«-João tu viveres no passado.» A pronúncia eslava lembrava-me que a minha verborreia caía em ouvidos estranhos. Nascida em 2001, a Kerstin citava ditados e dizeres checos, de onde os pais haviam emigrado para a Suécia, onde nos conhecemos nas imediações de Gotemburgo. Num deles dizia que o passado era algo onde ninguém devia viver, pois não existia. Bom ponto de vista. Tinha tido durante 4 anos um namorado brasileiro e arranhava algo de português, só se adivinhavam as conjugações de verbos. Os pais haviam trabalhado nas indústrias da Scânia até ela morrer de cancro e ele ficar em estado vegetativo por causa de um AVC. Vira-me numa livraria de Estocolmo à procura de um cabrão de um livro sobre naus suecas que os cabrões foram para o Indostão à procura de fama e glória tal como os tugas. Foram tarde e acabou cedo, mas eu tinha de apresentar uma merda qualquer sobre a minha investigação e andava à procura de um livro que me servisse de bóia de salvação. Ali estava ela, sentada nos seus 190 centímetros, num sofá vermelho da livraria, a folhear uma BD do Ranx, que eu reconhecera dos meus tempos de FNAC. Quando me sentava horas à espera da minha namorada que trabalhava em frente do cinema do Colombo, na loja semi-gótica. Esperava por ela lendo livros na FNAC, íamos depois para o Bairro Alto. De manhã se o horário deixasse íamos de mão dada para casa dela fazer amor, ou cada um para as aulas de Filosofia que tinha de acordo com o horário. Engraçado como nunca emprestáramos livros um ao outro, tão ciosos das nossas pequenas bibliotecas. No sofá vermelho as suas pernas brancas cruzadas dividiam a atenção entre a capa da BD e a minha vontade de ir além daquilo que a mini saia vedava. Percebendo que olhava para ela e para o livro, pergunta-me num inglês macarrónico se eu precisava de alguma coisa. Apenas consegui articular uma única frase. «-Im gonna eat you like a catholic.» Não faço a puta da mínima ideia porque disse esta merda. Como Deus me agraciou com sorte e aspecto, ela levanta-se aparentemente divertida, caminha na minha direcção e ensaia de novo algo na língua de Chaucer: «-Want to buy me a drink?» Um bar na ortogonal raia de Gotemburgo recebe-nos, com gajas a dançar nuas em cubículos cilíndricos cujas mulheres no seu interior dançam, agarradas a um varão de alumínio. Parecendo peixes em aquário, fazem-me navegar pelas mil fantasias eróticas em que me vejo a possuir os seus corpos. Dou comigo a pensar no que disse, eu que sou agnóstico, e dou com ela a massajar a minha perna com a mão e a perguntar-me então John, what you got to tell me? Pergunta-me de onde sou, e manda vir uma cerveja preta que bebo constantemente e apenas à 3ª, cada uma de meio litro, sinto eflúvios de Baco transportando-me para outra realidade, paralela, a lá bêbedo. Desfeitas as inibições sociais estava livre para dar ao mundo o privilégio da minha personalidade. De como as ruas de Vale Figueira, um merditório dormitório de Lisboa, fervilhavam de carácter em relação ao anódino volume humano de carbono hodierno. Desbronquei-me com as histórias do Fanã, do Silvestre e do Silvino. De todos os selvagens que me povoaram a imaginação enquanto cresci enconado por autocensura. Das vitórias do Glorioso e dos concertos de heavy metal. A minha sombria opacidade era brilhante aos olhos de uma miúda de 20 anos. Não fazem ideia do que seja analógico e eu sou tão digital quanto tal. Ainda nem era nascida e já eu tinha facturas de 35 contos para a PT comunicações por causa da internet 2.0, de ver porno e sacar uma música por dia sem respeito por direitos de autor. Que caralho é esta merda de carácter? É não renegar as origens, isto é, as condicionantes de uma equação que nos formou no decurso do pai Cronos? Enquanto contava as minhas histórias, imbuído num espírito de exprimir a autenticidade dos subúrbios lisboetas, ela olhava-me embevecida, não por eu estar nu em frente à sua lareira acesa, mas por ver uma expressão espiritual de um soluço de tempo, e dizia algo que eu não conseguia distinguir, para não perder o fio à meada narrativa. Personalidade? E que merda é esta? A capacidade de um indivíduo determinar a realidade apenas com a força da sua existência? E que merda interessa isso quando todos sabemos que daqui a dez anos após a nossa morte ninguém nos lembrará como alguma vez existentes? Deitando-se frouxa no chão, acidentalmente e propositadamente deixando a mini-saia pelo nível da nádega, aferia o meu grau de interesse. Assim que vi a promessa de sexo consensual, estava em cima dela com a minha língua enterrada na sua boca, finalmente calado do saudosismo de uma realidade passada que mal controlara. Puxada uma das pernas dobrada pelo joelho até nele roçar o meu mamilo, sentia a vulva molhada em torno do meu falo, e a respiração gradualmente ofegante, onde o zénite prometia valorização daquele que eu era. Assim que dentro dela, de mim se apossava um animal fornicador, apenas apaziguado pelo extenuante bombar rítmico à procura do êxtase através dela. Olhava para sua pele esticada pensando que há vinte anos que não comia gajas de vinte anos. Mas estava farto de as ver como objectos de sexo, já não me dava prazer. Permiti-me divertir com tudo que não aludisse à vertigem da performance. E por fim, ela revelou-se na sua própria subjectividade. Chorei de alegria por ter finalmente conseguido uma expressão de espontaneidade num outro. De me lembrar que só o conforto corrompe e que fora ele que aniquilara toda as expressões de genuinidade em mim, nos outos e nesta zona à beira do estuário plantada. Tinha o peito todo suado olhando a ventoinha de tecto à espera de secar. Ela ofegante vira-se para mim e arranha num português tão manco como a minha convicção: «-João, tirarem a ti de Portugal, mas não tirarem Portugal de ti.»
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