Viúva profissional Apunhalando a pastilha elástica com os dentes, respirava a largos sopros pelas narinas. A moça que me saciou durante toda a noite jazia inerte numa ponta distante da cama. Longe do abraço de amor ou carinho que não lhe consegui dar. Encharcada em suor, que arrefece rápido à noite, e a faz procurar com a mão aberta e os olhos fechados o edredão, o lençol cheio de sangue como prova que eu fiz questão de mostrar de que por estar quase no fim do período, não era impedimento para a voracidade do meu apetite. Olho-a e o seu escasso talento na cama, os seus pés feios e frios, a sua cara feia ou não bonita para mim. E penso que é uma condição de merda ser homem. O orgasmo foi o metrónomo da noite. A caminho de casa fingi uns gestos de carinho. O efeito que as gónadas provocam no cerebrelo já havia passado, vazias que estavam com solidariedade com o meu coração. Porque é tão importante falar de cama? Porque nem toda a gente tem jeito, fisionomia, imaginação, à vontade para isso. Já não basta ser-se feio, que se se revelar um espantalho na cama, o feio ou a feia, e até o bonito e a bonita em menor grau, terão dado um certo passo mais para a solidão. Despede-se de mim num assomo de paixão momentânea, pensando que o amor finalmente a encontrou. Só penso em dizer-lhe para ter calma, que foi só mais uma noite de corpo, mas não acho o momento apropriado para lho dizer. Conduzo para casa, como se tivesse passado mais um capítulo da minha vida. Sinto-me do lado dos «fortes», é ela que está em suspenso por mim, e o mesquinho em nós não pode deixar de se manifestar. Mais uma para o currículo, diz aquele diabinho que representa parte da nossa consciência nos livros do Tio Patinhas. Coitada, mais uma que se apaixonou, não tens vergonha? Diz o anjinho... E a rememoração de que foi por não querer iludir ninguém que larguei as anteriores. Os meus colhões são mais fortes que eu. 150 gramas de chouriço como se costuma dizer, ganham a 85 kilogramas de porco. Esbofeteei o anjo, porque não pode falar mal de mim. O mundo não tem nada a ver com a nossa ideia de justiça. E não sei se iria suficientemente longe no buraco do coelho, ao dizer que o mundo se ri da nossa ideia de justiça. Cada mulher tem sido a preparação da seguinte. A mim, a paixão dura-me meia dúzia de meses. No longo prazo. A curto, é o tempo de recuperar de um orgasmo. Após um ano e tal, bem intenso, voltei a escrever. Por acaso e por capricho conheci alguém de Mafra. Quem já não acredita em corações, começa a dissecar almas. Eu, como outros, sou um deserto. Um cemitério. De raparigas. Uma ex-namorada uma vez disse-me isto com cara de horror. Na altura tomei o teatro como expressão de falsa moral burguesa. Agora percebo que a minha soberba é ter comido, ou ter sido comido por tanta gaja...e não passa de pueril contentamento. Ela casou. E eu tenho sempre uma mesquinha suspeita de que todos os casamentos acabam mais cedo ou mais tarde. Não se sujeitou em ser a sua lista de amores e desamores. Eu, se me ligar, é para não desligar. É o que todos dizem às amantes. Mato-as e a mim , no processo. Tivemos de tudo...paixonites infantis que nos faziam viver a 1000 por cento, como contam as canções do Carlos Paião. Frescas e leves, intensas, como o frio do orvalho de Verão, ou como o cheiro do feno após chover. Paixões adolescentes que nos agarram pelos artelhos e centrifugam até não haver mais pinga de sangue, ou de sanidade. A emoção é um livre carrossel. Na idade adulta temos um amor, com tons de absoluto. Vestimos a pele da eternidade. Dilui-se. Corrói. Decai. Acaba. É o nosso mundo que mergulha com ele. E a nossa crença. O último degrau? Este em que agora estou. Cheio de manha, cheiro a manha estratégia de engate a léguas. As manhas, as fitas, são claras. O jogo perdeu o interesse. Eu tudo domino. Algumas pessoas com experiência na vida, sustentam que é razoável partir de um princípio básico. Concordando como princípio que sustenta um princípio básico, eu sustento que todas as pessoas são todas aborrecidas. E que a maior parte das vezes faço figura de parvo a encontrar conversa da treta para manter a conversa com quem acho mortalmente entediante, mas como não quero mostrar isso para não magoar, torno-me a mim um chato. Existirá por aí alguma chata ou chato, que me consiga contradizer? Este princípio quase básico, tem no mais elevado grau de pureza, a força negativa capaz de ser a mais potente força motriz em forma de repulsa. O aborrecimento repulsa. O aborrecimento é a bota que oprime o traseiro, empurrando-nos continuamente para forçadas novas descobertas. O tédio, que por si tem uma natureza calma e sedativa, é a força com potência para meter toda a gente em movimento. E se dissermos que o tédio é a razão de todo o mal, não andaremos longe da verdade. O lado oposto da atracção é o tédio. O tédio é absolutamente mágico, no seu efeito mobilizador através da repulsa. A corrupção do tédio derrama-se claramente, no comportamento das pessoas. Especialmente no trato com as outras pessoas. Nada é mais entediante para uma pessoa que outra pessoa. Uma pessoa entediante é mais entediante que um livro entediante. Veja-se o santo mais badalado da Cristandade, no mais paciente estala o verniz após aplicação de puro bom e velho tédio. Veja-se o nascimento das birras das crianças, só germinando quando a brincadeira já não diverte. O entretenimento é a esta luz, não a razão de se estar vivo, mas a fuga do efeito corrosivo do tédio. O tédio é a mais próxima sensação da morte mais próxima. Não a morte física, mas a real, aquela que é a negação da vida. O nó de Susana começa aqui. É uma fugitiva, como nós. Ela caiu na fuga. O aborrecido é aquele que visceralmente sente repulsa pelo estado que pára o tempo alongando-o como se fosse uma paragem da e na vida. Perda de valioso...tempo. Tempo e tédio, eis o eterno. (continua) Viúva profissional - parte II Quando penso em ti com mais força, sei que é porque estás a pensar em mim. Em relação a ti, tudo o que seja menos que tudo é nada. O teu cheiro, o teu sabor, a tua língua, os teus braços. Lembro-me desses nossos momentos fugazes como lágrimas na chuva. Tenho post its espalhados pela casa e no pára-brisas do carro, lembretes para não me esquecer de respirar. Copo atrás de copo, bebo este malte tão velho quanto o meu amor, na esperança que após o engolir o sabor da tua boca já não esteja na minha...debalde...como fantasma residente que se recusa a aceitar que morreu. Escrevo-te e para ti escrevo. Escrevo-te pelas barras de uma rima. A tua língua... A tua língua é o mais fascinante isco no mar, irresistível, para peixes incautos como, eu que ao verem tal isco ao sabor das correntes que não são vistas, vai sôfrego tentar beber a doce saliva que ontem provei, só para ser surpreendido por um peixe enorme e carnívoro, oculto sobre o fundo arenoso, com o artefacto enganador ondulante, ironicamente alguns milímetros acima da doce boca. Escrever é um minete. Eu gosto de fazer, tu gostas de receber. No entanto estamos os dois à sombra, no Sol do anonimato. Nós, na tua cama, mascamos folhas de louro, fazemos duas coroas com o que sobra, coroamo-nos como rei e rainha de uma timocracia de paixão. Na praia perto de tua casa apeteceu-me mergulhar na água. Tirei as minhas roupas, e contei-te que os antigos gregos faziam a lavoura desnudos copulavam com a terra em charquinhos de pequeno esperma, e com as mulheres sobre a terra aberta ainda quente, em orgias de mosto e fertilidade. Desejei erguer um templo assim, mas somente me deixaste projectar a sombra de uma forca. O ocaso levou-te para longe de mim, e a sombra do infinito veio fazer-me frio de novo. Tempo e tédio, eis o eterno. O movimento amoroso nas nossas vidas é uma cópula. Uma cópula é um movimento mecânico de contraste entre dois órgãos de dois corpos diferentes. Um reclama em gritos de uníssono o outro. Pede-lhe a falta para voltar a gritar pelo outro desesperadamente. Assim com as paixões, que madrastas são ondas hertzianas tudo absolutizando à sua passagem. Precisamos da falta do nosso amor para o desejar ainda com mais força e lágrimas nos olhos de o termos repelido, só porque o quisemos sentir longe para o sentir ainda mais perto. Nenhum juiz daria a justificação de um divórcio com base no tédio que a mulher causa no marido. O Sol deita-se em tons de mel. A força motriz não é a criação, a criação é a resposta à força motriz que é o aborrecimento. É como o fluxo e refluxo das marés, inolvidável, rítmico, quase eterno. O pêndulo das nossas vidas é lembrado na hora da nossa morte, apenas porque os ponteiros são os nossos braços de infante querendo colo, e as horas, os nossos amores. O homem não é um animal social, a não ser que seja um animal de caça, necrófago e canibal. Todos os humanos são aborrecidos, aborrecem-se a eles e aos outros. Os que a si próprios se aborrecem, divertem os outros. Entreter o outro é a mais aguda forma de me aborrecer a mim, onde só posso acabar por morrer, passivamente, por fastio ou dar um tiro nos cornos só por curiosidade. Só, na minha secretária, é fácil com o teu silêncio pedir letras. Mas elas saem-me da carne, e se eram tónico antes do toque da tua carne, agora são cílios que laceram a minha, com a lâmina da distância. Apostola do entusiasmo vazio navega pela vida com uma interjeição nos lábios, faz de missão ser entusiástica e alegre onde quer que esteja especialmente para que os outros vejam, está presente em todo o lado e disso faz questão. O aborrecimento sustém-se do nada que liga a existência e as vidas. O sentimento de tontura é o mesmo que quando olhamos da borda de uma varanda muito alta, e o abismo parece chamar-nos para si. Cansamo-nos de viver em chão argiloso e mudamo-nos para chão arenoso. Cansamo-nos do campo, vamos para a cidade. Cansamo-nos da Pátria vamos para o estrangeiro. Fartamo-nos de uma mulher, dedicamos doravante amor a todas, sozinhos no nosso peito. Magoamo-nos com um homem, queimamos o chão tenro e pulsante de irrigar sangue, para que mais nenhum lá subsista. Passei o dia a tentar vir à superfície. Mergulhei tão fundo na toca do coelho que agora para saber onde é o cima ou o baixo, tenho de chorar para ver para onde corre a lágrima. Lágrima de alegria porque já morei na tua boca. Se nada faz sentido, é porque ainda ando a tentar apanhar o equilíbrio e a perceber o porquê do fascínio. Como o sabor acre de uma garrafa de velho líquido de malte. Viúva profissional - parte III Em papel espalhei letras em orgias Encostadas, juntas, separadas por vírgulas, traços Travessões Transe de quem mal dorme Por escrever sempre o mesmo Um caminho para o teu nome Agora por folhas de papel ancião Continua a tinta a jorrar Porque não é por se ter cantado a canção Que uma música se deixa de assobiar. O teu corpo é outro papel onde escrevo as cartas de amor para ti. Viúva profissional - parte IV Pêndulo. É verdade, de verdade às vezes apetece-me chorar. Dir-se-à «Que frescura...», pois que a vida é assim e um homem não chora. O problema é quando começamos a ser tão rebeldes, que a própria variação permitida como aceitável para o que a vida poderia ser deixa de ser suficiente, um pouco como dois amantes que já nem sabem o que descobrir um do outro. A ideia de que as coisas poderiam ser bastante diferentes, arde nos toros de que isso resolveria os sofrimentos que passámos nesta vida...será isso uma espécie de renúncia? Claro. Só o rebelde renuncia. E no fim, e no fim de contas, é só em solitude que nos encontramos. Beijando o nosso reflexo no espelho que ninguém encontramos que nos ature e adore a não ser por não ter mais nada por que viver. E tudos os sonhinhos, ilusõesinhas, os pormenores acabam por ser espinhos pequenos e pedras em sapatos, que nos lembram o quão balançados estivemos para qualquer lado. Com essa entrega sentimo-nos ludibriados. É isso que no fim levamos daqui, um sentimento de termos sido enganados só porque gostávamos que as coisas tivessem sido diferentes. Dói, mas é a parte que não renuncia à felicidade, ainda que amargue. A torre mais alta dela, que não permite dar o coração ao seu mancebo adiado, é aquela em que já tem a desconfiança entranhada. Sem esperança deambula na expectativa, mas nunca no sonho, de encontrar um homem a quem amar, mas no entanto acreditando no amor. Só a falta de força justifica o cálculo.
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