A Marília era uma das raparigas mais bonitas da Escola Secundária de São João da Talha nos idos anos de 1993-94. São João da Talha encaixa-se entre os dois maiores cursos de água que rodeiam Lisboa, o Trancão e o Tejo. Mais Lisboa por afinidade que saloia por convenção, é um dormitório de gente que gasta o existir em torno da capital. Marília era alta, bonita, integrada e apreciada pela sua personalidade. Falei algumas vezes com ela. Certo dia num intervalo em que jogava à bola com outros, veio falar comigo. Oi, como estás. Sondou-me aferindo a minha sofisticação. Conhecia-a de vista. Tinha até um fraquinho visual por ela, pois era muito bonita. O que lhe chamara a atenção em mim, os meus chanatos com sola de corda de cânhamo, a que eu achara graça numa feira qualquer, e que destoavam das sapatilhas de marca do status quo coevo. Destoando dos restantes, chamei-lhe a atenção e foi ver se o artefacto que usava nos pés era coincidência ou se eu era alguém de vanguarda. Fiquei tão enconado por uma das raparigas mais bonitas da escola estar a falar comigo que não me lembrando do que disse então, sei que não disse coisa com coisa. Foi agradável porque ela assim o entendeu. Não mais me prestou atenção até a nossa escolaridade secundária terminar naquele recinto. Eu conhecia-lhe o caminho. Entrámos para a Universidade ao mesmo tempo, talvez eu um ano mais tarde, por causa do serviço militar. Cruzávamo-nos nos mesmos autocarros atulhados de gente que se espremia para fora dos subúrbios. Comecei a vê-la sair em Sacavém, com tipos mais velhos e da pesada, leia-se, ganga rota e cabedal gasto. Os machos alfa que lhe satisfaziam os desejos de sofisticação e validação genética. Com a passagem das estações os amantes variavam para cada vez mais marginal em relação à norma. A epidemia de narcotização da minha geração chegou ao pináculo naquela altura. Percebi que estava infectada quando num mesmo autocarro nocturno em que eu regressava das aulas a que ela era estranha, magra, castanha, com o cabelo como pálida comparação à sua glória passada, reclamou com o motorista por não parar exactamente no local assinalado. Mas não era ela, pelo menos ali, estava noutro algures. As estações passaram e o meu curso era de 5 anos. Marília na minha memória deitara-se num tépido leito tapado com o véu branco transparente da deslembrança. Arranjei um biscate a fazer vigilância aos Sábados e Domingos, e num certo dia, ao voltar do serviço, vejo na estrada Nacional 10, que anos antes percorrera de bicicleta ou a pé em romaria para comprar jogos em disquete para o Commodore Amiga, um vulto arrastando-se ao longe, logo de manhã, pela berma da estrada vazia. Andrajoso era alguém se prostituindo. Como a carrinha era alta, tive de olhar bem nos olhos daquela alma que ali comunicava a sua disponibilidade com o polegar apontado ao céu. Quando nossos olhares colidiram, ambos nos reconhecemos. Eu não queria acreditar que Marília tinha chegado a tal ponto, tanto talento e beleza desperdiçada à conta de escolhas menos boas. Surpresa automática foi o que se transmitiu ao meu semblante. Ela quando me reconheceu baixou de imediato os olhos ao chão, numa cumplicidade trágica em que ambos desejávamos que as coisas tivessem corrido de forma diferente. Sem dentes, castanha, com a pele seca e enrugada, como se algum demónio no centro geométrico do seu corpo a puxasse além do limite da elasticidade, custava acreditar que ela havia sido uma das mulheres mais bonitas que eu vira até então. Irreal associar os lábios rosa, bonitos e compondo um rosto de querubim seiscentista, ao agora árido terreiro que se encaixava nas pilas encardidas de camionistas movidos pela luxúria. Apaixonamo-nos pelo abismo. Como bom amante acaba por nos puxar para ele. Como velho combatente operador de peça de artilharia que não se assusta com foguetes de feira, Marília nunca poderia ter o mesmo respeito por um gajo pacato como eu, após ter provado o sal da Terra, que foram os badboys a quem não resistiu amar. Não era eu amável, não é isso que me motiva a lembrança. Era e sou um conas, que raramente faz a cama depois de acordar. Não sou nenhum santo, mas sempre resisti à sofisticação e sempre resisti ao espírito de manada. Na altura em que a via com os metaleiros que já fumavam brocas, e depois para os bazofs que já caldavam, sentia alguma inveja e lamento, por ser demasiado certinho, ou suspeito, cobarde de não ser um bucaneiro que me vendesse a mim e a outros à liberdade. Não apontei para Marília com gutural grito primata culpando-a das suas escolhas. Pássaro tão belo não poderia alguma vez ser engaiolado ou anulado por mim. Eu não quereria viver com isso. Melhor que com a minha cobardia. E no entanto lamentava a desventura de Marília, como se fosse a minha. Não soube mais dela. Nunca mais a vi. Espero que ainda esteja viva e bem. Foi a primeira vez, e a mais impressionante, que vi uma viúva Alfa. É um conceito complexo e interessante. No caso de Marília, um assombro pelo abismo, inquestionável. Como bem de consumo o homem, o badboy é o topo de gama. O que consegue motivar qualquer um para a vida, aquele que tem carisma ou personalidade que o faz parecer aos olhos dos outros uma epifania constante. Eu sempre tive a crença de não ser assim, apreciado, quanto mais suficiente. Sempre achei que os outros seriam mais divertidos e interessantes que um cinzentão como eu. Não sou santo, e também gosto de malucas. Mas só até ao ponto em que a minha desde sempre curta paciência ainda o permite. Mas isso sou eu agora. Marília então era movida pelo amor e pelo sentir que o que fazia era a pedrada no charco. Perdendo-se em todos os pequenos dramas que dão sabor à sucessão dos segundos, a vida intensificada pela liturgia de obter e consumir a próxima dose. Para os coloridos, a vida é uma onda hertziana, intermitente e arritmada. Para os pacatos, cinzentos e cobardes, um eterno traço horizontal, como se replicassem a morte eterna. A viúva Alfa é toda a mulher cujo pico emocional já foi ocupado por outro. Esse pico emocional, ou o critério de escolha do ocupante, nada tem que ver contigo. Umas vibram com chouriçadas cinematográficas, outras fazem turismo sexual até ao Dubai ou Uzbequistão, outras com os badboys dos concertos, cada uma tem o eldorado da sua mistificação. De certo que só os pacatos procriam com pacatas, e que quando as não pacatas se decidem pelo pacato, ele vai ser sempre a aproximação e nunca a sorte grande. Não são só os meios que separam as pessoas. Eu por exemplo, não tenho meios e nunca me faltou ou faltará sobre que escrever aqui. Ah João, vens para aqui falar das gajas, que deselegante, comes e contas. Nada disso. Nunca falei de outra coisa senão da condição humana. Dividida entre homem e mulher. E destas forças que agem em nós sem que as identifiquemos sequer, valha-nos a ciência. De como as minhas amantes, os meus amores, se enganam a si mesmas sem o saber, porque o seu ego lhes tolda a visão. Como eu me toldo a mim mesmo com a certeza das observações que faço. De como nos avaliamos e desclassificamos uns aos outros, com os relógios internos paridos da nossa subjectividade e do Mundo. Mas eu preciso de entender, por muito que a verdade custe. Preciso. Não pode ser arbitrário. Tem de haver uma estrutura. Acredito que sou tão pacato como excêntrico. Tento ser consequente com os meus pensamentos e argumentos. Elas dizem-me, nem tudo são razões ou racionais. Isso é fácil de dizer para quem consegue ter duas ideias contraditórias ao mesmo tempo na cabeça. Eu só tenho a lógica. Só a lógica me permite um vislumbre de compreensão do que não sendo lógico, se deixa ainda assim adivinhar. É claro que os alfas são a encarnação moderna dos machos dominantes da savana e que as viúvas alfa são aquelas cuja biologia as força a perseguir os genes dos machos mais bem adaptados ao meio. Há excepções, claro que há, milhões delas, mas esta é a regra. Marília pagou bem caro por essa força telúrica e pelo fascínio do abismo. Sei agora que era o meu orgulho e insegurança a alimentar o meu ressabiamento. Que me interessa ser o gajo mais marcante na vida de uma gaja? Sou eu por acaso carenciado de validação por intermediário? E onde coloco o meu ego investido no deslumbre pelas minhas capacidades dialécticas? A crença que do conflito nascem os puros relacionamentos? Não posso criticar Marília, sou como ela, à procura do mesmo, de genuinidade do concreto além do pacato. Somos todos filhos de bucaneiros que não respeitam filhos burocratas. Terá sido condicionamento, terá sido o parto com determinado temperamento insuflado na minha boca ao mesmo tempo que a parteira me esbofeteava o rabo? Marília vendeu-se à liberdade. À que lhe apareceu. Insondável é o coração da mulher e ainda bem. Bendito ego que a proteges. Marília espero que ainda estejas connosco, e bem.
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