Os pés dela batiam-me na cara ao ritmo com que lhe perfurava com estocadas penianas, o baixo-ventre. Pela minha mente apenas passava a ideia de que isto era uma guerra civil. Olhava para o seu rosto, de lado porque a comia de costas, e não conseguia deixar de ver o rosto do seu pai, que me mostrara num álbum prévio, que geralmente as gajas mostram como forma de criar ligação emocional com os detentores de pila prestes a usá-la, nelas. Basicamente, e reza a história, dei comigo a ver os traços masculinos do seu rosto, que me lembravam o progenitor, e a pensar que estava a comer res extensa nascida mulher. Não um ser de natureza diametralmente oposta à minha, repetidamente feita para me magoar, mas uma tonta em avulso, flagelada com os mesmos defeitos que o tonto eu. Não é nada pessoal, são palonças porque as elevamos em demasiada estima. Desmistificando a gaja, deixamos de exigir dela que seja divina. E sai uma palmada na nádega. A transpiração caía em bica pelo meu rosto abaixo, e o pensar na ideia de ver a cara do pai com feições femininas retirara o foco de a fazer vir a ela ou esporrar-me eu todo. E subitamente, uma aflição moral me aflige, a expressão ‘dormir com o inimigo’, e a aflição de as julgar de forma demasiado bruta e egocêntrica, isto é, baseada no impacto negativo que algumas tiveram em mim. Que a maldade e estupidez no outro, são pouco mais que falhas de carácter, que a maioria esconde, para gerir a imagem aos olhos dos outros. Todos somos filhos da puta inconscientes e cegos na nossa consciência, que trabalha incessantemente, para nos ludibriar no que concerne à origem das nossas intenções, quando agimos. A decisão é tomada, assumida, e depois o ego trata de encontrar a história, o ângulo, onde na narrativa que contamos para nós à noite, ao travesseiro, as decisões são sempre as melhores, com as melhores intenções, e como todos sabemos, delas está o Inferno cheio. Tenho eu andado a dormir com o inimigo, isto é, tenho eu negado a individualidade delas, apenas para me proteger? Encarando-as como uma contraparte que se contrapõe a mim, aos meus interesses, estarei a vedar-me à verdadeira intimidade com outrem? Murcho, e ela vira-se para mim, como que magoada por eu ter perdido a tesão que dura há cerca de meia hora. Resquícios do que os conas chamam de ‘masculinidade tóxica’, onde um gajo é olhado de soslaio se a pila se farta de reter sangue para prazer da contraparte. Abraço-a e faço-lhe festas no rosto, e continuo a perseguir a minha ideia. Não só são tão determinadas biologicamente como nós, como parecem ter menor consciência das raízes profundas dessa determinação. Valha-nos Deus, se trazemos alguma ciência à mítica ‘mística feminina’. Prestidigitações que visam mistificar com tinta de choco. Está investida em mim, e tenta-me agradar com coreografias aprendidas em outros teatros, belisca-me os mamilos, que detesto, porque algures no seu passado, algum parceiro gostou ou pediu. Pelas palavras, reacções e posturas, percebemos o grau de mágoa que tentam esconder. Pela tentativa de controlar a forma como a vejo, pela personagem proactiva que desempenha para dar a ideia que tem uma personalidade forte, também ela testemunha para mim, que dorme com o inimigo, com um representante de outros que a magoaram. E protege-se com contramedidas que visam evitar o torpedo no casco. Todos dormimos com o inimigo. Por medo, ou controlo, o que é o mesmo. Ninguém passa cheques em branco. Todos reagimos ao comportamento contrário, por trauma, cansaço, ou vingança serôdia e estúpida. Abotoa-se a mim, e sorve-me o falo, e continua a apertar-me o mamilo com o braço esticado. Ela esquecera-se de mim. Andámos na mesma faculdade, e rejeitou-me numa abordagem minha há 20 e tal anos. Estava a principiar a carreira de actriz, e envolver-se com um neurotípico, parecia-lhe uma regressão. Tinha de manter os dentes brancos e o hálito fresco, por desempenhar papeis em novelas que requeriam trocas bocais com outros actores, com a língua a servir de cartão de visita, e o beijo reduzido a um simulacro mecânico de afecto. Dormir com o inimigo, foda-se. Mas eu sei, de certeza absoluta e comprovada, que estas gajas deixam de nos respeitar, se as queremos tratar como seres humanos, e não como o ‘inimigo’. E não nos respeitando, são incapazes de nos amar, de nos ver com valor, na igual medida em que um corpo decaído já não permite desejo saudável. E assim aconteceu com ela no mundo madrasto das novelas. Não tendo ascendido a estrela, foi obtendo cada vez menos trabalho. Teve de começar a trabalhar em escritórios da metrópole, e como ninguém se prestou a ficar com ela, afogava cada vez mais as mágoas, em cada vez mais vinho. Eu estava a mudar o pneu do carro, que mo furaram em frente a uma tasca. Aposto que foi o filho da puta do dono, que considera o lugar de estacionamento público como seu. A troca de pneu durou mais tempo, porque o carro não era meu, o macaco estava enferrujado, a tal ponto que o parti, exercendo força de braços nele. Da esplanada vieram-me ajudar uns sexagenários, provavelmente aqueles que me furaram o pneu. Logo avisando para não me demorar com o macaco emprestado, que estavam prestes a ir-se embora. Perante a minha atrapalhação, perguntaram-me se eu alguma vez mudara um pneu. Fiquei ofendido por dentro, mas ri-me. Ter pipo de cerveja também não ajudou à destreza. Preferi pensar na diferença geracional entre estes que me ajudavam a resolver um problema, e a geração mais nova que passava por mim, sem que ocorresse algum pensamento de camaradagem. Não que eu precisasse. Mas a predisposição para a acção, impressionou-me. Esta malta mais velha, com mais fibra, construiu o Portugal que originou por fim, os conas e os bananas. É a queda do império. Um parafuso escorreu pela rua inclinada, e uns sapatos vermelhos de mulher, apararam a fuga. Era ela, e não me reconheceu. Fiz por manter a conversa e 5 dias depois estava a deixar a minha mão marcada nas suas nádegas. Olho para ela inserido numa longa fila de flirts e amores infelizes, e não consigo pensar que estamos em guerra civil. Divididos pelas dores lancinantes decorrentes do mercado da carne. Geração após geração, a foder-nos uns aos outros. E a nós próprios.
0 Comentários
Os seus lábios tímidos esmurravam-se contra a minha boca, que retorquia não mais que cheiro de estômago vazio e alcatrão do cigarro que eu acabara de fumar. Preciso da nicotina para me manter no presente. Ela pretendia convencer-me de um assomo de paixão, com movimentos bruscos imitados da sua ideia do que era o tipo de mulheres que eu frequentava. Insegura perante o que desconhecia, o suficiente para não me querer perder, pelo menos para já. No corredor do hospital, faz força para que eu me levante, e arrasta-me para o sítio onde guardam as esfregonas e o papel higiénico. Andou a planear isto durante a semana toda, e é já com a minha pila na sua boca, que volta aos movimentos bruscos, olhando para cima e perguntando ‘-Gostas de mim porque sou maluca não é?» «-Não, gosto de ti por seres quem és.» Mas a resposta passou-lhe ao lado, pois investira demais na personagem que acharia que me cativaria, que na realidade mais simples de que eu gostava dela, apesar das encenações. Tinha uma doença má, fora o que me dissera quando me chamou a ir ter com ela ao hospital. Eu evitava agarrar-lhe no cabelo, enquanto me chupava a pila de forma circense, numa lógica infantil de achar que o excêntrico corresponde sempre ao inesquecível, e o que ela mais queria era não ser esquecida. A lembrança é mais querida aos moribundos, que a própria vida. A espaços dava com ela a olhar para o meu falo, como que absorvendo a imagem, fosse para recordar, fosse, o que é mais provável, para desmistificar algo que tivera inacessível por bastante tempo. Por escolha própria, pois o que não falta no mundo são pilas disponíveis. Mas poucas, creio, que tragam agarrado a elas, algum significado. Foi ela que formulou a resposta a uma antiga equação minha: «-João, tu andas a mortificar-te por causa das alterações de gostos da individualidade de outras pessoas.» É verdade, as pessoas mudam, algumas tornam-se mais parvas. Outras evoluem e amadurecem. Faço-lhe festas no rosto e consigo ver ainda as feições outrora juvenis, que constituiriam o seu encanto passado, bem como o crânio adiado da morte que nos esperava a ambos. Tive vontade de chorar, por nós, mas arranjei-lhe o cabelo com carinho, mesmo desviando ela, o rosto, como se não quisesse ser tocada por mim. Pela primeira vez, vi com claridade o desespero de alguém que me queria a todo custo não perder. «-João, tens o ascendente em Balança, o que é chato.» «-Chato porquê?» perguntei eu. «-Porque em Balança significa que pensas demasiado nas coisas.» «-E isso é chato para ti, não é?» «-Porquê?» «-Porque se eu não cogitasse nas coisas, era mais fácil engolir tudo o que dizes e fazes.» Riu-se, como que se apanhada com a mão dentro do frasco das bolachas. Estava no caminho final da sua breve passagem, e desabei em choro que só a deixou sem saber como reagir. Era ela que me ia fazendo festas no cabelo para ver se eu deixava de chorar. Na cara de cada pessoa, vemos, se olharmos com atenção, o rosto de Deus, mas também a história de cada um até à hora da sua morte. Para trás deixei as birras que ela fizera só com a finalidade de estabelecer que mandava nos dois, os afastamentos intencionais, os silêncios programados, para ver se me forçava a mim a iniciar conversa, tornando-me o perseguidor, ergo, aquele que tem valor subalterno. Estes joguinhos infantis que só me mostravam que ela jogava o mesmo jogo que toda a gente joga, inclusive as pessoas do seu passado. Para quê criticar ou trazer à luz? Há que dar aos outros a benesse de serem humanos à vontade, dando-lhes também corda suficiente. Recordo o caminho que fazia, depois de a trair com outras, pelas ruas em silêncio na noite alta, porque gosto de andar a pé, e olhar para os prédios dormentes, e perguntar porque não desaba em mim o mundo por virtude dos meus pecados e falhas morais. Lamentando cada barata que agoniza com alguma extremidade esmagada, até que a morte atrasada se apresse a vir, e a libertar. São às dezenas no pavimento cinzento da noite de Lisboa, pobres bichos que como nós, não pediram para nascer e para serem considerados pouco mais que merda ambulante, por quem não perde alguma vez, meia dúzia de segundos a pensar. As baratas, penso eu, de certeza que nunca observarão uma fêmea que se retrai emocionalmente porque não observa um comportamento que idealiza, na sua contraparte. Só mete o pezinho na piscina, se a contraparte já tiver água até ao joelho. Uma que foi Natal passado, dizia-me que as mulheres inventaram o amor. Não tenho a mínima dúvida. O amor como um paradigma propagandístico que visa fazer baixar as defesas, ou o espírito crítico. Precisamente como o ventríloquo faz com o boneco onde enfia a mão. Quando as coisas não correm como querem, ou de acordo com as rotinas ou padrões que assinalaram noutros, tornam-se frias, cabras, distantes. Deixá-las ser humanas. Deixá-las contorcer esmagadas pela sua incapacidade de trata cada um como o primeiro. Estamos condenados a levar com a merda que os outros lhes fizeram, ou elas fizeram a si mesmas. Chegava à minha porta e encontrava o senhor Alberto Lopes, muito parado e olhado fixamente para o sinal triangular de perda de prioridade, bem no meio da estrada. Então senhor Alberto, como vai isso. Eu ligava para a PSP que ligava para a filha dele o ir buscar. ‘-No meu julgamento perante a Providência, vou pagar por tudo o que fiz.» A discussão era velha. Eu dizia que Deus perdoa tudo, e ele dizia que não, que tinha encornado o seu primeiro sócio e que por isso, Deus aguardava por ele com a palmatória do Seu Ódio. Eu ainda argumentava para que serviria um Deus que não é capaz de perdoar isto de sermos humanos, o quer que signifique esse cliché. Mas invariavelmente chegava o carro-patrulha, onde Alberto ao entrar censurava os agentes, por o carro cheirar a tabaco. Ainda com a fita no pulso, do hospício de onde se evadira para vir olhar o sinal de trânsito à espera de alguém notasse que estava vivo, ainda. «-Não chores, João.» dizia-me ela, sofrendo mais comigo que com o fim próximo. Abraçando-a, ela percebeu que eu não chorava apenas por ela, mas por ela, pela minha cadela, pelas pessoas à minha volta que significam algo para mim. Que vemos o nosso definhar no rosto um dos outros. E sim, também aquelas a quem olhámos em silêncio, na expressão da sua humanidade, menos enlevada em cogitações de suplantação do umbigo comezinho, e mais entregues às visões limitadas de olhar para esta merda toda a partir do ponto de vista que o mundo é uma coisa pessoal que acontece a cada uma. E que ninguém sabe que pensamentos segredam ao travesseiro. Tirou a bata e mostrou-se nua, no meio do corredor, que achas João? Tenho as mamas ainda boas. Rodava como bolo em vitrine, para que eu olhasse para ela e a gabasse. Tropeçava nos tubos do plasma intravenoso, e eu pensava em mim como caracol que se arrasta no gume de uma lâmina e de que é preciso continuar em frente. Sofismava que ‘elas’ eram incapazes dessa lenta anulação por amor da verdade, sempre olhando para o gajo, a ver se as coisas são feitas com ‘equidade’, justificando para si, que se resguardam para não serem magoadas. Projectando nos outros as suas próprias folias e critérios judicativos de crianças de tenra idade. A sua inadequação, provocava-me compaixão, pois no mundo cão, os ingénuos são comidos e cuspidos fora. Numa longa sucessão de casos dolorosos, em que o sujeito nunca chega à compreensão da razão de ser do comportamento dos outros. «-Sou muito espontânea, João!» «-Pois és linda!» Dançava em torno de si nua, uma ou outra enfermeira fingia não ver. O desapego não me afastou dos outros. Apenas me permite que os possa perdoar, e acima de tudo ver-me como apenas mais um a quem tenho de pedir desculpas. Dançando nu num qualquer purgatório à espera que a morte nos leve pela mão, a mim e a ela, enquanto o meu julgamento não chega. Um objecto maciço de azul industrial brilhante que cobria uma multidão de milhares de dispositivos sob a pele metálica, sensores de todo o tipo a estímulos externos, com escrita a fino dourado percorrendo ambos os bordos, escrita mais ornamental do que para comunicar algo, passava defronte meus olhos, de forma serena, como que fazendo render o tempo, tal e qual uma nuvem que se arrasta indolente pelo céu, à espera de morrer gradualmente, ou de um calmo rio à beira de uma cascata..ou que um cometa venha e desfaça esta merda toda de uma vez. A calma antes da tormenta como prenúncio de obliteração. Sabia bem, que o desapego só dura uns meses. Acordamos meia dúzia de vezes juntos, e por fim cedem, e acabam por artilhar a sua vida connosco lá pelo meio. O segredo do sedutor, isto é, daquele que joga sem ser jogado, é prender e não ser preso. No fundo, a sedução, não passa de uma arte cinegética, onde tiramos partido de os pobres alvos não conseguirem ver o cano da caçadeira, ou conceber da sua existência. Seja o que for que o sedutor alimenta, existe para negar a humanidade, de si e do outro. Isto num mundo idealista como é para cabrões como eu. Mata ou morre, com ferros matas, com ferros pereces. Um dia comes o urso, outro dia o urso come-te a ti, e por aí adiante. Isto num mundo dos realistas. Em casa dela, sentado, olhava para as paredes tingidas com cores quentes, diria que africanas. Lanças nas paredes, bonecos em todo o lado, e de todos os feitios. Pede-me uns minutos e volta com um robe, sobre a lingerie que momentos antes me negara com um -«Pára, não me excites.» Fica contente porque me levanto da poltrona e vou como glutão, calcorrear as suas carnes, transmitindo-lhe um sentimento aprazível, que decorre de ser desejada. Beijando-a no pescoço e apertando-lhe as nádegas ao mesmo tempo, tenho de ir respondendo à mesma pergunta…achas-me atraente, queres-me comer, gostas das minhas mamas, já viste algumas pernas assim? O contraste da sua pele escura com a minha, destoa não fosse o calor que ambas trocam em cumplicidade herege. Roça seu corpo no meu, em espasmos que acho serôdios, empurra-me desajeitadamente para a poltrona, e rodando a cabeça como fã de heavy metal, chicoteia-me o rosto com o seu cabelo esticado e pintado de vermelho vivo. Desvio ocasionalmente o rosto das chicotadas repetidas, lembrando o quão estranhas são todas as pessoas, especialmente naquilo que fazem para tentar seduzir o outro. Ou excitá-lo. Esta deve ter visto isto nalgum filme, ou alguém lhe disse que é uma boa ideia. Jogara chicken comigo. Ou roleta-russa. Tentara aferir o meu ponto de suspensão, o quão pelo beiço estaria, instrumentalizando a sua atenção, como as crianças fazem quando descobrem que conseguem controlar o fluxo de urina. No mundo do jogo, perde quem se prende. É preciso arte para prender. É preciso compreender o universo e as suas leis imutáveis. Uma delas, é que o que brilha, é desejado, e não é por ser necessariamente ouro. Desde ver quem beija de olhos abertos, a reter as expressões claras de desejo, para que o outro não sinta ascendente sobre nós, e passe a controlar habilmente o acesso à sua intimidade. Ou, o contrário, bombardeando a nossa periferia dos sentidos, com promessas de amor e sexo irrestrito e incondicional, para nos arrastar para um contexto, onde sem ele, ela, o outro, a vida parece cinzenta sem a sua presença. Invariavelmente, sempre que caçando, e olhei para trás, lá estava o cano serrado de uma caçadeira nas mãos do que eu pensava caçar. É uma questão de disciplina, de não permitir que o que é e o que devia ser, não se misturem ou venham alguma vez a conhecer. As coisas são como são. Como deviam ser é na minha cabeça. As pessoas deviam ser mais dignas umas com as outras, eu incluído, pois Deus me livre, não sou nenhum anjo. Mas não. Calculamos, aferimos, julgamos, tudo o que achamos ser melhor para as nossas vidas. Para nós. Damos carne ao esqueleto instintivo, por via de justificações sofistas, que toma decisões por nós. A uma que havia perdido a atracção por mim, por se achar melhor, por não ter espelhos em casa, por ser solicitada por outro macaco mais bem vestido e imbecil como ela, dei com ela a dizer às amigas que havia perdido a ligação por mim, pois havia dado com nós os dois em minha casa, ela a brincar com o Candy Crush e eu a ler blogues no computador. Nem lhe passando pela cabeça que o nosso divórcio começara muito antes, e que apenas por gostar dela fui permanecendo. Mas como? Existe um gostar que não é suficiente para ficar? Claro. Um gostar do indivíduo que só nos anula, atrasa e empobrece. Mas que não conseguimos resistir, pois é da pessoa que gostamos, defeitos e tudo, rezando semanalmente para que nos largue, porque nós, por falta de amor próprio ou medo da dor que sabemos vir no correio, não conseguimos largar. Nós tínhamos acabado assim que percebi que aquele brilhozinho nos seus olhos, decorrente de me achar um prémio, desaparecera. A primeira vez que fodemos, olhei para ela, e ria-se, de felicidade, de contentamento. É quando sabemos que o outro está ali com todo o seu ser, sem reservas, e não quereria estar em lado algum, a não ser ali. Aquela altura, e também depende do tipo de gaja, em que se dissermos que vamos assaltar um banco, ela salta para o carro para meter o motor a aquecer. Mas o tempo, roeu essa imagem de mim, nos seus olhos. Tal e qual como a Esfinge por milénios de sol e chuva e ziliões de pequenos fragmentos de areia soprados contra si. Contra mim. A minha imagem a seus olhos é também minha responsabilidade. Mas acredito, lá está, mais no que deve ser, do que naquilo que realmente é. Que uma tshirt rota por a puxar do estendal, desbotada por meia dúzia de lavagens, não me deveria desqualificar, pois só o ‘amor’ importa, não é? Infelizmente o rouxinol não canta assim. O macaquinho ou a roda de hamster do outro lado, interpreta esta negligência como um sinal de desleixo, de que eu não tenho amor próprio suficiente para me preocupar com a minha própria imagem. Ergo, o segredo está sempre no mesmo, somos bichos de imitação, e se algum não acredita em si próprio e O DEMONSTRA, ninguém consegue acreditar nele. São portanto, as relações, análogas a uma peça teatral contínua, de gestão de imagem, de controlo da percepção do outro. De esconder o facto de que nos peidamos, arrotamos sem querer, ou que a casa de banho cheira mal depois de sairmos. Que não ganhamos trocos suficientes para parecermos autónomos, ou a braços com contas ao fim do mês, que não conhecemos o restaurante da moda, exprimindo assim um anedótico conhecimento do ‘nosso’ mundo e tempo, que nos torne válidos, o quer que seja que isso signifique. Escolhemos idiotices para dizermos uns aos outros, e fingimos profundamente esse acreditar em nós, essa proactividade e convicção, para sermos apreciados e valorizados, uns pelos outros. Jogos de congruência, onde uma morde o ombro quando a como por trás, outra, sendo introvertida, fingindo gostar de foder em locais públicos. O olhar atento consegue perceber quando é a manipulação do outro, da nossa percepção, até ao ponto em que a intimidade nos prende, e ficamos como peixe preso no anzol. Porque são os nossos sentimentos que nos prendem. O velcro. A rejeição, a mentira, quase nunca são relativas à nossa pessoa em concreto. São expressões do macaco interno, demónio camuflado de livre-arbítrio. Tal como, e aqui jaz a tua ilusão, o apreço, a aceitação, o ‘amor’. Reflexos de reflexos de reflexos, reflectindo outros reflexos parecidos. Apertando a realidade pelos colhões, o real não passa daquilo que os teus olhos não querem ver. Porque é preferível viver na realidade que a nossa mentalidade inventa, que na crueza do que seja o mundo, naquilo que é. O véu, por cima de todas as coisas. A mão do titereiro enfiada no cu da marioneta. E a pergunta mantém-se, quanta verdade, és tu capaz de suportar? Que por exemplo, o Rodrigo, que é uma jóia de pessoa, se fartou de chorar à noite, e com mentalidade de coaching negativo, divisou um plano de conduta ao contrário do que sempre tivera. Trata de forma bruta e rude as tipas com quem se envolve, engodadas pelas suas certezas absolutas e exuberantes, fodendo esta e aquela, de encontro a um guarda-roupas, largando-a inerte no chão assim que se vem e vai ver a bola para a televisão da sala. O seu instinto seria de a abraçar e beijar, mas sempre que procedeu assim, nele cagaram. Senta-se na sala a ver a bola e a lamentar os modos deste mundo, e a incongruência que sente no fundo. Mas o comportamento é reforçado, porque conseguiu reduzir a taxa de abandono. A sua dúvida pende entre a rudeza e a assertividade nova, que introduziu no seu comportamento. Ou a Ana, que finge, se esconde, do mundo e das pessoas, desde que se conhece como gente. Vive apenas através da personagem superficial que lhe garantiu apreço dos outros ao longo dos anos, e como acha que não é passível de ser amada além disso, anula todas as outras expressões do seu ser, para se focar na sua percepção que garante resultados. A sua ficção. Mas é incapaz de se anular completamente e tenta por todos os meios procurar a validação exterior que lhe permite viver com o seu pálido reflexo, a aprovação dos pais e da família, sobre esta pequena parcela de individualidade artefactual, ou para o seu grupo de amigas promíscuas e culturalmente indigentes, amarguradas por a passagem dos anos as ter privado das opções sexuais, de antigamente. Porque sabe não merecer melhor. Sabe o logro que é, a traição que opera a si mesma, mas não consegue ser diferente. Estica-se como criança, sobre mim, espetando os cotovelos no meu peito, provocando dor. Olho para ela perguntando-me se sabe que os cotovelos assim como adagas, magoam, se não tem consciência ou faz de propósito para ver a minha reacção. Pede-me para lhe programar a box da tv, pretexto que me levou a casa dela, a seu convite. Ao lado da box, uma caixa de preservativos e dois tubos de lubrificante, um com cheiro a menta e outro a baunilha. Abraça-se sôfrega a mim, e enche-me os ouvidos com a língua, no que considera ser erótico ter muco auricular, não percebendo que a temperança salivar é bem mais aprazível. Mas não a vou envergonhar dizendo que está a fazer algo menos bem. Suporto como soldado, mas começo a reparar nos objectos pendurados nas paredes, que não percebera antes. Um é um pentagrama. Os bonecos que eu confundira com a parafernália que as gajas metem nos vários espaços para efeitos de enfeitar, eram bonecos espetados por agulhas, cravejados de alto a baixo por lancinantes lacerações por via de minúsculos floretes. Algo deste género estava prometido que me acontecesse. Andar com tanta mulher e eventualmente cairia nas mandíbulas de um predador além dos arrufos de namorados. Um predador bem mais sinistro e investido na captação da alma dos visados, petrificados em máscaras que enfeitam as paredes. Bem me enganou, fez-me sentir tão à vontade com a aparência de um lidar franco, sem fingimentos ou artifícios que se cheiram a léguas, e que nos levam pela suposta intenção que os anima. Engodado que estava pela pureza e honestidade de uma relação não predatória ou calculista, como se fosse possível a um humano considerar os interesses do outro tanto como os seus…que não vi os sinais de perigo, a frieza de análise, os olhos vermelhos, e a voz sedutora de mão dada com a fácil sensualidade com que me acariciava o rosto. As nossas ficçõezinhas construídas para engodar os outros e a nós, pois somos uns filhos da puta a verter ouro falso, para manipular a nossa percepção de nós mesmos. De forma análoga, a capacidade de prender o outro, com os nossos afastamentos, as nossas promessas, os nossos corpos. Dobramos os sinos à morte das impressões iniciais, quando vemos sinais no outro que já não nos trata com tanta deferência, com tantos sinais de que nos vê como algo de tão valioso no mundo. Quando a aparência de desilusão percorre o seu olhar, lamentando a perda de tempo do seu investimento emocional. Quando nos dá por garantido, uma desilusão garantida. Quando vemos o reflexo do nosso rosto, nos olhos do amante, devolver a imagem grotesca da nossa face, o único reflexo que nos importa, não do espelho, mas de quem queremos para nós. O longo limbo do nosso medo de haver manipulação ou fingimento por detrás dos olhos fechados que nos beijam, que espreitamos para confirmar se os nossos medos são reais. Viciamo-nos nas fases de enamoramento, no viço inicial que exige de nós as melhores ficções que forçamos goelas abaixo, porque queremos acreditar, que vivemos o amor, que amamos, mesmo que seja só a ressaca da dopamina e oxitocina que nos torna a vida de drogados, um pouco mais suportável e afastada do lento ocaso prometido às nossas vidas. O velcro, com uma face suave, e outra agreste, a procura dos contrários e o vómito dos semelhantes. Com força se cortam as ligações emocionais entre quem se amou e partilhou segredos. Até ao momento da ruptura, que é o momento em que um, se decide colocar a si em primeiro lugar, sobre o pacto anteriormente contraído em eflúvios de loucura temporária. Gerimos o velcro das nossas relações, para não mergulhar de cabeça no mar largo. Para ter alguma ilusão de controlo, controlo que não passa de ilusão. Literal. Escolhemos a mentira, como o menor de dois males. Rodeado de velas acesas, refastelo-me com o verter do meu sangue sobre a minha pele, e um ruído crocante e final separa a minha cabeça do meu torso, inebriado pelo calor do mijo e do sangue do meu corpo desintegrado. Que a minha morte te seja aprazível, ó puta. No fundo fazes-me o favor que eu pretendia, a morte como distracção para a vida. Como aquele herege com tons de aço vítreo, à chuva na rua debitando salmos de arrependimento. A luz solar mudando de matiz consoante os anos, queremos a felicidade adequada, dançar em torno do abismo, fingindo que nunca nele cairemos. Lembrei-me de certa vez, enquanto aguardava pela minha namorada da altura, na zona da restauração do Colombo, (ou seria do Vasco da Gama?) de olhar para as caras das pessoas que passavam, e julgar que estava a ver o rosto de Deus. O Seu rosto, é o rosto de nós todos reunidos. Ideia parva, eu sei. Tenho um amigo que escolhe propositadamente ‘as malucas’. Todos aqueles indivíduos mulheres, que de uma forma ou outra apresentam traços de neuroses, psicoses, traumatoses, pancadoses. É um fiel crente de que maluca na cabeça equivale a maluca na cama. Eu discordo, em parte. Não é bonito olhar o abismo, e percebi isso enquanto ela me chupava a pila e repetia ad nauseam, que a minha pila era pequena. Já anteriormente me tentara menorizar dizendo que sou baixo, apesar de ela ter 165 centímetros de altura e parecer uma anã ao meu lado. Calo-me, escuto, observo, analiso. Concordo e amplifico. Que tenho de usar banquinho para a comer de costas. Que me pode usar todo o dia às costas, e chamar-me ‘mochila’. Aproveita o facto de eu estar sentado no carro, teso, mas com metade da dita, espreitando para fora. Que sabes João, eu gosto de pilas grandes, e o meu primeiro namorado tinha uma que parecia a cauda da Godzilla. Direito à jugular. Crente de que tudo o que sente é correcto, acha que me abana, que me provoca uma reacção emocional, tocando nos pontos tradicionais da frágil masculinidade. Concordo e amplifico. Digo-lhe para ver os pontos positivos da minha micro pila. Nunca mais precisará de comprar palitos para palitar os dentes. Que tem a higiene oral garantida, que lhe permitirei usar a minúscula coisa como fio dental. A redução ao absurdo, cala-a por instantes. Não arranha com os dentes. Pára algumas vezes para olhar bem para o meu falo, como que matando saudades de algum velho conhecido de quem se esqueceu das feições. Volta ao ataque bocal, quando exclamo meio murmurando: ‘-Que bom.’ Não posso censurá-la moralmente. Ou melhor, não devo. A estupidez da coisa é tal, que sei que na cabeça dela faz sentido. Mesmo que eu retribuísse infantilmente, fazendo pouco de algum seu atributo. Se lhe dissesse que por vezes passo alguns momentos a avaliar se o seu feitio emana de alguma deficiência ou trauma, ou de uma original idiossincrasia individual. Goza com o facto de eu morar com a minha mãe, que quer homens independentes, não conhecendo de mim muito mais que o carro onde estamos, e a personagem que represento para ela. Um chorrilho de lugares-comuns, repetidos até à exaustão nos escritórios, nos refeitórios e nos filmes de Hollywood. Apesar de tudo, o broche agrada-me e sei lá porquê, dou por mim mais entregue a lembrar Luísa, que a celebrar a rega do meu nabo ressequido. Luísa era a mulher de um amigo meu, que o rebaixava sempre que tinha hipótese, de maneira a que ele não a largasse. A coisa ficou pior quando ela ficou mais gorda, após o filho de ambos, e ele acabou por a largar, não pelo aumento de gordura, mas porque atingiu o ponto de saturação em relação ao que hoje pomposamente se chama de ‘assédio moral’. Pura e simplesmente era uma cabra, por insegurança. Há sempre uma desculpa, não é? Certa vez, descendo pela avenida que ladeia as Amoreiras, após recolha do seu marido que tinha estado internado no hospital, fez a avenida toda, a conduzir e a queixar-se de que ele não a satisfazia na cama, tinha o sexo pequeno, isto e aquilo. Senti-me desconfortável, mesmo sabendo que exageram quando apanham os melhores amigos do marido, a jeito de ouvir. Eu já farto, e não estava casado com ela, perguntei porque é que me contava assuntos do foro íntimo, que não me interessavam, e que me custava estar a ouvi-la falar assim do meu amigo. Indignada, mas em silêncio, passou o resto da viagem a tentar seduzir-me para a sua causa, vendo que a sua manipulação não surtira efeito em mim. Baixo, pequeno, menino da mamã. Que mais irá ela usar, por insegurança, ou manifesta má formação. Que diriam de mim, as imaginárias pessoas a quem eu dissesse que tinham a cona esbardalhada, as mamas descaídas, ou a vida afogada em mágoas por culpa própria? Que diriam de mim as pessoas, se eu esfregasse na cara das indefesas fêmeas, o total âmbito da sua responsabilidade, a total ausência de método de pensamento que não determinado pelo momento, ou a incapacidade de entrega e crença, em amores após os 30 e poucos anos? Que eu era um cabrão, evidentemente. Porquê tolerar então, esta malta, que a encoberto de ser fêmea, anda por aí a sentir que faz bem, cuspindo vergonha tóxica para os outros? Daquela vergonha que por mais que esfreguemos com palha de aço, não nos sai do corpo e da mente? Cujo resultado, é algumas vezes, o fim do túnel, cuja claridade é o flash do disparo da pistola com a bala em têmpora mole. Sim, de certeza que as estatísticas revelam alguns casos de gajos que se mataram, por terem sido desqualificados, pela pila pequena, pelo feitio plácido, pelo falo flácido, pela reduzida estatura, pelo azar genético? A nossa vida é um eterno, até à morte, recreio de escola, aparentemente harmonioso, mas que ao olhar atento aparece como um cruel terreiro, de terror, violência, manipulação, hierarquias. O contexto não muda, só as aparências. O tratamento ostensiva e directamente hostil, das mulheres que não nos desejam, como castigo aprendido na escola primária em que as meninas não brincavam com uns, e brincavam com outros, guardiãs da aprovação e atiçadoras, por vezes, dos que tinham na violência, algum papel útil no seio da pequena macacada. Assim estava esta, a repetir padrões serôdios a partir do seu sentir. Sob o sentir bem, tudo se justifica. O macaco interno ou a roda de hamster, a encontrar racionalizações para a decisão tomada a priori e sobre critérios inconscientes q.b. para o indivíduo. Ao apelo de um colega de trabalho, a justificação da traição porque o marido ou namorado não lhe deram a atenção devida. Encornar a esposa, porque não lhe dá sexo há um mês e portanto, por ter necessidades, há que recorrer a transitários externos. Todo um reino de desculpas, que nos vedam a imagem de nós mesmos como marionetas, e, de um ponto de vista moral, cabras e cabrões. Os comportamentos de desqualificação dos outros, como ferramenta inata para o corte emocional, numa rapsódia de deve e haver existencial, onde todos, todos fingimos, perceber e jogar bem o jogo. Isto não é um lamento, apenas um murmúrio de desejo, que fosse diferente. Especialmente, que não se debitasse até ao vómito, as loas ao ‘amor’, com música barata e sofrível, onde se declara a um outro, que se é a alma e coração, como se isso espremido fosse algo mais que outra forma de bajulação exagerada do sentimento de apreço que vamos sentindo uns pelos outros. Como se a tipa com filhos, alguma vez tivesse lugar liceal para o novo amante, que lhe disputa o coração com o ex marido, os filhos, os cães e gatos, os pais, os amigos…seja qual for a ordem que sofrem todas estas variáveis. Coração quarentão, é um túmulo adiado. Mas, como, pelo mal e pelo bem, me recuso a deixar de rir com a situação, as tentativas de me mandarem abaixo, passam ao lado, pelo menos o suficiente, para não deixarem de ser algo mais que argumentos para textos. Esgotado o reportório, perguntam-se como me mantenho de pé. Como posso ser tão confiante, mesmo após as críticas, os ataques de vergonha. Como não vacilo, onde tantos outros, após olharem directamente para a Medusa, ficaram petrificados. A resposta é simples, não jogo com os critérios delas. Bem fodido estaria. E aí lembrei-me de Flávia, que fazia broches bem melhores, e não é cabra. Ela dizia não entender porque não recebia o apreço, o valor que achava merecer, por parte dos homens, porque sabia pintar paredes, escrever argumentos, construir cenários cinematográficos e rebocar muros. Ela e eu sabíamos a resposta a esse desabafo. Mas não o dizíamos em voz alta, para não a magoar. De modo que a questão se mantém, para tu que me lês. Podes responder, porque foste tão cabra para mim? Que fiz eu concretamente de tão errado, que merecesse as putarias infantis que praticaste? Que crime justificou o castigo? O que te leva consistentemente a ser uma puta de merda para mim, e a esconder continuamente a mão que flagela o chicote da minha pena sob o teu juízo? És simplesmente trapalhona, ou uma má desculpa para ser humano? Ou pura e simplesmente um animal dotado de razão, mas não praticante, meramente entregue aos instintos? Ambos sabemos essa resposta. E é nela que se baseia o teu silêncio. Qualquer notícia de mim, é um lembrete para ti, do quão estúpida e má és ou foste. Uma nódoa nesse vestido branco, que o teu ego pinta para ti. Os homens não são muito melhores, não penses que isto é sexista. Somos cabrões uns para os outros. E facilmente nos esventraríamos a pedido, das nossas donas. Mas não partilho afectos com homens, partilhei contigo, e por isso é tão incompreensível, como conseguiste ser tão cruel e imbecil. Juro que não entendo. Teres o esforço de ir além, na estupidez, como que se ressabiada comigo por já não te atrair, como se a culpa fosse minha, réu, sob holofotes do carrasco e juiz, tu. Enfim, concordo e amplifico. Deixo que se enforquem com as suas próprias personalidades. Finjo-me de parvo, morto. E observo. Avalio o indivíduo que acha que ainda estou encadeado pelo brilho do efeito da sua beleza nos olhos do meu desejo. Além da pantomina, observo-as quando não estão a representar, distraídas. Fazem parte da vida, vês?! Como uma paisagem que se desenrola à minha frente. Uma paisagem que me chupa a pila. Fui a Pombal buscar uma máquina de costura, que alguém vendia barato, por fecho de actividade. Dá-me mais prazer limpar e fazer a manutenção minuciosa dos equipamentos, que propriamente a função a que se destinam. Cheguei antes da hora e após a transacção, enquanto falava com o casal que me vendera o equipamento, reparei num cão do outro lado da vedação, imóvel a um Sol inclemente. Só a custo reparei que não tinha olhos, comidos pelas moscas e pelos corvos. Notei também que era velho e o cadáver estava gordo, mas ainda assim, fiquei a olhar ostensivamente para as pessoas que em frente ao cadáver, nem pareciam ter consciência do mesmo. Que merda de morte, passando horas sem alguém saber que se é morto. Não cheirava mal, pelo que o cão morrera recentemente. Não sei porquê, não mencionei directamente o caso. A empresa que fechara portas era uma empresa de caixões e a máquina de costura servia para costurar as imitações de seda e veludo das caixas onde se metem os mortos. Em frente à fábrica, havia uma outra de lápides, e pelo que me apercebi, toda a especialização naquela zona, na Guia, era a indústria da morte, de todo o tipo de apetrechos e liturgias em torno da mesma. Eu não sabia se o cão era deles ou de um vizinho. Mas sabia que me queria vir embora o quanto antes, dali. Um pouco antes de Peniche, toca o telefone, e uma Sheila com quem eu andara a trocar mensagens, marcava um encontro. Pela altura da minha conversa pouco convencida, sabia que se não alinhasse no encontro, mesmo não me apetecendo, a potencial cachopa, cortaria comunicação. Anuí e combinei às 20H30 em frente ao Parque Urbano. Pelos vistos agradei-lhe, pois não arranjou nenhuma desculpa para se ir embora, e fomos falando até às 2 da manhã, já dentro do meu carro porque entretanto a noite ficara fria. A mesma conversa de sempre, sobre a excepcionalidade do seu carácter, e o olhar de enfado quando digo que as redes sociais tornaram os telefones das mulheres, em sacos de pilas, e os homens em comodidades. Começámos nos beijos nas bochechas e eu rapidamente evoluí para tentar beijar a sua boca. Tenho um dente do siso para arrancar e calculo que a minha boca cheirasse pior que um cão morto. A pergunta que mais fazia era se eu me sentia atraído por ela. Tanto o repetiu, que por compaixão, lá lhe fui enchendo o ego, como se fosse um pneu recauchutado. Claramente precisava de sentir-se desejada por outro, para se sentir bem consigo mesma, e poder lidar com a passagem inexorável do tempo. Estávamos a despedir-nos um do outro há uma hora, quando ela sai disparada do carro, e noto que de costas, no seu vestido vermelho, havia uma enorme mancha de algo molhado. Foi-se embora no seu carro a todo o vapor, sem olhar para mim que como cromo, dizia adeus para o éter. Bate-me de repente, que se tinha o vestido molhado, como estaria o banco. Olhei para o banco e uma enorme mancha de humidade, escura no banco escuro. Que caralho era aquela merda? A minha primeira ideia era de que seria algum líquido orgasmático decorrente de eu brincar com a sua orelha na minha língua. Passsei dois dedos e cheirei. Era inequivocamente, urina. Mijara-se no meu carro sem qualquer justificação que me ocorresse. «-Então, João, conta-me, quem te magoou tanto?» Tinha os lábios pintados de preto, como aquelas miúdas góticas dos anos 90. Ficava-lhe bem, o preto nos largos lábios carnudos. É muito bonita e bem feita. E apesar de apostar num aspecto alternativo, com botas da tropa envernizadas e palmilhas fofas de marca para não magoar os pés, bem como um coração fofo na biqueira de aço submerso, das botas de marca cara, era uma pessoa aprumada. Era e é, que felizmente está viva. Já estou tão cansado desta pergunta que já nem me dou ao trabalho de asfixiar a frustração com a almofada da polidez. É que já não me indigno. Tenho a fama, que me interessa o que os outros pensam sobre mim. Mas ela, havia sido bem disposta comigo, se bem que a início, um pouco arrogante por sentir que os meus cabelos brancos são uma qualquer expressão de desvalor no mercado na carne. Leu mal em mim que eu andasse à procura de algo. Pois quem procura está em carência, e quem procura faz aumentar o valor da mercadoria, do bem que se tem para a troca. Estranho como a beleza ainda tem tal efeito em mim, mas já não me controla como antes. Desta feita, sou eu que não quero entrar num contexto onde conheço quase todos os cantos à casa. Será que é isto envelhecer? Perder a pouca paciência que se tinha? E no entanto não consigo parar de me meter com as mulheres que se metem ao meu caminho. Como se uma fornalha nuclear em fissão constante num qualquer submarino atómico ao largo dos Açores, afundado mas com cadáveres lá dentro nas abissais profundidades a largar radiação. Escorpião escorpião. «-Queria uma tshirt dos Type O Negative que tem ali na montra.» - disse eu, aliviado por encontrar merchandising a preços decentes na capital do império. Vou ter de a poupar, ia pensando comigo, pois uma tshirt a 10 euros, o algodão deve ser uma merda. Ela traz-me um pano de algodão pesado, e eu ao toque vejo logo que a peça de roupa é como uma mulher que amamos e queremos usar durante muito tempo. «-Grande banda, da velha guarda.» Foda-se, da velha guarda, penso eu. Parece que foi ontem que fui comprar o álbum deles acabado de sair, ali pelos lados do Rossio. Entretanto a banda acabou há quase 20 anos. Olhei para ela e disse «-Não digas coisas assim, que me fazes sentir velho!» e ri-me. Ela olhou para mim com espanto e reserva, por a ter tratado por ‘tu’, não fosse eu ser um maluco qualquer, um rebarbado. Mas como me viu a olhar para o lado e a rir sozinho, percebeu que eu não estava na performance de engate, que é aquela personalidade ensaiada que todos temos quando queremos engatar outros, deslumbrar com uma ficção nossa. «-Na altura que estavam na moda, eu não lhes achava muita graça e demorei a entrar no trabalho deles.» - acrescentei eu, voltando à conversa com ela. «-Eu ouvi-os através do meu irmão que era metaleiro, e agora é contabilista.» e riu-se ela, com a mesma presença de espírito com que eu me rira antes, e acabámos a rir os dois. Disse-lhe que sabia porque se ria, porque o contraste da mudança é tão incongruente. Que na faculdade os gajos que escreviam na revista de Letras, também achavam que eu era um punhetas vindo das franjas de Lisboa, e que por não ser de Literaturas era um arrivista, um cowboy. A maior parte dessa malta agora é funcionário público e tem gosto especial por conhaque e brandy. E eu, 1400 páginas do quer que seja, escritas à mão. «-Escreves?» pergunta. «-Não, expresso-me a preto para papel, de formas que considero bonitas.» Ela fica de novo séria a olhar para mim, com o seu cabelo preto preso em rabo de cavalo, olhos grandes castanhos por detrás de uns óculos de hastes pretas e lentes quadradas. Uma saia escocesa vermelha berrante a condizer com o coração nas botas, e uma blusa branca sob um blusão de cabedal motoqueiro dos anos 50. A imitar o Schott Perfecto. Clássico. Fazia-me lembrar as suicide girls, outra moda passada, revista por mim nas tatuagens dos seus braços. Tinha um relógio da Casio, vintage, digital, todo preto menos o mostrador digital. «-Eu também escrevo.» - diz-me ela. Digo-lhe que fico muito feliz por ela, que escrever-mos para a gaveta hoje em dia, é a melhor forma de recuperar alguma sanidade da imbecilidade corriqueira actual. «-Gostava de ler algo teu.» disse-me, depois de uns 15 minutos a ouvir-me falar sobre a minha preferência pela narrativa intimista em forma de first person shooter. E eu respondi «-Viuva Profissional ponto com. Tenho aí alguns textos.» Levei duas tshirts, e ao sair ela veio ter comigo à porta sorrindo para um cliente, olha podes dar-me uma opinião um dia destes? E passou-me uma resma de folhas impecavelmente brancas, dactilografadas com um preto intenso, bem melhor que o da minha impressora marreca. «-Epá, não ando com muito tempo para mais leituras…» «Vá lá, eu pago-te um café e dizes-me o que achas!» Acedi e trocámos números. Li aquilo no comboio. Ou melhor, metade no comboio, metade à noite, em casa sozinho. Muito bom, impressionou-me bastante. Muita maturidade para a sua idade, e era uma pessoa cuja escrita revelava uma indagação natural e sombria sobre as coisas do mundo. Sem aquelas superficialidades de que sofremos na vida e ultrapassamos as barreiras, ou de frases hermeticamente fechadas para parecerem complexas para o olho que nelas não encontra sentido, sem arriscar uma ideia estruturada sequer. Não, esta ia ao âmago da inquietação. Lembro-me de estar a ler, e a pensar que sempre procurara uma namorada com uma vida interior assim, alguém com quem eu não tivesse de fingir ser outra pessoa, como quando queremos engatar alguém e desempenhamos uma personagem. Uma namorada que ao olharmos o mar e eu tivesse uma tirada das minhas, como «-Estás a olhar para o maior cemitério de navios da Europa.» apontando com o dedo para o Bugio, acenasse que sim com a cabeça e se deixasse inebriar pela consequência da minha palermice. Ao invés de meter mais uma moeda no mealheiro da minha desqualificação. Não sendo pretensioso, alguém em que eu não tivesse de amarrecar as costas para estar na sua casa. Porque é que me aparecia agora, alguém assim, e não antes? Deus parece ter uma veia sarcástica. Combinámos ir ao bar do Trindade, perto de onde trabalhava. Queimei a língua no café, e ao ouvir a sua pergunta, demorei mais do que é normal, a responder. «-Então, João, conta-me, quem te magoou tanto?» Lera o meu blogue. «-Como assim?» perguntei eu, fazendo render o tempo, testando a sua impaciência para ouvir a minha opinião das suas páginas. Do meu lado esquerdo, uma vitrina opaca devolvia-me o meu reflexo, e eu vi a minha cara, pesada, bolachuda, com os olhos carregados, e desejei conseguir evitar esta postura de velho gasto que não sou. E respondi-lhe de acordo, «-É inteligente, mas deslocada essa pergunta. Se calhar a resposta é ‘todas’.» «-Deslocada porquê?» - devolve. «-Porque o motivo da mágoa, não é o terem ido embora, mas a forma como o fizeram. A malta pensa que os homens sofrem por causa da rejeição. Do se irem embora. O que magoa mesmo, é a forma pouco humana com que a maioria trata os outros nestas situações.» «Acho que percebo, mas dá-me um exemplo.» diz, com alguma curiosidade. Eu não ia estar a expor o rol de encontros e desencontros, como amante infeliz, e por isso optei por um exemplo genérico ou metafórico. «-Eu compreendo em parte essa forma cruel de lidar delas comigo…Têm de ser ásperas, para se desligarem emocionalmente, porque se convenceram de que sou algo a afastar, para se poderem afastar, a crueldade e a estupidez deve parecer-lhes lógica, como forma de materializar uma decisão já tomada. Mas do outro lado, o outro sente-se detentor de alguma forma fatal de lepra. Mas eu entendo. Olha é como o gajo ou gaja que mata bezerros e tem de os ver como montes de proteína comestível, e não como crianças que gritam de desespero degoladas e penduradas por uma pata a escorrer.» «-Ew, que gráfico!» exclama ela. Eu baixo os olhos, desiludido com a primeira frase infantil que escuto da boca dela. Parecendo que percebe, atalha de imediato, «-Acho que entendo. O que te custa, é a negação de discurso e acharem que não entendes, e que por isso têm de vestir a pele de cabras. Como o meu avô lá na terra, não se pode dar ao luxo de se afeiçoar às ovelhas, que mata na Páscoa, porque senão não as conseguia matar.» A profundidade estabelecera-se entre nós. O silêncio também. Eu fiquei com aquela palavra a soar na minha cabeça, ‘matar’. Era essa a imagem que eu via na vitrina opaca. Uma pálida sombra do que eu era, à procura de recuperar a alegria perdida entretanto, no pouco sangue que me sobra das sucessivas degolações. Perdido, à minha procura. «-Que achaste dos meus textos.» «-Gostei, imenso, tens muito talento.» Eu acreditava no que dizia e ela no que ouvia. «-Se bem que falte um capítulo.» acrescentei. «-Falta? Qual?» pergunta curiosa e expectante. «-Aquele onde nos apertamos abraçados numa qualquer profundeza abissal irradiando radiação que mate todas as memórias em redor.» Fiquei parado, vendo-a pelo canto do olho, e esperando que me desiludisse e fizesse aquela cara ‘wtf’de estranheza e ‘cringe’ e o diabo a sete. O tempo e o silêncio decorreram com desconfortável monotonia, até que ela disse, «-Esqueci-me da caneta ali em casa, vamos lá buscá-la.» «A mulher é o maior detector de fraqueza. Como tubarão alacre e sedento, fareja nosso sangue à procura das vulnerabilidades que nem temos consciência de possuir em nós. «-Ama, sê romântico!» dizem as vozes de todos os quadrantes, num apelo a que o cordeiro entre na boca do lobo. A mulher é o maior predador ao cimo da terra, e tal como a orca, apenas come as partes da presa que lhe interessa, a língua da baleia, o fígado do tubarão-branco, a cria da foca. A mulher vive do coração degustado, da auto-estima de outro ralada, da ilusão de ser algo mais na vida que uma massa em movimento constante sob as águas, em busca do seu interesse próprio, com umas guelras que a fazem morrer se alguma vez parar. Com olfacto apurado para a fraqueza da vítima, escolhe desde logo, se a mata, se a come, ou se lhe passa ao largo, se nenhum interesse ou ganho daí venham. Está um gajo a perceber como se manter à tona, e em círculos à nossa volta vemos o predador olhando, avaliando, sob que critérios, perguntamos para dentro. Ao fim de algum tempo, ficamos tão familiarizados e contentes por alguém parecer girar à nossa volta, que estendemos um braço para fazer uma festinha. Tornamo-nos próximos, e quando pensamos que por fim não há perigo de vida, é quando a dentada vem, directa ao coração, onde o sangue arterial mais fresco e oxigenado está. Obtido o pretendido, voltamos a ficar sozinhos, sustendo respiração para ficar à tona, com um bocadinho menos sangue que nos afaste da hipotermia, com mais um assunto para nos desviar a atenção, com mais um motivo para acreditar que nascemos para sermos apenas comida de peixe.» Não pude deixar de rir com este meu discurso, que de tão dramático parecia teatral. Onde raio fora eu buscar estas ideias? Ah, agora me lembro, um convite para uma palestra em Carregal do Sal, num qualquer clube de leitura que dedicara Janeiro a um livro meu. Ao ver uma plateia quase completamente composta por mulheres, e à invectiva de uma que me acusava de ser misógino, respondi com este discurso. A sala estava em silêncio, e os dois ou três gajos presentes estavam mais apreensivos que eu, tentando perceber qual era a recepção por parte das cachopas, para poderem mostrar adesão à opinião das donzelas, e assim, poderem aproximar-se mais do prémio. É uma estratégia, que não condeno. Contrária à minha, contudo, que nem é inteligente, confesso. Aliena-me metade dos potenciais leitores, e torna menos fluido, o fluxo de gajedo na minha direcção. Anula por completo a minha ilusória imagem de prémio, prostrado aqui neste púlpito, que o gajedo gosta de coisas altas e brilhantes. Misógino, eu? Foda-se, se não gostasse delas, falava de outra coisa. Mas entendo a invectiva da gaja que me acusou. É a forma mais fácil de me calar. De me desvalorizar, anular alguma ponta de pertinência do meu discurso. Ah odeias, fizeram-te dóidói. Ai de ti que digas coisas más sobre nós. As mais racionais dizem que não posso generalizar e têm razão. Mas longe vão os tempos em que as punha a par da biologia evolutiva, e ficava a olhar para a cara delas, onde diminuía a taxa de interesse por mim, catalogando-me como geek. Nos dias que correm, não temos o direito nem a ser estúpidos, nem a sermos alguém que tenta encontrar e partilhar respostas para os fenómenos no mundo que nos rodeia. Passo assim, pelos sítios para onde me chamam, como torpedo saído da boca de uma fragata, em direcção ao alvo e sem olhar para os lados. Ah mas os homens também são cabrões e boa parte também tem falhas de carácter, responde ela depois da minha resposta. Mas disse algo em contrário, devolvo eu. Aliás, exponho mais as minhas falhas de carácter nos textos, que as coisas más sobre as mulheres de que me acusas. A sala começa a ficar inquieta, e as caras de indignação a ficar em brasa. A promessa de peixeirada faz algumas levantarem-se da cadeira e virando o rabo para mim, sair pela única porta do auditório. Aprecio os traseiros, enquanto uma e outra vão pedindo a palavra, empolgadas pelas acusações umas das outras à minha pessoa. Uma mentalidade de grupo, que como grupo de chacais, abana a carne inerte da presa, abandonada de vida, com a violência da vontade de matar. Desnecessariamente. Em grupos de 3 e 4 ao mesmo tempo, ululam, em crescendos de ira e raiva, chamando-me nomes, rasgando livros escritos por mim, que compraram. O promotor da editora, em pânico, esbraceja, pede calma, e olha para mim com um olhar desamparado de quem nada pode fazer acerca da natureza de um ‘anormal’. Penso em mim, no que sinto, no frio e desapegado estado em que estou. Tudo me parece um filme, uma piada idiota que espero que termine, que as luzes se apaguem e eu com elas. Desapegado de tudo, nada realmente tem importância para mim, excepto, calcar mais a ferida a estas putas, polarizar mais o seu ódio, fazendo-as perder a razão pelo excesso de emotividade. De nada adiantaria notar que a nenhuma ofendera directamente. Que a uma que diga que os homens são todos x ou z, eu interpreto como sendo ela a imbecil responsável pela generalização a partir da limitação subjectiva, que ao facto indesmentível que existem homens com as propriedades x ou z. As palavras ficam com quem as diz, e às generalizações, devemos olhar com os olhos de quem as profere. Reduzir cerca de 4 biliões de pessoas a uma frase unificadora de tanta gente, só revela que a oradora parasita uma ideia negativa que a faz sentir bem consigo própria. Generalizo eu as gajas? Não. Retirar padrões acerca da minha experiência subjectiva, é generalizar? Se é, não é diferente da generalização das dondocas que me chamam nomes em micro grupos de apoio. O que há aqui senão dualidade de critérios, e asfixia da minha liberdade de expressão? Uma aproxima-se da mesa, com o punho fechado, a cara vermelha, e ao falar as palavras saem de mão dada com saliva projectada no ar. Volta para trás várias vezes, tentando mostrar às outras estar mais investida na causa comum, de se sacrificar pela missão. De bom grado me mataria, creio, ou humilharia, se granjeasse prestígio e posicionamento social. Facilmente matamos os outros, ou lhes tiramos a palavra, se algo ganharmos com isso. Para ela, eu deixara de ser humano, em parte, creio. Não conseguimos amar quem achamos feio, e eu para ela era o bode expiatório personificado de tudo o que lhe correra mal e odiava no mundo. Rio-me, com a mão à frente da boca, para não acicatar mais os ânimos, com esta verdadeira macacada, e com o sentimento tão intenso para com um tipo, eu, que apenas escreveu umas linhas num livro. Não tratei nenhuma das indignadas, de forma indigna, nem pelo seu nome, nem directamente, nem indirectamente. Teci umas frases e umas personagens, que podem servir de carapuça, portanto havia a perceber de onde vinha esta adesão emocional à causa. Além do claro espírito de grupo do auditório. Uma ou outra, pedia para falar e dizia estar incrédula, pelo linchamento, relativo a uma obra de ficção. Outra, sobre o meu direito a ser estúpido. Que não podemos mandar os estúpidos para campos de concentração onde os gaseamos até que desapareçam. Que temos de saber viver com eles, e até, lidar com o facto de não lhes podermos retirar agência ou dignidade. Que é dignidade que perdemos quando todos nos censuram, nos acusam, nos recusam o direito de sermos levados a sério ou de termos uma opinião diferente. Outra perguntando que lei havia eu quebrado que justificasse o auto de fé. O meu riso passou, a determinada altura, quando percebi o quão polarizadas andam as pessoas umas contra as outras. O que me assustou, ao mesmo tempo que me fez ainda mais reagir de forma irada e gutural ao que percebia estar em jogo. Esta corja de putas e labregos, a reboque das modas do pensamento do parecer bem, tornam a vida dos outros num Inferno, para que se sintam bem consigo mesmos. Ninguém regista esta canalhada, daqui a uns anos uma nova moda, paradigma, zeitgeist, surge e lavam as mãos como Pilatos do mal que fizeram a outros, sob a desculpa da justiça social da hora. Comigo fodem-se que nada tenho a perder. Não faço dinheiro dos livros, e por isso é irrelevante se os compram ou não. O que me irrita nem é a parolice da adesão à moda. O que me irrita é a arrogância de acharem que existe uma mundividência tão óbvia que os que não aderem o fazem ou porque não entendem ou porque se recusam teimosamente. Cerca de um terço do auditório ficou vazio, e apesar de ter os tímpanos saturados, noto que o ruído acalmou, e aguardo mais uns minutos. É como atender um cliente irritado num call center. Deixá-lo esgotar toda a energia e indignação, até se cansar, literalmente. E depois propor solução, ou algo que, ventilada a emoção, lhe pareça aprazível, e sinta que ficou a ganhar algo. No caso do texto que vim aqui comentar, continuei eu, a mulher de facto é um detector de fraqueza, porque ambos os sexos se revêem um no outro. De nada adiantaria soprar arco-íris pela peida feminista acima, iria sentir que era falsa a contrição e que ia sentir o sabor de uma vitória. Portanto, insisti. É impossível descrever um ponto de igualdade onde uma suposta reparação de ofensas feitas, é total. É um processo revolucionário em curso e sem fim à vista. Para obter vantagem na vida, o oprimido de outrora, de forma capitalista, irá sempre acenar com a bandeira que funciona e lhe granjeia vantagens. Ajuda até pensar nos outros, sempre como opressores. Por outras palavras, vemos quem somos, olhando nos olhos uns dos outros. Quando menos esperava uma espécie de remissão, foi quando as palmas surgiram. Creio que foi pelo soar bem da frase, que compensou a ofensa prévia. Mudada a percepção, fui aplacando a incisão do meu discurso, e no final, nos autógrafos, as mesmas pessoas que me chamaram nomes, vinham elogiar e tirar de esforço, é assim levei a mal, mas depois de explicadas as coisas é impossível ficar chateada com o mal entendido. Mal entendido, precisamente. Se bem que se me perguntassem de novo, de novo daria a versão directa que a, as, fizera querer ver-me morto, meia hora antes. De modo que, estando habituado, e não me importando que me odeiem, estava relaxado e até divertido, especialmente com a que tanto vocalizara de forma húmida contra mim. Aproximou-se e estendeu de forma constrangida o livro para que eu o assinasse. Perguntei-lhe o nome e escrevi «-Obrigado Magda, pelo apoio em forma de abraço que testemunha a comunhão das almas.» Quando leu ficou ainda mais constrangida e ruborizada. Apeteceu-me perguntar-lhe se não era eu a mesma pessoa, que tanto a irritara. Quando saíamos do auditório, e em minha volta, as mais indefectíveis finalmente se fartavam do meu sorriso, ela veio ter comigo, naquele som típico das botas de cano até ao joelho, sob soalho de pinho encerado recentemente. Agradecer-me a dedicatória e fazer-se convidada para algo que eu conseguisse propor. Ao ver a serra ao longe, bebia um gin adocicado intermitentemente pelos beijos que a boca dela depositavam nos meus lábios. Fez uma fita, e divertindo-se, de forma malandra, fintou a minha boca e colou seus lábios no lóbulo da minha orelha, perguntando se queria ir a casa dela, provar outro gin. Como não respondi, e só me ri, perguntou porquê. E eu respondi, vocês são todas iguais.» Num dos treinos de pugilato, dei comigo a desconcentrar-me e a vogar para longe da minha localização física. Uma das coisas que mais aprecio no boxe, é a inexistência de karma ou expiação. O erro cometido é de imediato pago. Não há cá esperas, não há cá ficar à espera da chegada do Reino dos Céus para que a vingança seja do Senhor, seja um cabrão que nos abrandou a vida, seja uma gaja que nos dilacerou com comportamento merdoso, camuflado pela ilusão de que supostamente nunca mais nos voltaremos a ver, que somos descartáveis da sua consciência e do seu mundo. Sem um pedido de desculpas, ou uma conversa de coração franco em que ambos assumem erros e afinal, exprimem um ao outro, que o encontro de ambos foi mais que parte da peça que a maioria representa nos poucos anos que por aqui anda. Não, no boxe, fazes merda, pagas logo por ela. No meu caso, caí no erro de pensar em quem não pensa em mim, e a odiar-me por ser mentalmente incapaz de eliminar esse tipo de fraqueza, da minha voz interior. Pois bem, um gancho esquerdo do meu opositor acordou-me para uma realidade bem mais dolorosa que os dóidóis de ‘amor’. A caminho da minha nova cama de suor sangue e cuspo, antes que a minha cabeça batesse no chão do ringue, ainda consegui lograr congruência na desconcentração…perguntei-me, antes de entrar na inconsciência, será que a dor física é de facto superior à psicológica, ao apartar ou amputar, que alguém nos faz, saindo de cena? Foi quando estava a pensar na minha paneleirice de complicar as coisas, que apaguei de todo. Já nos chuveiros, após recobro a custo, é que senti uma dor lancinante no maxilar, que me respondeu que a dor física se persistindo e em grau suficiente, nos ocupa a mente de tal forma, que as tristezas sentimentais saem de cena mais rapidamente que um amor antigo que decide que já não somos algo a ter em conta. Engraçado como a dor lateja tal e qual o coração. Com 4 Ben-U-Ron’s no bucho, a coisa não havia como acalmar, e tacteando com o dedo, percebi que tivesse, talvez de arrancar um molar e o dente do siso. Não conseguia estar parado em casa, nem sequer adormecer. Vesti-me e saí, fui para as Picoas, o Mustang, bar com música rock e coca cola merdosa, ainda devia estar aberto, às 2 da manhã. Fui na ideia de me distrair da dor, que é aliás o que tenho feito toda a minha vida. Sentado com uma coca cola natural bebida por uma palhinha que dirigia o líquido para longe do centro de dor, dava graças ao bar estar às moscas, o contrário do que eu pretendia, ao ir para ali, ao fim e ao cabo. Entrou por fim um casal, ela muito bonita, e ele, fazendo-me lembrar a mim mesmo há uns 20 anos. O que podia eu escrever sobre o assunto. Sei que quando estava para me vir embora, ele me veio perguntar se eu tinha lume, meio para mostrar a ela que abordava naturalmente qualquer pessoa por via das suas virtudes sociais, meio a precisar mesmo de fumar. Meteu conversa por causa da minha t shirt da Hell o Kitty. Só aí me apercebi que a tinha tirado ao calhas da gaveta. Eventualmente ficámos os 3 na palheta na mesma mesa, naquela cumplicidade da noite lisboeta que antecede a entrada de um novo fim-de-semana. Percebia-se que estavam ambos na fase de enamoramento, e a uma ida dela aos lavabos, ele fica a olhar para ela, com um par de olhos embevecidos, ao que eu o acordo dizendo ‘-Esses pensamentos, vão-te causar muita dor.’ A cara que me fez, foi exactamente a mesma que eu faria há uns anos, imbuído das mesmas crenças. Se ele era como eu, não ia perceber, acreditar, valorizar, o que eu tentava dizer sobre aquele assunto. Nem ia eu assumir o papel do velho que tenta transmitir pérolas de sabedoria que por um lado reflectem a minha experiência pessoal e nada mais, por outro, correm o risco de eliminar as experiências dolorosas de outro no caminho do seu crescimento. Papel que outros assumiram comigo, na exacta medida da sua capacidade de articulação da linguagem e das ideias que eles próprios formularam, sobre o assunto, sobre as coisas do mundo. De nada me serviu, querer absorver a caminhada de outros a partir dos meus sapatos, ou de lutar com as suas luvas, o meu oponente reflectido num espelho. Ninguém aprende muito pelas experiências de outros, tal como o rapaz não sentia a minha dor de dentes. Tal como tu que aqui me lês. Bebi a coca cola e deixei duas cervejas pagas para ambos, no meu caminho para a cama a meia hora de sofrimento. Dali - Jovem virgem auto sodomizada pela sua própria castidade I Ela falava, mas o som das suas palavras, não era recebido por mim. Minha mente divagara para o sonhar acordado, indagando se acordássemos nus na manhã seguinte, se eu sentiria que o seu abraço tresandava ao sentimento de que ela sentia o meu corpo como seu. Da mesma maneira como nos sentimos à vontade com a nossa almofada, quando nos refugiamos do mundo fechando os olhos. Imaginava se quando me chamasse para ir ter a casa dela, se sentaria em mim nua, e nossas bocas se beijariam com nossas línguas se sentindo em casa quando cruzadas. Ou se tudo teria o sabor do forçado, do condenado às galés da solidão que se mexe para não sentir estar acorrentado ao remo. Jantávamos os 4, numa tasca ali para o Martim Moniz, e gradualmente o vinho actuava nas sinapses, as larachas polidas transmutavam-se em cada vez maiores exposições de intimidade, como se cada um andasse com pressão para se exprimir livremente ao mundo e aos outros. Eu sorvia e observava, a escolha de palavras, os trejeitos, os maneirismos, as expressões em linguagem do corpo que dança ao sabor do que vai na alma. Logo no início da conversa, e porque sentada a meu lado, olhava-me de frente e aproximava a sua cara da minha, para ver se me forçava a desviar o olhar. Como não desviava, e até lhe tocava com jeito casual, oferecia-me atenção incondicional, descontextualizada em pessoas que se acabavam de conhecer. Óbvio era, que era uma outra reedição do jogo do quente e frio, onde se é quente e receptiva a princípio, com uma alteração brusca e fria de comportamento, para o outro ficar a indagar sobre o porquê, geralmente em curto-circuito sobre o seu comportamento, será que fiz alguma coisa mal, estava a ir tão bem. Cortava-lhe as vazas, com o meu discurso centrado no nós e não no eu e ela, e desviando propositadamente o olhar do seu, quando me metia os olhos à frente da cara. Não fazia por mal, creio, era só mais uma encenação para posteriormente confirmar uma potencial rejeição, se eu alinhasse na brincadeira e ela me rejeitasse os avanços, com uma insistência mendicante da minha parte face ao afastamento súbito da donzela, confirmando para ela, o acerto da sua rejeição…porque o mendicante exprime baixo valor, logo ninguém quer algo que mais ninguém quer, e porque desde o início, não quer ninguém que lhe apareça a uma luz menos que óptima. Algo mais estava em jogo que eu e ela. A sua auto-imagem estava em jogo também. Ou eu a fazia sentir especial e no éter, ou eu tinha de aparecer à luz do Hades, para ela se sentir no mundo dos vivos. Era esse o meu papel, o de elevador de um só lugar. Vês, as suas expressões de fatalismo, no seu discurso, como a narrativa de azar ao amor, ou a assumida condenação a ficar para sempre tia, mostravam que OU já desistira e se acomodara à ideia, ao destino, OU que já estava tão identificada com a estética da condenação, que a sua auto-imagem era feita com esse barro. A condenação, o pathos, eram o prémio e a prova, a prova de que a sua personalidade era especial, e justificativa da solidão escolhida, sem que a escolha seja assumida, como criança abandonada antes da nascença. O silogismo é fácil, embora pouco óbvio…não me contentei com o que apareceu, senti-me desvalorizada, defendi-me acentuando o que percebi como meus defeitos para forçar alguém a amar-me por ‘mim’, só consegui afastar ainda mais os outros, coloco o ónus da rejeição ‘neles’ para alijar a minha responsabilidade ou culpa, e rejeito-os de antemão para mostrar a mim própria que o abandono decorre da incapacidade ‘deles’ em apreciarem aquilo em que me tornei. II O tal branqueamento. As brincadeiras que a nossa massa encefálica tem connosco. O tal branqueamento, coadjuvado por uma postura comportamental sofrível, por uma desqualificação baseada numa falta de qualidade dos pretendentes prévios (arredados de qualquer categoria de humanidade, mera res extensa que serve unicamente o objectivo de ser desqualificada), apenas para manter a ilusão criada por si e para si (e para as amigas próximas e família chegada), a ilusão de excentricidade em relação às demais. Para sobrevivermos connosco próprios, queimamos outros que querem viver connosco. Nunca aprendendo a técnica de dar o litro para fazer as relações funcionar, com a ilusão de base, de que tudo o que vale a pena acontece por pós de perlimpimpim, a donzela empoderada espera naturalmente a adoração dos súbditos que lhe confirmem a natureza divina. O homem está aí, para adorar, para me esconder os pés de barro sob litros da sua baba. É a negação, que passa em certas culturas como uma espécie de fé, a maior ferramenta da desprovida de amor próprio, ou da que nada mais tem que mostrar ao mundo que vaidade. O futuro feito de pêlos de gato e copos de vinho tinto, amontoados e por lavar no lava-loiça, escondem as suas tentativas serôdias de me encaixar na galeria desses pretendentes-objecto, como mostrar-me as fotos dos bichanos, a partir do smartphone…ou a do pai, tentando aferir o meu grau de interesse ou proactividade, que visa esconder a baixa ideia que faz de mim, e a confiança exagerada nos seus dotes de sedução, nunca postos à prova, que nós os homens, somos papalvos fáceis, que não carecem de muito convencimento além de uma amostra de pele. O universo composto de uma cama fria e eflúvios ébrios nas noites solitárias, são ainda assim mais reconfortantes que a sombria ideia de partilhar horas que sejam, com um tipo que se sabe nunca ser passível de respeito, quanto mais de desejo. Portanto, como vês, a suposta batalha estaria perdida à partida, se eu me comportasse e tocasse nos correctos fios da teia, de modo a reverberar com alguém que não me pretende além do confirmar a sua crença sobre si própria. No final, ficaria a pensar na minha falta de personalidade, em ser o mais aproximado ao que sou, e não uma ficção para outro ver, e ela ficaria a desqualificar-me, colocando-me na galeria de todos os outros que tentaram agradar à deusa. Assim optei por ser enterrado, numa aprovação que não tentei, na galeria dos que não dando sinais de se esforçarem, são avaliados pelos mesmos critérios de desqualificação, os brutos, os grosseiros, os ainda bem que estou sozinha e não tenho de aturar gente assim. Há muitos anos atrás, quando os animais falavam, eu preocupava-me na ilusão de que gente avariada pode ser reparada. Arrogante era eu. Há certas mentiras que valem mais que a vida, porque sem elas não seria possível viver. Não é possível viver, com a aceitação plena, da ideia de que temos pouco encanto para os outros. A pedra filosofal feminina transforma o chumbo da inadequação em actos de emancipação e provas de excentricidade de carácter. A nossa falta de encanto, transmutada em excepcionalidade, apenas reconhecível a um restrito e imaginário, conjunto de pessoas, igualmente excepcionais. Quando lhe perguntei o que fazia, insistiu mais na ideia de querer fazer alguma diferença no mundo, tentando convencer-me de tal. Estava um bocadinho apostada em condicionar a minha apreciação de si, até para evitar um possível juízo negativo, ameaçador temporário da sua auto-estima. Ainda tentei aferir a sua capacidade de encaixe, aumentando o carácter vernacular das minhas larachas, apenas para a ver afastar-se, levando o biscoito da rejeição a priori que salvaguarda sempre a tal decisão do ‘ou mátria ou morte’. Gradualmente, o seu falar assertivo e alto, talvez para me impressionar, deram lugar a um pedinchar para ir para o carro, nestas frescas noites de Março, privando a amiga de alguns momentos com o seu amor, apenas porque já obtivera o que pretendia… A confirmação de novo, que a sua fantasia permanecia tão inalterada como aquela dor de uma condenação que sabe tão bem. Ia na 3ª folha manuscrita quando o telefone toca. Uma entrevista de emprego, dress code formal. Um amigo meu convidara-me para fazer parte de um projecto inovador, e sabendo que eu arranhava Python, perguntou se queria que ele desse uma palavrinha. Eu disse-lhe que já estava empregado e não precisava de trabalho, mas obrigado. Pelos vistos, não respeitara o que eu havia dito. Do outro lado da linha, uma voz de mulher, sedutoramente rouca, tentava convencer-me. «-Não, não é só pelo Bernardo, que nos falou bem de ti. É porque estudámos o teu trabalho, e é exactamente a ti que queremos. Custe o que custar, nas condições que tu quiseres.» Nunca na minha vida algum empregador me tinha dito isto. Eu sou da geração que teve de arrastar a peida nos call centers para pagar as propinas das Humanidades, e nunca recuperou os neurónios perdidos nessa actividade. Deve ser a forma mais cara de comprar esgotamentos e feridas existenciais incuráveis. «-Mas que trabalho?» perguntei eu. «-Os teus blogues. Estamos a iniciar um projecto inovador com inteligência artificial, e queremos que faças parte da equipa.» «-Eu? Mas para fazer o quê concretamente? Eu nem sei programar por aí além. É algo relacionado com a edição literária? Há malta melhor preparada para isso, eu escrevo mais do que leio.» «-Não. Queremos que faças com que alguém se apaixone através da tua escrita.» Cum real caralho. Foda-se. Fiquei sem palavras e fiquei de lá passar numa quarta-feira. O dono da empresa e a mulher, a tipa da voz rouca, receberam-me num prédio profissional, ali para os lados da torre gasosa da Expo. Dentro de um aquário no meio do openspace apertámos as mãos, pois isso, escrever sobre amor e desamor, é algo que faço mais ou menos bem, mas com prazer, procurando novas formas de dizer o mesmo, e assim, fazer o mesmo passar a ser diferente. Embora não sendo um call center, tinha ilhas com secretárias e 4 monitores por secretária, uma ilha com a máquina de café, e uma porção do que me parecia ser relva, que se colhia e triturava numa máquina que fazia sair um líquido verde que se ingeria após o massacre esperançoso. Modernices fora de tempo. Não senti aquela pressão de trabalho da ética protestante, podia por exemplo, sair sem dar cavaco a ninguém e passear à beira do estuário até à Fábrica de Braço de Prata e voltar, caso me faltassem ideias, ou tivesse de pensar em algum assunto. O ordenado vinha ao fim do mês, chorudo e pontual, apenas por escrever e criar organogramas sobre os relacionamentos entre pessoas, e todos os Domingos, recebia um email do patrão a sugerir um tema de história de amor, ou a pedir que eu sugerisse um, para figurar entre 4 em disputa para o mês seguinte. Quando eu me sentava a escrever, perdia noção do tempo, e apenas me deixava distrair por uma cachopa na casa dos seus quase 30 anos, que fumava muito mesmo, mas com uns olhos bonitos e tristes que fariam chorar de pena o Cristo-Rei. Não havia vez que se levantasse, que eu não lhe ficasse a saborear o rabo visualmente, exercitando a imaginação nas diversas coisas que faria naquele rabo escondido sob uma promessa de saias leves a imitar a seda e a viscose. Várias vezes me apanhou a olhar para o rabo, e eu apanhei-a uma ou outra vez a rir, por isso. Um riso de satisfação, por ver alguém com um quid de excentricidade, incapaz de resistir a um bom senso profissional. A mulher do patrão, várias vezes ao dia, vinha colocar as duas mãos em cima dos meus ombros, ora perguntando como estava a correr a coisa, ora massajando de forma suspeita, a minha carne tensa, pois parecia escolher os momentos em que eu estava mais concentrado. Fosse na ocasião que fosse, eu evitava ter ideias de comer quem quer que fosse, não misturar ideias de trabalho com aventuras emocionais para me preencher o tédio da existência. O trabalhinho pagava bem, eu não me sentia oprimido por ele, gostava de escrever e recebia elogios pelo meu trabalho. Comecei a ter algum dinheiro na conta ao fim de algum tempo, e comecei a ver ao fundo do túnel, a possibilidade de pagar dívidas antigas, que ultrapassadas, finalmente, me fariam sentir um pouco mais válido, ou assim eu imaginava. Ao fim de meio ano, avançaram finalmente com o projecto do algoritmo e da minha sistematização, que começava por uma sobre familiaridade, que visava criar a ilusão de um arrebatamento, que eu doseava para não criar uma suspeita de carência no ente amado. Batiam palmas, as 15 ou 20 pessoas nestes meetings de empresa, com breaks e reports e casual Fridays. Comecei a levar a sério o meu trabalho, e a sentir que estava a desenvolver algo sério. Ninguém me exigia nada, a não ser que escrevesse e mandasse os textos para um NAS central, com redundância de discos rígidos, e licença de escrita apenas pelo dono da empresa. Mais ninguém podia alterar, e foi com choque que comecei a ouvir no elevador, logo às 8 da manhã, malta a debater temas que eu havia escrito, foi quando a curiosidade me fez olhar para os monitores dos outros, sempre que eu gravava um novo texto, todos iam ler. E mais tarde, a partir dos textos, vim a saber, que toda a gente fazia relatórios que trocava com o patrão, quase sempre ocupado no seu aquário à vista de todos. Senti-me envergonhado, mas também com vaidade. Não fazia ideia que toda a gente ali tinha acesso ao que eu escrevia, por vezes com coisas cá muito minhas. Mas a forma surpreendentemente profissional com que levavam aquilo, não me fez sentir exposto. A vaidade levou-me a tentar escrever ainda melhor, e comecei a refinar a manipulação, adequando os textos com dicas acerca de várias tipas, colegas de trabalho, sobre quem eu me dedicava a imaginar uma situação de envolvimento ou cópula estarrecedora. Até com a mulher do patrão. Em word eu esfodaçava, seduzia e jabardava todas as tipas do call center, ora imaginando a sua casa psíquica apenas por via da observação ou do cold Reading, ora imaginando lubricamente os envolvimentos com a anatomia de todas as que me agradavam. Escudava-me na ficção e por vezes ria-me a caminho de casa, por pensar na insanidade deste mundo, pagarem-me para as assediar em contexto laboral, sem que lhes dissesse, na maior parte dos casos, sequer os bons dias. Depois passava a observar as diferenças de olhar nas pessoas, tentando perceber se se tinham reconhecido nos meus textos, e como reagiam à minha abordagem ficcional, e reparei que a minha musa de rabo em mausoléu sedoso, me olhava de forma diferente, e passei a ser eu a apanhá-la a olhar para mim, mas já não rindo, séria como um túmulo, e com os olhos extra fundos e trágicos, como que se perdida numa falésia por detrás de mim, caída para algum lado da sua própria existência. A ela, sabia eu que tinha tocado num nervo, e continuava a aprofundar o que eu achava que tinha reverberado nela. Às tantas comecei a apaixonar-me pela minha personagem e a preferi-la à pessoa que estava a duas secretárias de mim. O meu objectivo passava agora por a conseguir manipular a não conseguir evitar vir falar comigo. Os meus textos multiplicavam-se por causa deste objectivo, pois sabia que ela ia de imediato ler, tal como a malta à volta. Consegui crackar o sistema de autorizações rudimentar, do active directory daquela merda, e conseguia saber quando ela estava a ler o meu texto, a que horas, quanto tempo demorara, e deixei-me até aceder remotamente ao seu ambiente de trabalho, descobrindo que tinha o meu blogue como página inicial no seu browser. Foda-se. Comecei a pensar que estava numa maré de sorte rara, bom emprego, cada tiro cada gaja cada melro, perto de comer a que queria, fugindo da mulher do patrão, oláólariloléla, a coisa compunha-se. Voltava à terra pela melancolia dos meus textos, e as promessas de potencial fodanga, nada faziam sob a sombra dos amores passados, que ruminava para justificar o ordenado. Quando olhava por entre dois monitores, apanhava-la muitas vezes a olhar para mim e a desviar o olhar de forma rápida. Quando o não fazia e me fixava, eu sorria para ela, ou piscava o olho, e ela sorria de forma simpática e fingida, por cortesia, pela incerteza acerca do meu carácter de estranho. Estávamos ambos no braço de ferro em ver quem aguentava mais, fingindo que não se passava, o nada que se passava. Eu sabia que eu não ia dar algum passo nesse sentido. O desejo motiva-me a imaginação, e se a fodesse, travaria a escrita de forma análoga à de quem trava a bicicleta enfiando um pé-de-cabra nas guias de uma das rodas. Não queria dissolver a minha personagem confrontando-a com o original. A mulher do patrão, Amanda, meio portuguesa, meio loira platinada do Iowa, apertava o cerco, sussurrando-me incentivos ao ouvido, com a voz rouca que é presença comum nos anúncios de refrigerantes. Cheguei a pensar encornar o tipo, mas rejeitei logo a ideia, não sem antes imaginar e escrever um texto sobre o assunto e foi quando percebi que o tédio se voltara a instalar em mim. Comecei a prestar mais atenção ao que os outros faziam. Cada um com 4 monitores, sticky notes por todos os lados, onde comecei a reconhecer frases e organogramas com ideias de força que eu colocara nos meus textos. De dois em dois meses recebia um aumento, um portátil, bilhetes para um jogo do Glorioso, ou outras merdas que eu percebia que me visavam cativar. Recebia no email da empresa, pedidos dos colegas para acções e ficções em situações que me sugeriam, de engate claro. Comecei a reparar, por fim, que todos tinham páginas de redes sociais abertas, com perfis cujas fotos se repetiam, e embora não trancassem os ecrãs, eram de alguma forma reservados e reservadas, com o seu ambiente de trabalho. Os perfis de Facebook, Twitter, Instagram, invariavelmente não coincidiam com a cara das pessoas, e isso levou-me a suspeitar. Já não conseguia estar sentado, e rapidamente caí em mim, eu estava num centro de extorsão que visava convencer e tirar partido de homens solitários e rejeitados. Na secretária ao lado da minha estava a especialista no golpe da ‘mocinha’, onde com fotos de miúdas lolitas, se chantageava tipos que tinham cometido o erro de enviar fotos suas ou das suas anatomias. A ameaça da ‘delegacia’, fazia-los enviar dinheiro para contas, dos supostos pais das ‘mocinhas’, que assim não procederiam criminalmente. Na mesa em frente a mim, o tipo que tratava das mulheres asiáticas que aliciavam com extrema simpatia e atenção, os tipos que no Facebook pareciam ter dinheiro para investir em bitcoin. Comecei a pesquisar nos conference rooms, como eram usadas as minhas abordagens e ficções, e sentei-me num banco no corredor, colocando a mão à testa. Fui falar com o patrão, que confirmou a minha suspeita. Perguntei-lhe porque não me dissera que era tudo aquilo uma empresa de scam. «-Porque não terias vindo trabalhar para nós. E estamos dispostos a pagar-te o que pedires. Desde que chegaste a nossa facturação triplicou.» «O que fazes aqui é crime.» disse-lhe eu. «-Sim, e tu és cúmplice.» respondeu ele. Tinha razão. Nenhum juiz acreditaria que eu não sabia o que se passava. Só se eu fosse alguém muito estúpido ou vaidoso, o que vai dar ao mesmo. E lá vaidoso era. Foda-se. Eu tinha duas opções, a minha carteira ou a minha ética. Comecei a arrumar os meus pertences na secretária, e a meio do caminho para o elevador, apeteceu-me chamar filhos da puta a toda a gente. Com a porta do elevador a fechar, um rabo coberto por pano sedoso com motivos orientais, entra apressado. Encostada na porta que se fechara, apoiada nas mãos em cruz sobre a racha dos dois monólitos de aço inox, ela pergunta: «- É um mundo de cão mata cão.Não achas?» Estava-me a sondar, e eu percebi a sua intenção, de tactear se eu ainda estava na equipa. «-Não amor, não é. Se abdicamos de ser decentes uns para os outros, perdemo-nos.» respondi eu. Eu sei que ela percebeu perfeitamente o que eu lhe dissera. Vi pela reacção nos seus olhos. Independentemente das histórias que contava para si, reconhecia-me como certo. |
Viúvas:Arquivos:
Abril 2023
Tori Amos - Professional Widow (Remix) (Official Music Video) from the album 'Boys For Pele' (1996) - todos os direitos reservados:
|