar de cabeça no mar largo. Para ter alguma ilusão de controlo, controlo que não passa de ilusão. Literal. Escolhemos a mentira, como o menor de dois males. Rodeado de velas acesas, refastelo-me com o verter do meu sangue sobre a minha pele, e um ruído crocante e final separa a minha cabeça do meu torso, inebriado pelo calor do mijo e do sangue do meu corpo desintegrado. Que a minha morte te seja aprazível, ó puta. No fundo fazes-me o favor que eu pretendia, a morte como distracção para a vida. Como aquele herege com tons de aço vítreo, à chuva na rua debitando salmos de arrependimento. A luz solar mudando de matiz consoante os anos, queremos a felicidade adequada, dançar em torno do abismo, fingindo que nunca nele cairemos.
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